16.6.10

DESPERDÍCIOS

Ouve-se dizer que na Saúde há 15 a 20 % de desperdício. Não sei como chegaram a esse número, e queira Deus que ele não se venha a revelar como outros que por aí circularam como verdadeiros e absolutos, que até levaram a decisões políticas, tais como o número de médicos no País e o número de habitantes por médico, e que afinal parece que não eram bem assim… Mas também não interessa muito. Em Portugal não interessa todo aquele rigor matemático que, aliás, habitualmente se começa logo por pôr em causa (saber de experiência feito…), como eu próprio agora fiz. Acredito que haja desperdício, pronto.
Mas de que desperdício estamos a falar? Os americanos são conhecidos por fazerem contas: calcularam eles que 40% do orçamento da Saúde nos EUA vai unicamente para o sector administrativo e não para tratar doentes. E que esse gasto financeiro se traduz sobretudo em tentar impedir os médicos de gastarem dinheiro com os doentes. Nos Estados Unidos da América; e em Portugal ?
Sendo desejável que os médicos gastem com os doentes apenas o que for necessário e não mais nem menos, não parece que seja o pessoal administrativo que pode conseguir esse objectivo. Por isso na América se considera aquela sobrecarga financeira como um desperdício.
Em Portugal, os hospitais passaram a estar sob a tutela da gestão administrativa, sobrepondo-se esta em absoluto à clínica. Foram, por isso, invadidos por multidões de administradores e administradores-like, o que, obviamente, veio onerar significativamente o seu funcionamento, não só pelos vencimentos-base e horas extraordinárias destes (o que não será despiciendo), mas também por toda a sua actividade. Como a função do hospital continua a ser tratar doentes, tudo o que for para além disso poderá ser considerado um desperdício em época de aperto financeiro. A poupar, que se poupe no farelo, deixando ficar a farinha.
Em França, na primeira linha de reacção às dificuldades económicas do momento estiveram cortes em pessoal administrativo nos hospitais. Em médicos e enfermeiros não se mexeu.
A modificação introduzida na gestão hospitalar teve como objectivo declarado a redução dos custos com a Saúde, que na altura se considerava estarem a tornar-se incomportáveis. Pois bem, ao fim de alguns anos da nova gestão, com aumentos de prejuízo de 40% ao ano, com 39 milhões de euros de despesa a mais do previsto só no primeiro trimestre deste ano, como a poderemos classificar? Só duma maneira: fracasso.
Fracasso económico, com certeza. Mas mais do que isso, e pior do que isso: fracasso no funcionamento dos hospitais sob vários aspectos, em que avulta a incapacidade de gestão da qualidade clínica, do seu fomento concertado e sustentado e a sua avaliação contínua.
E este é o fracasso maior, sem dúvida. E que ocasiona, e vai ocasionar, mais desperdício. Porque a medicina mais barata é a boa medicina, e essa só se consegue com bons médicos, não com vigilantes administrativos. Não se consegue recusando adquirir os melhores medicamentos porque são caros, nem impedindo os médicos ou os enfermeiros de trabalhar porque não se lhes quer pagar trabalho extraordinário, ou desperdiçando balúrdios na instalação de métodos electrónicos de registo de assiduidade (porque o papel é antigo, e os administrativos modernos fazem tudo no computador, sem papel), que vai acima de tudo limitar a actividade clínica a um espaço temporal. Bom, se calhar um objectivo colateral será precisamente este: menos trabalho médico, menos despesa com doentes…
A desestruturação que a implementação da nova era de gestão produziu nos hospitais, juntamente com a saída em massa dos mais velhos e mais graduados, perturbou seriamente o seu funcionamento clínico, e a formação contínua dos profissionais médicos, sem estarem instalados, ou sequer previstos, mecanismos intra-hospitalares que possam a breve trecho recuperar o equilíbrio perdido. Nesse aspecto, a situação configura muito um beco sem saída.
Médicos contratados (às vezes a peso de ouro) à peça, à hora, ao banco, ao serviço, à função, não são com certeza garantia de qualidade, se não forçosamente individual, seguramente institucional. Medicina, por isso, baseada em maior número de exames auxiliares de diagnóstico, muitos deles repetidos inutilmente, maior permanência dos doentes no hospital à espera duma solução, passando de médico para médico, quando nem a triagem inicial para a especialidade adequada é muitas vezes correctamente feita. Quer dizer, muito maior despesa. Desperdício em relação ao que poderia, e deveria, ser. E já foi.
