31.12.06

A saúde em Portugal em 2006

Na saúde o governo mostrou uma vontade obsessiva de poupar dinheiro, numa sucessão de medidas que sempre pareceram desgarradas, sem delas se antever uma nova ordem estruturada.
A actual forma de gerir as instituições de saúde públicas, empresarializadas, parece ter vindo dar uma machadada fatal nas carreiras médicas, suporte fundamental da formação médica neste país e espinha dorsal do seu serviço nacional de saúde. E o que é dramático é que dela não resultaram os benefícios financeiros esperados, ou simplesmente por má gestão dos nomeados para tal ou pelos gastos administrativos galopantes.
Como medidas boas indico aquelas que foram anunciadas pelo ministério e acabaram por não ser levadas a cabo – daí o seu carácter positivo. Medidas más houve muitas, mas a pior de todas foi o governo ter dado o dito por não dito no pagamento das horas extraordinárias dos médicos que não estão em exclusividade. Uma atitude que corresponde a falta de palavra – combina-se uma coisa que se entende justa, a seguir nega-se por razões apenas de dinheiro. Depois disto pode-se esperar tudo. Era uma questão de princípio, que acabou por ser negociada com os sindicatos. E numa sociedade quando se começam a negociar os princípios, é o princípio do fim.
ESPEREMOS QUE O NOVO ANO CORRIJA TUDO ISTO E TRAGA À SAÚDE PORTUGUESA O QUE ELA NECESSITA.

Taxas moderadoras e mais taxas de utilização

O argumento é sedutor, antigo, mas falacioso: por que razão, um milionário português paga o mesmo que o motorista da minha escola, para fazer uma operação às coronárias, ou seja, nada? Daqui até ao argumento do utilizador-pagador vai um pequeno passo. Quem usa auto-estradas deve pagá-las, supõe-se que tenha dinheiro, pelo menos para um carro. Quem entra na universidade deve pagar propinas, está a investir para subir na escala social. Parecem situações iguais, mas são diferentes.
Em primeiro lugar, o Estado tem interesse social e económico na saúde pública. Nuns casos por razões públicas: se todos tivessem de pagar as vacinas, alguns poderiam descuidar-se e a doença infecciosa poderia atingir cada um de nós. Em outros, por razões privadas agregadas: tenho satisfação individual em pagar dos meus impostos a saúde materno-infantil a todas as mães e crianças. Todos desejamos acesso igual aos serviços, no ponto de encontro do doente com o SNS, sem que o rendimento, a profissão, a classe social, a raça ou a cultura nos separem. Depois, porque existe enorme consenso social na justiça distributiva de um mínimo de partida para todos, ou até um pouco mais para os que estão pior. Finalmente porque, dado o custo crescente dos cuidados, seria catastrófico, mesmo para um remediado, pagar 20 por cento de um "bypass" das coronárias, o qual custa hoje, em Portugal, cerca de 50 mil euros.
Com base no argumento pretensamente igualitário, o primeiro-ministro, ligeiro como uma andorinha, vem propor co-pagamentos na saúde. Quando o informaram que as taxas moderadoras moderavam, não financiavam, retorquiu que não propunha aumentos nas taxas, mas sim verdadeiros co-pagamentos, proporcionais ao rendimento declarado para fins fiscais. Ou seja, defendeu várias coisas de uma só penada: (a) a mudança da Constituição, nesta matéria: em nome do princípio do utilizador-pagador, propõe mudar a natureza do SNS, de universal e tendencialmente gratuito, financiado por impostos, passando a ser também financiado pelo utilizador, quando este se encontra mais fragilizado, ou seja, praticar-se-ia a maldição da vítima, já que não se vai parar ao hospital como se vai em viagem, numa auto-estrada; (b) depois, o utilizador, mesmo da classe média ou alta, não podendo suportar o risco aleatório da doença, transferi-lo-ia para uma seguradora; teríamos em breve serviços de saúde com duas portas de diferente qualidade: uma para a classe média baixa e baixa, sem dinheiro para o seguro, outra para aqueles cujos co-pagamentos estariam cobertos por um seguro, seu ou do empregador; (c) dada a lógica irrefragável da dedução fiscal, surgiria nova injustiça, ou seja, para corrigirmos um aparente excesso da universalidade, criávamos em cascata uma desigualdade de acesso e uma nova injustiça fiscal; (d) injustiças fiscais corrigem-se no sistema fiscal, não pelo sistema de saúde, sempre mau aprendiz de feiticeiro nessas matérias.

Estas são palavras escritas e publicadas pelo Dr. Correia de Campos, em 2004, quando na oposição mas já depois de ter sido uma vez ministro da Saúde. Palavras com as quais facilmente concordamos, eivadas de bom senso e de preocupação social. Temos pena que ele tenha entretanto encontrado razões para mudar diametralmente de opinião.
A saúde é um bem público, isto é, dum povo, e no nosso país a Constituição declara o acesso a esse bem como tendencialmente gratuito, financiado portanto pelos impostos, que uns pagam mais do que outros, consoante o seu rendimento. Fazer de maneira diferente, isto é, tornar esse acesso tendencialmente pago, é o oposto do que a lei fundamental do nosso país por enquanto continua a estabelecer.
As decisões políticas são para os políticos tomarem, a sua avaliação antes de mais é para ser feita pelos eleitores. Mas há decisões políticas que têm repercussões técnicas de tal maneira importantes e graves que os técnicos não poderão, nem deverão, ficar calados, sob pena de serem julgados negligentes pela população em geral. Por isso é de esperar que os médicos, individualmente, nas suas associações ou através da sua Ordem, se pronunciem do ponto de vista das implicações técnicas da medida em causa, inscrita no orçamento de Estado para 2007.
Obrigar os doentes dos hospitais públicos a pagarem pela sua doença será, como dizia o Dr. Correia de Campos, “amaldiçoar a vítima”. E não importa o montante pago – agora menos, logo mais, ou muito mais, e sempre em período de doença - o que interessa realmente é que se vai estabelecer para esta área o princípio do utilizador-pagador, e isso é profundamente injusto na medida em que esse utilizador é o doente forçado a utilizar as instituições de saúde.
Para muitos doentes o ter de pagar pela sua saúde, em aditamento ao já pago nos impostos e face ao estabelecido na nossa Constituição, será uma razão para tentar fugir a um tratamento necessário, comprometendo assim um bem público, como o Dr. Correia de Campos também dizia, e bem. Não se poderá aceitar, num Estado social como o nosso, uma pressão económica deste género sobre os doentes, tornando-a uma preocupação extra que se lhes inflige quando deviam ser deixados tranquilos, na sua doença e no seu sofrimento, concentrados na recuperação da saúde. Neste aspecto pode até ser um factor contraproducente, como todos muito bem sabemos. E muito menos se poderá aceitar que seja transformada em argumento de pressão sobre os médicos, na sua missão de tratar os doentes, apresentando o senhor ministro a medida não como co-pagamento, mas fundamentalmente para levar os médicos a dar alta mais depressa aos doentes (sic), aliviando-os assim do pagamento de tal taxa. Taxa que seria desse modo um factor a ter em conta nos internamentos, nas cirurgias a praticar, na duração da permanência do doente no hospital, no relacionamento médico-doente, de acordo com as posses de cada um e a possibilidade maior ou menor de a pagarem.
Do ponto de vista médico é uma situação desagradável, com possíveis repercussões negativas na saúde pública, pelas razões apontadas. Porque, em nossa opinião, a medida é contra o estabelecido na nossa Constituição; por isso foi solicitada pela Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar a fiscalização da sua constitucionalidade.
Pub. Tempo Medicina 31/12/2006