Toda a modificação que levou a isto teve autores. Não são muitos, são apenas alguns, sempre os mesmos, e são eles os verdadeiros responsáveis por grande parte destes desperdícios. Alguns deles continuam a falar, a tentar explicar o que correu mal, a culpa não foi deles, a culpa é de todos os outros. E então aparecem as inevitáveis soluções das outras empresas “à portuguesa”: quando a empresa está mal despedem-se empregados, deixa de se pagar o ordenado aos outros e limitam-se-lhes as horas de trabalho (para reduzir horas extraordinárias), não se compra matéria prima para poupar dinheiro, fecham-se instalações, aliena-se património da empresa… e, finalmente, abre-se a falência que desse modo se tornou inevitável.
Encerram-se centros de saúde, urgências, serviços hospitalares, consultas, hospitais, limita-se o trabalho extraordinário e de prevenção, dificulta-se o tratamento de algumas patologias, reduz-se o tratamento doutras a poucos centros, eliminando todos os outros, mandam-se doentes para Espanha. E os verdadeiros problemas, que foram criados e que levaram a esta despesa imensa com resultados de tal modo problemáticos e sem futuro, ficam por discutir. Porque quem os criou, ou apoiou a sua criação, continua a falar e a ser ouvido. Isso é que se calhar é outro desperdício. Será altura de quem de direito reconhecer o que foi mal feito e partir para outra, com outros projectos e outros intervenientes, deixando de ouvir uns e passando a ouvir outros, sobretudo os que de há muito vêm apontando o que agora se tornou por demais evidente.
C. Costa Almeida, in Semana Médica

SÓ POR BRINCADEIRA

O prejuízo com a Saúde EPE já é gigantesco, e a aumentar a uns vertiginosos 40% ao ano, segundo dados oficiais.
É um facto incontornável e preocupante, com certeza. Mas eis senão quando, face a esse descalabro financeiro, a Senhora Ministra da Saúde vem dizer que já estão a ser tomadas as medidas correctoras: que já foram dadas indicações aos hospitais para reduzirem as horas extraordinárias. E esta, hein?!... Só por brincadeira!
Então a culpa, afinal, é de quem trabalha, e sobretudo de quem trabalha fora de horas, e para além do que devia trabalhar! Porque a noção de horas extraordinárias é essa, e quem as ganha é porque trabalhou para além do tempo a que contratualmente estava obrigado. Os médicos ganharam porque viram doentes, porque os estudaram, os trataram, enfim, desempenharam o papel que é a razão de ser dos hospitais. Mesmo dos hospitais-empresa. E agora a culpa do prejuízo imenso dessas “empresas” é deles, por trabalharem! Só por brincadeira mesmo.
Mas, se virmos bem, não se descortina razão por que as empresas-hospital haveriam de ser excepção na empresarialização típica da nossa terra. Quer dizer, os maus resultados da gestão nunca são culpa de quem geriu, são sempre externos à administração, sempre culpa da crise, dos mercados, dos trabalhadores, seja do que for. Isto se as coisas correrem mal, porque se tudo correr bem, ou menos mal, é evidente que há motivo para bónus aos administradores. Quando o prejuízo é grande, e mantido, e faz agigantar a sombra da falência, então começa-se invariavelmente por “emagrecer” a empresa despedindo funcionários, deixa-se de lhes pagar ordenado, diminui-se a despesa que fazem reduzindo a sua actividade produtiva… É o costume entre nós e, se o resultado for também o habitual, isso não vai impedir a falência. A não ser que o Estado intervenha com algum subsídio, ou com a nacionalização…
Mas concentremo-nos na Saúde, que é o nosso negócio. A reforma introduzida na gestão dos hospitais, centrando-a no sector administrativo e dando a este a primazia absoluta, teve como justificação a necessidade de se reduzirem drasticamente os custos do SNS, com vista à sua sustentabilidade financeira. É evidente que só uma palavra traduz o resultado obtido: fracasso.
E fracasso tanto maior porque à despesa, crescente de ano para ano, se juntou a destruição duma estrutura intra-hospitalar que era fulcral na formação contínua e na avaliação dessa formação, que estimulava os melhores a mostrar que o eram e os outros a procurar sê-lo, e que era um poderoso atractivo para a vida hospitalar. Desestruturados os hospitais do ponto de vista clínico, com hierarquizações de ocasião, com a gestão clínica subalternizada, compreende-se que a boa medicina – aquela que fica barata e é eficaz – lá seja praticada apenas ocasionalmente. E isso sai caro.
Desaparecida a atracção duma carreira hospitalar, as contratações são feitas por quem dá mais, a termo indefinido ou à peça, à hora, ao dia, ao banco ou ao mês, sem controlo de qualidade, tratadas directamente com os interessados ou através de agências de emprego cujo interesse é, naturalmente, o lucro. Isto encarece o produto utilizado, que começa a não ter selo de garantia, vindo das mais variadas proveniências, nacionais e estrangeiras.
Uma antiga ministra da Saúde socialista diz que a empresarialização dos hospitais não teve por objectivo baixar os custos, que já se previa que desse modo subiriam, mas sim tornar as contas da Saúde sustentáveis no papel, desorçamentando contabilisticamente muitas das despesas. Ora toda esta multidão de contratos profissionais de ocasião, uns renováveis automaticamente, outros renegociados de vez em quando, que acarretam no seu conjunto muito maior despesa, têm a virtude de não se enquadrar obrigatoriamente na rubrica dos vencimentos, e isso é importante para os administrativos. Para poderem apresentar as variações que acharem melhor nos relatórios de gestão intercalares e finais, nos balancetes e gráficos, nisso tudo. Mas que sai caro, sai.
Horas extraordinárias são, pois, uma preocupação do passado. Façam-se contratualizações específicas, comprando mais uns serviços médicos, enquadrados entre rabanetes e couves de Bruxelas para a cozinha, e a coisa reduz-se logo.
Os americanos constataram que 40% do dinheiro gasto na Saúde é para os administrativos, não para os doentes e para quem trata deles. Nós por cá não sabemos ao certo, mas vemos a imensidade de administradores que inundou os nossos hospitais, toda a burocracia crescente que suporta e caracteriza essa classe, dominante na vida hospitalar, o balúrdio que se gasta, por exemplo, no sistema electrónico de controlo de assiduidade dos médicos (originalidade que não conheço em nenhum hospital de nenhum país da Europa Comunitária), com o trabalho e despesa que dá a permanente justificação das desconformidades dos que ainda insistem em querer tratar doentes sem se preocuparem com horários, e imaginamos uma percentagem ainda maior.
A despesa nos hospitais não pára de crescer, e só por brincadeira é que as horas extraordinárias que ainda se pagam desempenham aí algum papel. Mas pior do que isso é o vazio de organização estrutural dos hospitais EPE em termos de formação e de avaliação do seu resultado. Os internatos vão-se mantendo, mas estão dependentes da qualidade dos formadores, de momento ainda assegurada pela vis a tergo das carreiras médicas extintas (restam uns concursos residuais, sem repercussão nos próprios hospitais e na sua actividade), mas em perigo iminente dado o esvaziamento dos hospitais públicos em termos de médicos com provas dadas e qualidade assegurada. Qual a avaliação de qualidade no futuro? Este é que é o grande problema, maior ainda que o económico-financeiro.
Carreiras médicas não podem coexistir com gestão EPE, isso é claro. Mas temos de saber quem faz o quê, e com que qualidade. Este ponto fulcral parece o verdadeiro beco sem saída desta nova gestão. Que se preocupa mais com horas extraordinárias, com a maneira de não as pagar ou de as escamotear, e muito menos com a qualidade presente e, sobretudo, futura. E isto não é brincadeira.
Os lugares directivos podem ser de nomeação política, mas a qualidade não se conquista por decreto. Serviços idóneos para formação pós-graduada, centros de referência para algumas patologias, centros de elevada diferenciação, tudo está dependente da definição de qualidade. E como é esta avaliada e, mais importante ainda, obtida, sem uma estruturação definida para a atingir, como acontece agora? Será que se pretende que o “achismo” aqui triunfe também? Haverá quem anseie por isso, mas seria enganarmo-nos a nós próprios, enquanto médicos e enquanto doentes que podemos ser todos. Iremos simplesmente estabelecer que quem sabe fazer uma só coisa e a faz à exaustão é que é forçosamente bom? Ainda por cima numa situação empresarial que aconselha à flexibilização dentro dos empregos, à versatilidade dos trabalhadores, numa adaptação a funções variadas de modo a tornarem-se mais rentáveis? Ou será que iremos ter de, finalmente, avaliar os resultados de todos? E teremos para tal engenho e arte, e dinheiro? A verdade é que algo terá de ser feito.
É um futuro incerto o que nos espera, neste tempo de fim de época civilizacional que vivemos. Na Saúde quis-se mudar o que durante dezenas de anos funcionou bem; agora há que encarar a situação e encontrar uma nova solução, assumindo o que foi mal feito. Sem brincadeiras.
C. Costa Almeida, in Rev Port Cirurgia