3.11.06

Palavras que devem ter significado

Pelo SIM foram divulgadas algumas palavras cujo significado tem sido repetidamente esquecido, até por quem tem muitas responsabilidades e deveria por isso servir de exemplo: palavra, compromisso, honra, verdade.
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20.10.06

Provavelmente na Libéria não se põem stents

O Senhor Ministro da Saúde deu mais uma entrevista à RTP. Para justificar o que tem feito, para explicar o que quer fazer. Como habitualmente, ressaltou a única linha de força consistente na actuação do seu ministério: gastar o menos possível com a saúde. Se fazer o melhor possível com o menor gasto é o louvável, querer espremer a saúde dentro dum orçamento insuficiente é outra coisa, e representa perigo para todos nós, médicos e doentes.
Diga-se o que se disser, no nosso actual sistema de saúde a maior parte dos gastos vão para duas rubricas: o tratamento dos doentes (incluindo nesta designação os exames auxiliares de diagnóstico, os internamentos, as cirurgias, as especialidades de intervenção, os medicamentos, a profilaxia e o rastreio) e toda a parte administrativa, de gestão, de informática, contabilidade e ginástica contabilistica, de listagens, planos estratégicos, manuseamento das listas de espera, entidade reguladora da saúde, etc, etc. A querer poupar, terá de ser fundamentalmente aqui.
Nos Estados Unidos a parte administrativa já absorve 40% do orçamento para a saúde, gasto esse que não reverte directamente para o tratamento dos doentes. Pelo contrário, grande parte do esforço administrativo reside em criar medidas e regras tendentes a diminuir os gastos com os doentes, quer dificultando-lhes o acesso aos cuidados médicos quer fazendo de algum modo com que neles sejam usados os meios de diagnóstico e terapêutica menos dispendiosos. E por cá?
Todos conhecemos medidas muito recentes que terão como consequência afastar os doentes – ou os que se sentem como tal, pois ninguém em estado normal consulta um médico sabendo que não tem doença – dos locais de atendimento, seja pela distância, seja sobretudo pelo gasto exigido, quer nas taxas moderadoras quer no transporte a que ficam obrigados. E se tiverem o azar de estar mesmo doentes e terem de ficar internados, é de pensar duas vezes, pois um conto de reis por dia para muitos não é brincadeira... Principalmente quando estão doentes e por isso sem trabalhar.
Já escrevi, e faço-o de novo, que do ponto de vista clínico não é possível baixar mais os gastos sem fazer descer a qualidade da nossa saúde a níveis inaceitáveis. Inaceitáveis para um país europeu, evoluído, do pelotão da frente da comunidade europeia. Que nessa área estava classificado no 12º lugar entre 190 países, dois anos antes do Senhor Ministro da Saúde o ter sido pela primeira vez. Isso se ficou a dever a um serviço nacional de saúde bem idealizado e estruturado, integrando carreiras técnico-profissionais, como garante de formação e desenvolvimento profissional contínuo, e internatos médicos organizados e homogéneos a nível nacional. E sobretudo a um grande esforço de todos os profissionais da saúde, respondendo aos estímulos que lhes souberam criar nesse sentido. E que será lamentável, e desastroso, se quiserem alguma vez reduzir a dinheiro.
Os médicos gostam de tratar doentes, empenham-se nisso, sofrem com os maus resultados, são até capazes de se zangar se alguém os quiser impedir de tratar um doente da melhor maneira possível. Este é para eles um princípio ético e deontológico sagrado, intocável, que juraram defender. E ainda bem, para todos os que a eles confiam um dos bens mais preciosos que cada um, e a sociedade, têm: a saúde. É esse seu empenho e entusiasmo que têm feito com que muitas medidas administrativas erradas possam não ter consequências mais graves na saúde, ao levá-los muitas vezes a contornar com esforço as dificuldades que lhes são criadas na sua missão.
Portugal tem, até ao momento, uma saúde boa, reconhecidamente melhor do que o país globalmente é. Será que isso é um luxo com que urge acabar ?!
Os médicos portugueses ombreiam com os seus colegas estrangeiros. Têm direito a querer fazer o melhor possível, e preparação para isso. Em muitas ocasiões adiantaram-se e mantiveram-se à frente doutros noutros países mais desenvolvidos e ricos. Apesar dos meios reduzidos que continuam a ter quando comparados com muitos outros. É uma satisfação, um estímulo para todos, e devia ser motivo de orgulho nacional. Por favor não se diga que é mau porque custa dinheiro! Principalmente num governo que diz apoiar o desenvolvimento tecnológico...
Em Portugal colocam-se stents, sim, senhor ministro, não é preciso ir ao estrangeiro colocá-los, mesmo stents medicamentosos. Começámos antes de outros? Melhor para todos nós, possíveis receptores de um ou de vários desse caros objectos. Colocam-se em demasia, em especial nalgumas indicações? Será um problema médico a ser discutido e resolvido, responsabilizem-se por isso os Hospitais e os Serviços, mas não se apresente tal como um problema contabilistico.
Provavelmente na Libéria – o último naquela série de 190 países – não se põem stents. Têm uma medicina económica, que consome apenas 4,6% do PIB deles (presumivelmente menor que o nosso), o que permite 17 dólares por cabeça (para 1700 no nosso país). Os liberianos que precisem dum stent, se tiverem capacidade económica terão de ir a um país estrangeiro – por exemplo Portugal - colocá-lo. Se não tiverem, não vão. Se a evolução se fizer por cá nesse sentido, a medicina poderá ficar muito mais barata e Badajoz fica perto. E Salamanca e a Coruña também não ficam longe. E fica tudo na comunidade europeia.
A verdade é que os stents representaram um extraordinário avanço no tratamento desse flagelo que é a patologia aterosclerótica, seja coronária, renal ou dos membros inferiores, seja mesmo carotídea, e têm tido um grande sucesso, em Portugal tal como nos países mais desenvolvidos. Mas nada na medicina é definitivo, por isso é tão importante a nossa formação contínua. O que hoje é muito bom, amanhã pode ser até proscrito. O que não se deve é coarctar a capacidade de inovar, de descobrir, de avançar, de aplicar nos doentes o que de melhor há no momento, só porque custa dinheiro, e esperar pelos resultados “lá de fora” permite poupar algum. Os médicos portugueses merecem mais do que isso. E os doentes também. (Pub. Tempo Medicina, 18/10/2006)

15.10.06

Ministro não conhece funcionamento dos hospitais

Entrevista com o Presidente da APMCH (Carlos Costa Almeida) (Tempo Medicina, 11/10/2006). Destaques:
* Os médicos portugueses estão desencantados, desanimados, com este ministro da Saúde. Ele era tido como uma pessoa profundamente conhecedora da área da Saúde. Ao contrário de outros que não tinham relação nenhuma com a saúde, como António Arnaut, que é advogado, e isso não o impediu, quando foi ministro dos Assuntos Sociais, de construir o Serviço Nacional de Saúde, que durante 25 anos funcionou muito bem, principalmente porque serviu as populações, a formação médica pós-graduada, as carreiras médicas, embora tivesse aspectos a melhorar. ... O senhor ministro tem demonstrado uma única preocupação primordial e consistente: não gastar dinheiro com a Saúde. Ora a Saúde custa necessariamente dinheiro, por isso há que procurar racionalizar, fazendo o que se tem de fazer com o menor gasto possível, mas não racionar, quer dizer, deixar de fazer o que há a fazer porque foi determinado que para isso não há dinheiro. Mas «isso» é a saúde da nossa população, meu Deus! Parafraseando o Dr. Jorge Sampaio e o Prof. Manuel Antunes, tem de haver saúde para lá do orçamento do Governo. Por outro lado, até agora assistimos à publicação de uma legislação que nos parece desgarrada: leis que aparentemente são feitas para resposta a uma situação concreta ou a uma contestação, leis que são aprovadas em Conselho de Ministros e não podem ser postas em prática porque são inexequíveis.
* As medidas que tem tomado mostram que não sabe como os hospitais funcionam na prática. Um profissional que é posto a dirigir uma coisa sobre a qual não tem as informações deve perguntar a quem sabe, e quem sabe como funcionam os hospitais do ponto de vista clínico são os médicos hospitalares.
* Quanto à nomeação dos directores de serviço... Sem critérios objectivos definidos, por que razão há-de ser director do serviço um membro dele que ainda não atingiu o topo da carreira, quando há outros que já prestaram provas para isso e o conseguiram? Com que argumento aceitável é que um director do hospital, nomeado por razões políticas, muitas vezes não médico, e se o for é quase sempre doutra especialidade e doutro serviço, vem dizer que um menos graduado, com menos provas dadas, é que é bom? Assim todos poderão ser directores de serviço, por quaisquer razões que qualquer amigo momentaneamente no poder queira invocar, e aí temos aberto o caminho ao compadrio de café e ao carreirismo político.
* Sou um defensor intransigente das carreiras médicas, mas com este sistema de saúde que se vai criando elas dificilmente sobreviverão. As carreiras, como garante da qualificação técnico-profissional dos médicos, e também, e por esse motivo, da qualidade do atendimento médico aos doentes, terão de ser agora transversais, uma vez que além dos hospitais estatais passou a haver os hospitais-empresas. Mas as carreiras significam um esforço suplementar dos médicos, para além do seu trabalho no dia-a-dia a tratar doentes, e para isso terão que trazer compensações para além da satisfação pessoal de evolução interpares, como uma maior influência e responsabilidade profissional nos hospitais e nos serviços, maior remuneração, possibilidade de, uma vez atingido o topo, dirigirem um serviço. É por isso que digo que o primeiro ataque às carreiras foi o facto de alguns hospitais começarem a nomear como directores de serviço médicos ainda não no topo da carreira.
* Se as carreiras se mantiverem, transversais aos hospitais todos, mas vazias daquelas compensações, elas rapidamente morrerão, por desinteresse, com todas as consequências disso, inclusivamente na formação organizada e responsável dos internos, quer dizer, dos especialistas de amanhã. A contratação pelos hospitais-empresa dos médicos que cada administração entende necessários, eventualmente menos qualificados e mais baratos, bem como a grande mobilidade desses médicos, por razões salariais ou por variações da capacidade económica dos hospitais, deixam-me preocupado quanto à formação pós-graduada futura, na sua qualidade, e mesmo na idoneidade dos serviços e dos hospitais para a fornecer.
* Nas carreiras, os concursos, tantas vezes criticados, eram uma maneira de ajudar o director do serviço a escolher o médico, porque tinha um júri a validar, ou por vezes não, a sua escolha. Ultimamente os recursos eram muito frequentes, e não acho que seja mau protestar quando se não concorda. O que não era solução era dar resposta a um recurso ao fim de nove anos! Se não houver concursos os médicos entram todos e durante um tempo funciona bem. Mas depois, quando quiserem concorrer a outros sítios, fazem-no com que base? Só da amizade e do conhecimento? O director do hospital contrata com que critério? Do tecnicamente melhor? E como é que se sabe qual é o melhor se não houve concurso, não há diferenciação? E como se justifica a diferenciação salarial? Este facilitismo, que alguns médicos mais novos podem considerar vantajoso, cria ao fim de alguns anos uma confusão de critérios e situações de difícil solução.
* No que respeita ao desfasamento de horários médicos ao longo do dia... O trabalho médico não se compadece com isso. O trabalho médico tem que ser feito em equipa, com troca de opiniões, exame de doentes em conjunto. Alguns médicos, que já atingiram alguma diferenciação, provavelmente aguentariam este sistema alguns anos, sem ter contacto com outros. Mas assim os especialistas não evoluem e os médicos mais novos não chegam a aprender. O ministro quando legisla tem que pensar no futuro, a médio e longo prazo. Haverá alguns médicos que estão de acordo, mas a grande maioria não, porque a evolução da Medicina não se compadece com isso, a formação contínua não pode parar.
* O pagamento por desempenho, por acto médico, já foi tentado nos Estados Unidos, e o resultado foi que os actos médicos multiplicaram-se. Penso que esta questão, posta assim, é até uma medida perigosa, para os doentes e para o sistema.
* O ministro da Saúde afirmou que a cultura médica é contrária às consultas externas... Não sei por que é que ele faz estas afirmações, será a sua maneira de ser. Essa afirmação, como outras, mostra que o senhor ministro não conhece o ambiente hospitalar, não conhece o que se passa nos hospitais.
* O ministro da Saúde afirmou que as suas medidas visam valorizar a profissão médica… Não sei o que ele quer dizer com isso. A profissão médica está suficientemente valorizada no nosso País, as pessoas percebem que os médicos fazem o melhor que podem. Mas o senhor ministro podia realmente ajudar a classe médica dando-lhe boas condições de trabalho e fazendo com que os doentes consigam facilmente aceder ao sistema de saúde.
* Também na terapêutica, a aquisição de fármacos novos, que estão aprovados mas que nunca tinham sido comprados pelo hospital, está sujeita a uma avaliação farmacoeconómica... Isso é grave e pode levantar problemas legais. Se o médico entender que aquele é o melhor medicamento e não o utilizar porque é caro, do ponto de vista ético pode ser criticável. E do ponto de vista jurídico provavelmente também, a menos que o médico prove que não utilizou o medicamento porque a administração não permitiu.

27.9.06

Fórum Médico atento ao Ministro e à Saúde

O Fórum Médico reuniu-se outra vez, agora em Coimbra hoje dia 27 de Setembro. Dessa reunião saiu o seguinte comunicado:

COMUNICADO
O Fórum Médico reuniu-se, desta vez em Coimbra, na sede da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos.
Foram analisados desenvolvimentos recentes na área da saúde, como por exemplo as afirmações do Senhor Ministro da Saúde, repetidas ainda hoje de manhã na Assembleia da República, sobre o pagamento pelos doentes de uma chamada “taxa de utilização”, na cirurgia do ambulatório e no internamento, que mereceram a nossa total discordância.
O Fórum continuou o debate sobre as Carreiras Médicas, postas em causa com as modificações introduzidas no estatuto das instituições de saúde públicas. A não existência de carreiras médicas profissionais comprometerá séria e inexoravelmente quer a formação dos novos especialistas quer a formação contínua e a diferenciação técnico-profissional dos já existentes. Em virtude disso, as estruturas representadas no Fórum não abdicam duma reestruturação adequada das Carreiras, garante também da qualidade dos cuidados de saúde prestados, e nesse sentido se irá continuar a trabalhar.

17.9.06

Carreiras na mira

Desde sempre foi evidente que a nova lei de gestão hospitalar – publicada pelo actual ministro da Saúde quando o era pela primeira vez, em 2002 - dificilmente seria articulável com a existência de carreiras médicas, e do mesmo modo o sistema (?!) de saúde que se tem desde então vindo a delinear aos poucos dá sinais de não contar com elas e de as considerar mesmo um empecilho. Oiça-se o que se ouvir, na prática é o que se vê.
E na prática a destruição das carreiras já começou, ao ser possível, e estar a ser praticada, a nomeação como directores de serviço de médicos que não atingiram ainda o topo da carreira, quando há outros mais graduados disponíveis. Nos hospitais empresarializados (SA ou EPE), legalmente, e nos outros, apesar de nesses a lei aplicável o contradizer, qualquer um, mais graduado ou menos graduado, pode ser nomeado para o efeito. A escolha é do director clínico, ou antes, do director do hospital, o qual por sua vez foi quem escolheu o director clínico e o pode demitir a qualquer momento, se ele deixar de cumprir os critérios que levaram à sua nomeação. Que critérios? Os critérios não estão estabelecidos em parte alguma, são pessoais, de confiança pessoal e política, os mesmos que levaram à nomeação do próprio director do hospital pelo ministro da Saúde, e que traçarão o “perfil” exigido aos directores de serviço nomeados em cada hospital.
Ora o papel do director de serviço é eminentemente técnico, responsável máximo no Serviço pela actividade clínica e pelo treino dos mais novos, elemento que deve ser de referência para os outros, com a experiência e o prestígio pessoal e profissional que o tornem naturalmente respeitado e aceite no grupo de trabalho que um Serviço clínico deve ser. É, pois, obviamente desejável que ele seja escolhido entre os que, por provas dadas, da carreira médica e, eventualmente, da carreira académica, atingiram a maior diferenciação profissional no grupo.
Mas na nova ordem implantada nos nossos hospitais, não é isso que se passa, pelo menos não obrigatoriamente. É deixado ao poder discricionário de um, com os seus critérios pessoais. O grau de carreira e as provas dadas não contam para nada, a opinião desse é que prevalece. E isso dá que pensar. Porquê assim? Procurando resposta para esta questão lembrei-me, muito a propósito como verão, dum facto respeitante à guerra do Vietname.
Nos campos de prisioneiros de guerra é norma internacional que haja um deles que lidera os outros, os organiza e os representa face aos captores, e esse é o oficial de patente mais elevada presente entre os detidos. Essa liderança é indiscutida, o grupo permanece coeso, organizado, e essa organização ajuda-os a mais facilmente sobreviverem, enquanto grupo e individualmente, como seres vivos mas também como militares e como homens. Contrariando a norma, nos campos de prisioneiros americanos na guerra do Vietname isso não se passava assim. Os vietcongs escolhiam eles aquele a quem punham o nome de líder do grupo de prisioneiros, por critérios que eram do director do campo. Era um oficial subalterno, um sargento, um cabo ou até um simples soldado, um elemento que ele entendesse ter o perfil adequado para servir os seus desígnios. Ao mesmo tempo que diminuía perante todos o oficial mais graduado, o chefe natural, escolhia o mais novo em idade, ou o mais medroso, o mais inseguro ou então o mais ambicioso e com menos escrúpulos, que ao sentir-se de posse dum poder que não esperava e que não merecia tudo faria para o manter. Nenhum dos outros lhe reconhecia intrinsecamente autoridade, e por isso a única que ele podia exercer é a que lhe provinha de quem o nomeara, o que o transformava desde logo numa simples correia de transmissão do director do campo. À medida que o tempo passava e a sua actuação se revelava nesse sentido, mais dependente ele ficava do lugar e com receio de o perder. Assim os captores conseguiam a desagregação do grupo, o desentendimento no seu interior, o seu enfraquecimento, a completa falta de iniciativas credíveis e com alguma hipótese de sucesso.
Como estratégia de destruição, foi uma estratégia eficaz. Será que se pode achar aqui alguma semelhança, respeitando-se as diferenças? Mas será que alguém está interessado em destruir os Serviços, a vida hospitalar e os Hospitais? Provavelmente não, mas um desejo cego de pôr as carreiras médicas em causa e acabar por eliminá-las poderá levar a isso. Se isso acontecer, haverá que responsabilizar alguém. E depois não se diga que foram atitudes e medidas impensadas.
Mas talvez a mira não esteja sobre as carreiras médicas. Ao fim e ao cabo outras carreiras estão a ter problemas, na área da saúde e fora dela. E não se afirmou já que o Procurador Geral da República não precisa de ser um Procurador (magistrado do ministério público)? E que os Juizes do Supremo Tribunal de Justiça não é necessário que sejam Juizes? Será que alguém neste país está a pensar em substituir as carreiras profissionais por uma espécie de carreirismo político?... (Pub. Tempo Medicina 18/9/2006)

11.9.06

Só para não pagar a alguns médicos?!

A modificação do decreto-lei que rege a realização e respectivo pagamento de horas extraordinárias por parte dos médicos no SNS, feita de modo a que os médicos em regime de não exclusividade e 35 horas semanais não sejam obrigados a fazer horas extraordinárias, parece ser pouco mais que uma “birra” do Senhor Ministro da Saúde. Na verdade, o problema que estava a um passo de desencadear uma greve médica mantém-se, isto é, os médicos nesse regime de trabalho continuam a ver o seu trabalho extraordinário pago numa percentagem do mesmo trabalho realizado pelos seus colegas em 42 horas e exclusividade. Apenas de agora em diante podem legalmente recusar-se a fazê-lo, e é o que muito provavelmente irá acontecer. Nem precisam para isso de fazer greve, que, aliás, já foi desconvocada.
Não se trata aqui de serem médicos que gostam de trabalhar menos que os outros, o que se passa é que todos gostam de ver o seu trabalho dignificado, e uma das maneiras de dignificar o trabalho de cada um é recompensá-lo adequadamente. E não é isso que acontece, se exactamente pelo mesmo trabalho de outros colegas estes médicos receberem menos 40% do que aqueles recebem.
O problema de princípio permanece, pois, exactamente o mesmo. Mas parece, parafraseando um político português actual, que aqui “não se trata de princípios, mas de fins”, e estes são – como não poderia deixar de ser e é declaradamente reconhecido – poupar dinheiro na saúde. Nem que seja, como neste caso, à custa de quem dá o corpo ao manifesto, executando as tarefas para que os hospitais foram criados: tratar doentes. Mas daqui é que nasce o espanto: se esses médicos não fizerem trabalho extraordinário, porque não são obrigados, ele terá de ser feito pelos outros, os das 42 horas, esses sim expressamente obrigados a fazê-lo por esta modificação da lei. Então?... A alteração legislativa em questão foi feita só para não pagar horas extraordinárias a alguns médicos?!
Os obrigados por esta lei a trabalhar fora do seu horário normal – pois é disso que as horas extraordinárias tratam – receberão a hora extraordinária pelo valor máximo legal, por isso não se antevê qualquer poupança em remunerações. O que se antevê em muitos hospitais é dificuldades em manter equipas e serviços de urgência com as condições mínimas imprescindíveis para uma assistência adequada aos doentes e formação pós-graduada dos internos organizada e credível. Há que se perceber que as horas extraordinárias existem sobretudo pelos quadros de pessoal serem pequenos, e se com isso se consegue gastar menos nos salários mensais, em contrapartida tem de se gastar mais em trabalho feito para além dos horários de trabalho dos funcionários. Acresce o facto de no trabalho médico ter de haver um limite temporal, em nome da segurança dos doentes e dos próprios médicos. Atingido esse limite – definido até por lei, esta ainda não revogada – cada médico não deve, nem legalmente pode, trabalhar mais. Por isso será difícil que os médicos em exclusividade, mesmo sobrecarregados ao máximo permitido no seu trabalho extraordinário, possam fazer o trabalho deles e o dos outros.
Quer dizer, esta decisão do Conselho de Ministros tem com certeza um alcance, mas que não nos parece claro. Admitimos que não seja só para deixar de pagar a alguns médicos e pagar a outros, ou para desmobilizar momentaneamente e in extremis uma greve anunciada. Muito menos que seja só para “castigar” os médicos que estavam a falar em fazer essa greve… Teremos agora de esperar para ver as consequências e os desenvolvimentos por parte do Ministério da Saúde, isto sem que nos possam acusar de ter ficado calados e não alertar de imediato para os problemas que dela podem advir a curto e médio prazo. A responsabilidade é do Senhor Ministro, aguardemos. (Pub. Tempo Medicina 11/9/2006)

1.9.06

Sinais preocupantes...

O senhor ministro da Saúde passou o mês de Agosto a vir repetidamente a público dizer que «não está minimamente preocupado» com a greve dos médicos (anunciada para Setembro) e que os portugueses também não deveriam estar. É claro que ele conhece, como todos os portugueses, a deontologia especial dos médicos que, embora cheios de razão, não irão nunca fazer perigar a vida dos doentes para que o ministro faça o que deveria fazer. Com certeza que ninguém estará à espera de ver os mortos amontoarem-se aos pés dos médicos como forma de pressão sobre os economistas do Ministério, ou doentes a serem deixados morrer, um a um, até que as reivindicações dos seus médicos sejam finalmente satisfeitas… Provavelmente nunca iremos ter que fazer em Portugal o que os nossos colegas belgas já uma vez foram obrigados, in extremis, a fazer: abandonar todos o país, de uma só vez, até o governo ganhar juízo. E ganhou.
Na visão do ministro, portanto, está tudo bem, todos podem ficar descansados. E isso é que é um sinal preocupante. Parece que nem lhe passa pela cabeça que a greve anunciada tem uma razão, nem está minimamente preocupado com ela. E é uma razão simples: o Governo ter dado o dito por não dito, para poder reduzir pontualmente a remuneração de alguns médicos, mantendo o seu trabalho. O trabalho feito é o mesmo, o pagamento de cada hora é que diminui. Com uma justificação confessa, e única: para poupar dinheiro.
Dentro da lógica economicista reconhecidamente redutora deste Ministério, tudo vale para poupar dinheiro. Nem que seja à custa directamente de quem trabalha, de quem dá o corpo ao manifesto. Reduz-se o valor da hora extraordinária. Como se reduzem as equipas, se contratam os que fiquem mais baratos, sem olhar à sua diferenciação profissional e à qualidade do seu trabalho, se reduzem os serviços, e os hospitais e os centros de saúde.
E isso é outro sinal preocupante. É que toda a racionalização apregoada — que é antes racionamento — tem incidido, na prática, no atendimento aos doentes. E a empresarialização da saúde pública, teorizada e posta em prática pelo agora senhor ministro da Saúde — iniciada por ele em 2002 e prosseguida até hoje — começa a ter laivos de certas empresas «à portuguesa», de que todos vamos ouvindo falar com frequência, quando começam a ter alguma dificuldade financeira, ou pelo menos não dão os lucros pretendidos: primeiro deixam de pagar os ordenados, e não pagam os subsídios devidos; depois despedem empregados; para, finalmente, abrirem falência e fecharem as portas.
Mas esperemos que sejam só sinais preocupantes, e a doença não se concretize, ou seja tratada a tempo. A Saúde é um bem público de necessidade fundamental em qualquer país. E a nossa até é a que tem ficado mais barata em toda a Europa comunitária dos doze, diga lá o que se disser para justificar o que se quer fazer dela. E a verdade é que com as mudanças feitas, e as restrições todas que têm sido impostas na assistência aos doentes, a despesa com a Saúde até acabou por aumentar. Por que será? (Pub. Tempo Medicina 4/9/2006)

30.8.06

Cobrar a dívida fiscal pagaria os custos da saúde

Este governo tem demonstrado a mania obsessiva – bem conhecida já e que se tornou até emblemática – de diminuir os gastos com a saúde. Quando falam em diminuir custos, pode crer-se que é da saúde que se vai falar logo de seguida. Como se os gastos com a saúde não tivessem sido bem aproveitados, pelo menos até há pouco tempo (4 anos), com a saúde portuguesa colocada num lugar invejável entre as saúdes nacionais de todo o mundo, ombreando com a dos países ricos, e gastando no entanto menos que qualquer outro país da CEE. Só porque o nosso PIB não descola dos últimos lugares – as empresas portuguesas produzem pouco – é que esses custos representam uma percentagem alta do PIB nacional, quase 10% (ainda assim dentro dos valores da comunidade europeia). Em resumo, a saúde tem sido boa, é cara mas não é escandalosamente cara. O que preocupa é que, apesar das medidas tomadas pelos governos dos últimos anos, levando a limitações na assistência aos doentes, os custos com a saúde aumentam constantemente. E parece que no orçamento do nosso governo não há dinheiro suficiente para ela.
Há dias foi tornado público que a dívida ao fisco no nosso país ascende a 10% do PIB. Quer dizer, se os caloteiros às finanças fossem obrigados a pagar o que devem, a saúde ficaria paga durante um ano.
O governo tem a obrigação de recolher os impostos e com eles acorrer às necessidades básicas dos cidadãos, entre elas a saúde. É a Constituição que o diz, independentemente de haver outros sistemas privados que o possam também fazer, para subgrupos de pacientes, ou para todos, se for essa a sua vontade. E o governo tem falhado, ao permitir que muitos não paguem impostos. É louvável que se queira poupar na saúde pública se se mantiver a boa qualidade. Já não será de todo aceitável que se queira poupar tanto que se diminua a qualidade da assistência aos doentes, ou que estes tenham que pagar cada vez mais, enquanto os impostos de alguns são deixados impunemente por pagar. O mesmo se passa, aliás, com a Segurança Social e as reformas: deixam-se muitos não pagarem para a Segurança Social, por isso não há dinheiro, como consequência reduzem-se as reformas…
Gastar o menos possível, mas arranjar dinheiro para o que é realmente preciso – é tudo uma questão de gestão!

25.8.06

Os custos da saúde

Sou português e médico, agora representante de médicos que dedicaram a vida profissional a trabalhar nos hospitais, em exclusividade ou não. Os médicos têm a mística consubstanciada no juramento de Hipócrates, que os leva a pretender sempre, com naturalidade, o melhor para o doente. É uma "deformação profissional", que faz procurar em cada momento o melhor remédio, o exame auxiliar de diagnóstico mais adequado, as melhores condições para o doente. Tal ultrapassa questões políticas, a importância social ou financeira do doente, a rentabilidade económica do hospital. Se não puderem tratar adequadamente o doente, isso dói, marca, corrói. Uma vida não se pode traduzir em euros. Muitos não o entendem, a não ser que um dia lhes toque à porta, como doentes. A nós toca todos os dias.
Claro que como profissionais, e como cidadãos, não nos apartamos dos gastos com a profissão. Um jornal há tempos dizia que o Estado português despende 20 milhões de euros por dia com a saúde. É um número absoluto, e pergunto: é muito ou pouco? A ser correcto, ele está dentro do que é reconhecido internacionalmente que a saúde no nosso país globalmente (público e privado) custa: 9,6% do PIB (dados da OMS). E isso é muito? Não é? Para se ter uma ideia, veja-se que os EUA gastam 15,2% do seu enorme PIB. Na Europa comunitária, os gastos com a saúde em França são 10,1% do PIB local, na Alemanha 11,1%, na Grécia 9,9%. Também há Espanha com 7,7%, Irlanda, 7,3% e Reino Unido, 8%. Portugal está, pois, na média, mas se calcularmos o que cada país gasta realmente per capita com a saúde, o nosso país é de longe aquele em que a saúde fica mais barata: contra os nossos 1700 dólares temos 2389 do Reino Unido, 2500 da Irlanda, 1850 da Espanha, além de 2000 da Grécia, 3000 da Alemanha e 2900 da França, 5700 dos EUA. Anunciar que Portugal é um gastador desastroso com a saúde é uma falácia: na verdade é o que gasta menos em termos globais. O PIB é muito mais pequeno que o dos outros, e por isso a percentagem é relativamente maior.
Mas quando se gasta dinheiro, há que avaliar a sua rentabilidade. Perguntemos: o que se tem obtido entre nós com 1700 dólares por cabeça? Um Serviço Nacional de Saúde aberto a todos, podendo cada português recorrer aos centros de saúde e hospitais e ser atendido de acordo com as suas queixas clínicas sem ter de provar que tem dinheiro para pagar; medicamentos comparticipados, alguns a 100%; e hospitais bem equipados, com médicos com boa preparação de base, em boas escolas médicas, com formação pós-graduada contínua adequada e avaliada periodicamente, escalonados nos locais de trabalho pela diferenciação profissional e provas dadas. Um SNS com alguns problemas de funcionamento, mas nada impossível de ser corrigido.
No último relatório da OMS sobre sistemas de saúde dos vários países do mundo, o SNS português surge em 12.º lugar no desempenho global. É o 5.º da Europa comunitária, bem à frente dos EUA, que ocupam o 37.º lugar - Portugal é um país pobre com saúde de qualidade igual à dos ricos. Os gastos com a saúde têm, pois, valido a pena. Mas é evidente que o aumento do custo da saúde nos deve preocupar a todos. Em grande parte, deve-se a um avanço científico e tecnológico nunca antes observado e que nos deverá fazer sentir felizes a todos - enquanto possíveis doentes - por ser na nossa época. E também agrada aos médicos, que assim se realizam mais profundamente do ponto de vista profissional, deitando-se mais vezes felizes por terem ajudado nesse dia um doente há anos sem qualquer solução. Esses gastos são, por esse lado, bem-vindos. Com certeza devem ser racionalizados, mas um país socialmente evoluído não pode invocar falta de dinheiro para se atrasar do ponto de vista sanitário. É lícito procurar conter despesas na saúde, mas é preciso manter a qualidade da assistência ao doente. Diminuir gastos diminuindo qualidade não é grande habilidade...
Analisando a questão, peritos norte-americanos chegaram à conclusão de que cerca de 40% do orçamento para a saúde vai para a área administrativa, não contemplando portanto o binómio médico-doente. Pelo contrário, grande parte do trabalho dos administradores e administrativos é só tentar reduzir o que os médicos gastam com os doentes. E calcularam que cortando para metade esses custos administrativos poderiam pagar o acesso médico a todos os que naquele país não o têm neste momento estabelecido por falta de meios financeiros. Interessante, não é? E por cá? Mas uma decisão dessas tem-se mostrado difícil, porque lá, como noutros países, quem a deveria tomar move-se precisamente naquela área.
Outro modo de reduzir os custos, dizem os americanos, seria diminuir o número de hospitais e outros centros de atendimento a doentes. Na verdade, não são os salários do pessoal de saúde que justificam os custos crescentes, mas sim, para além do preço duma máquina burocrática e administrativa sempre a aumentar, o consumo pelos doentes de medidas diagnósticas e terapêuticas cada vez mais eficazes mas também mais caras. Se não houver acesso fácil e rápido dos pacientes aos cuidados de saúde, pode calcular-se que muitos acabarão por desistir. É claro que haverá aqueles para quem o atraso na ida ao médico acabou mal...
No economicismo da saúde o preço da saúde é limitativo. Mas, para o médico, um doente seu que morre tem um valor absoluto. Muito oportunamente, o nosso bastonário alertou já para o facto de ser uma falta grave do ponto de vista da ética profissional deixar de se tratar um único doente que seja, rico ou pobre, citadino ou rural, duma cidade grande ou duma aldeia pequena, para poupar dinheiro.
Em resumo, há que ter preocupação com os custos da saúde, mas há formas apropriadas de os conter, visando sempre manter a qualidade dos cuidados de saúde prestados. O nosso Governo quer obsessivamente poupar dinheiro com a saúde e nesse sentido tem vindo a tomar medidas que afectam sobretudo o atendimento aos doentes. Sem que tenha com isso conseguido travar o crescimento das despesas, eventualmente pela sobrecarga administrativa e burocrática que essas mesmas medidas acarretaram.
Aguardemos o que o Ministério da Saúde vai fazer. Seja o que for, o que conta é o resultado, e haverá sempre que o comparar com o que temos actualmente, sobretudo na assistência aos doentes, a qual é directamente resultante das condições de trabalho e da formação contínua dos médicos deste país. Que há que preservar, a bem do que é inestimável em qualquer povo: a saúde. Se o ministério tiver como desiderato final e único reduzir os gastos com a saúde, deverá ter como objectivo a Libéria, com gastos na Saúde de 4,7% do PIB e 17 dólares por cabeça. Saúde mais barata não há. Será que a vamos atingir?... (Pub. Diário de Notícias, 24/8/06)

22.8.06

Saúde em perigo

O mar na praia de Buarcos foi interditado ao público por perigo à saúde, devido a conspurcação fecal da água. Conhecendo as condições locais, até admira como isto não aconteceu antes. “Num país da CEE, isto é intolerável!”, dizia um turista italiano, alto e bom som. Há que corrigir o que está mal naquela zona, e isso vai custar dinheiro. Já devia ter sido feito, e embora estejamos sempre a tempo, agora já é tarde.
A saúde pública custa dinheiro, tem que se gastar para a obter, e para a manter. Os gastos nessa área são recompensados, pois a saúde é um dos pilares fundamentais duma sociedade feliz e produtiva. O não se querer gastar na saúde tem sempre, a curto, médio e longo prazo, maus resultados, eventualmente até desastrosos, porque por vezes é difícil refazer o que foi desfeito.
Em termos de saúde, o mote obsessivo do nosso governo é poupar. Quando fala em poupar, invariavelmente é na saúde. Que no nosso país, note-se bem, está perfeitamente ao nível da qualidade europeia comunitária. Veja-se que no último relatório da Organização Mundial de Saúde sobre sistemas de saúde dos vários países do mundo, o Serviço Nacional de Saúde português aparece em 12º lugar (a contar da frente, não dos últimos…), sendo o 5º na Europa, com a Inglaterra em 18º e os Estados Unidos da América a ocuparem apenas o 37º lugar. Que outra actividade estatal neste país tem uma “performance” (como agora se diz) semelhante? E com uma despesa global (público e privado) dentro dos valores europeus comunitários: uma percentagem (9,6 %) do PIB abaixo dos valores mais elevados lá referidos, e um valor absoluto, 1700 dólares “per capita”, mais baixo que qualquer um dos outros. Quer dizer, gastamos menos, por cabeça, para ter uma saúde melhor que a maior parte deles; apenas, como o nosso Produto Interno Bruto é baixíssimo, esse gasto aparece estatisticamente como uma percentagem relativamente elevada. Quer dizer, somos um país pobre com uma saúde de qualidade igual à dos ricos.
O gasto, portanto, tem compensado. É claro que nada é imutável, e é sempre possível fazer as coisas de modo diferente, até mais baratas e melhores. Mas a obsessão da poupança é má conselheira, como qualquer obsessão, principalmente numa área tão sensível e tão importante para o bem-estar das populações como é a saúde. Poupar a todo o preço não é medida que dê resultado, até porque a medicina que fica mais barata é a boa medicina, e para essa são precisos médicos com boa formação, bem treinados, ajudados por outro pessoal de saúde bem preparado, e todos com boas condições de trabalho. Para isso tudo é preciso gastar dinheiro.
O governo tem feito mudanças e tomado medidas, quase só no sentido restritivo, de racionamento de meios, de diminuição de serviços, de hospitais, do número e diferenciação dos profissionais, e do pagamento do seu trabalho. E, apesar disso, a despesa continua a subir, provavelmente pelos encargos administrativos e burocráticos que acompanharam essas medidas. A responsabilidade na Saúde é do Ministro da Saúde, e do Primeiro-Ministro, aguardemos o que se vai passar nesse campo. Modifique-se, inove-se, mude-se, mas mantenha-se pelo menos um Serviço Nacional de Saúde em 12º lugar no mundo em qualidade.
Veremos em que posição vamos estar no próximo relatório da OMS. É que se o objectivo essencial for poupar, então deveremos procurar atingir a Libéria, que gasta apenas 4,7% do PIB e 17 dólares por cabeça. Saúde mais barata não há… (Pub. As Beiras, 24/8/06)

11.8.06

Os dois Antónios do PS na Saúde

O Dr. António Arnaut, advogado de Coimbra e membro antigo do Partido Socialista, foi o criador do Serviço Nacional de Saúde (SNS), há mais de 25 anos. E ficou na História por bons motivos, "pai" dum serviço que neste último quarto de século funcionou perfeitamente, e que até há uns meros 5 anos a Organização Mundial de Saúde classificava em 12º lugar entre todos os sistemas de saúde do mundo, com o 5 º lugar na Europa e muito à frente do inglês e do norteamericano (37º), sendo apesar disso o que gasta menos entre todos os dos países da Europa dos doze. Um Serviço de Saúde verdadeiramente aberto a todos, ricos e pobres, nas cidades maiores e nas aldeias mais recônditas, tendencialmente gratuito, e permitindo com facilidade e "souplesse" a articulação com as Carreiras Médicas. Estas foram um passo decisivo na organização médica e na nossa formação pós-graduada, responsáveis por um avanço ímpar na nossa História em termos de preparação técnico-científica dos médicos, e sobretudo na sua homogeneização em todo o território, desde os hospitais maiores até aos mais pequenos e distantes dos grandes centros.
O outro António, o Dr Correia de Campos, socialista mais recente, chegou ao Ministério da Saúde em 2002, saiu e voltou a entrar, e desde sempre tem demonstrado para com a Saúde uma preocupação economicista redutora, que coloca acima de tudo e de todos. Essa preocupação veio fixar muito claramente um preço à saúde, e à vida (habitualmente ditas sem preço), pondo cada vez mais restrições nessa área. Tem o objectivo confesso de poupar dinheiro com a saúde, o que justificou as medidas que tem tomado para alterar o SNS, e que ao que tudo indica vão pôr em perigo as próprias Carreiras Médicas. Apesar dessa preocupação, e das medidas que tem tomado, a despesa não pára de crescer, eventualmente pela sobrecarga administrativa e burocrática que elas próprias acarretaram. Obrigando a uma cada vez maior comparticipação financeira directa dos doentes, já agora uma das mais elevadas na Europa dos doze.
São estes os dois Antónios do PS em questão. Um ficou famoso, o outro vamos a ver. Tudo dependerá dos resultados.

Alteração nas horas extraordinárias

O Senhor Ministro da Saúde manobra por vezes dum modo que faz lembrar os cuidados e elegância de um elefante irrompendo numa loja de loiça. As suas últimas declarações sobre as mudanças que pretende estabelecer para as horas extraordinárias dos médicos são disso exemplo. Quanto às alterações sociais que essas alterações possam provocar, "... é a vida...".
O modo de actuar é ele que o escolhe, e é dele também a responsabilidade das decisões que tomar. Como será sempre dele (e não dos seus assessores e conselheiros) a responsabilidade das consequências para a saúde do País das suas decisões enquanto Ministro da Saúde. Por isso vamos esperar.

Programa da APMCH

O Ministério da Saúde produziu, desde há anos, legislação que alterou de modo estrutural o Sistema de Gestão dos Hospitais e criou condições para o desmantelamento das Carreiras Médicas e do próprio Serviço Nacional de Saúde.
A Legislação produzida em 2002, no primeiro período do actual Ministro da Saúde enquanto tal, nomeadamente o Decreto-lei 32/2002 de 26 de Fevereiro e a Lei 27/2002 de 8 de Novembro, teve graves repercussões na carreira hospitalar, no estatuto de todos os profissionais de saúde e na gestão dos Hospitais, dando início à destruição das Carreiras Hospitalares sem ter o cuidado de criar uma carreira hospitalar alternativa, indispensável para garantir a qualidade da formação, o aperfeiçoamento técnico-científico e a progressão profissional dos médicos hospitalares, baseada na qualidade do seu trabalho avaliada pelos seus pares em condições de isenção e independência.
A alteração de algumas das bases da lei de Bases da Saúde criou um novo regime jurídico que permitiu o contrato individual de trabalho para médicos e outros profissionais da saúde, sem garantir a contratação dos avaliados como melhores e afastando-os das carreiras médicas. Não houve o cuidado de criar um contrato colectivo de trabalho que permitisse, a nível nacional, as condições necessárias para a sua integração na carreira existente ou numa nova carreira transversal, a qual pudesse coexistir em todos os Serviços dos Hospitais públicos (SPA), EPE e, eventualmente, privados, sempre que esses Serviços fossem considerados idóneos pela Ordem dos Médicos.
Não nos parece que os actuais Hospitais EPE, sem a estruturação conferida e tornada obrigatória pelas carreiras, queiram gastar o seu orçamento e recursos em actividades não lucrativas como é o caso da necessária e adequada formação dos profissionais da saúde. Quererão, isso sim, contratar profissionais já formados. Formados onde? E em que condições?
Aliás, o inquérito realizado pela APMCH, em 2004, demonstrou claramente que as condições de funcionamento nos Hospitais SA eram gravosas para os trabalhadores da saúde e, nomeadamente, para os médicos, e que tanto as condições de internamento como o funcionamento do serviço de urgência pioraram mais nestes Hospitais do que nos Hospitais SPA. Apesar disso, de acordo com dados recentes do próprio Ministério da Saúde, veiculados no Jornal "Expresso" de 13/05/06, os novos Hospitais EPE tiveram, no último ano, maiores derrapagens na execução dos seus orçamentos que os Hospitais SPA. Assim, em termos de custos globais, os Hospitais EPE subiram, em média, 9,7% e os SPA 4,8%. Por outro lado, no que respeita ao consumo com medicamentos a subida foi de 12,4% nos EPE contra 9,6% nos SPA.
Os malefícios para a carreira hospitalar, que culminarão, ou já culminaram, na sua total destruição, são nos Hospitais EPE exactamente os mesmos que eram nos SA, uma vez que estes Hospitais continuam a usar os contratos individuais de trabalho médico por vezes sem qualquer ligação hierárquica aos Serviços e com médicos desinseridos de qualquer carreira, sem qualquer garantia ou exigência de maior ou melhor preparação profissional.
No que respeita a custos, os doentes portugueses têm de ser despenalizados, passando a contribuir para a despesa total de saúde com percentagens até 25% (actual média europeia), e não com percentagens superiores a 40 %, tal como se passa agora de acordo com dados da OCDE.
Portugal tem de deixar de ser o País da União Europeia (UE) em que o Sector Público investe menor percentagem nos cuidados de saúde, menos de 60% contra 80% em média na UE.
Os Hospitais, cujo orçamento anual deve ter em conta a sua rentabilidade e a qualidade dos serviços prestados, terão que ser dotados de um estatuto jurídico que lhes garanta autonomia administrativa e financeira.
Ao Sector Privado, que não deve surgir à custa da destruição do Sector Publico, devem ser dadas possibilidades e responsabilidades na área da saúde, pois há condicionamentos que podem tornar mais rentável e de acesso mais rápido este tipo de assistência médica.
No entanto, compete ao Estado controlar as formas empresariais privadas da medicina, articulando-as com o Serviço Nacional de Saúde, pois não se pode deixar este Sector, sensível e essencial à população, entregue às leis do mercado, com os consequentes atropelos aos valores humanistas da nossa civilização, europeia ocidental.
De acordo com os nossos Estatutos tudo faremos para o desenvolvimento científico, cultural e social dos médicos da carreira hospitalar, garantindo uma crescente dignificação profissional e assumindo com firmeza as posições mais adequadas sobre legislação e normas regulamentares hospitalares que digam respeito ao regulamento, equipamento e instalações hospitalares, às carreiras médicas hospitalares e ao internato médico, nomeadamente ao de especialidade.
Repudiaremos firmemente toda legislação contra as Carreiras Médicas antes que surja uma carreira médica alternativa que garanta a formação contínua dos médicos hospitalares e a sua diferenciação técnica, bem como a qualidade da assistência prestada.
As Carreiras Médicas, de acordo com a legislação existente, são a base do SNS, pelo que daremos o nosso apoio às iniciativas legislativas que melhorem o seu funcionamento e levem ao seu aperfeiçoamento, posição que assumimos com total independência em relação a todos os partidos políticos.
Para uma defesa efectiva e adequada da formação profissional, da Carreira Hospitalar e do Serviço Nacional de Saúde, iremos estabelecer contactos e colaborar com todas as Instituições representativas das Carreiras da Saúde, tomando posições conjuntas sempre que possível, e que serão oportunamente divulgadas nos meios de comunicação social.
Comprometemo-nos a divulgar atempadamente a todos os Sócios as posições que iremos assumir em defesa das carreiras médicas e do nosso Sistema Nacional de Saúde, ouvindo-os com a frequência necessária e estimulando-os a manifestarem as suas opiniões, na defesa da qualidade e da dignidade da sua profissão.