17.11.08

Mas então, afinal...

O Verão que passou trouxe três factos novos à saúde do nosso país. O primeiro é a constatação de que há falta de médicos, e uma falta grande e com tendência para se agravar nos próximos anos, e os outros são duas maneiras que o governo engendrou para a corrigir, “adquirindo” de repente ou num tempo muito curto mais umas centenas de licenciados em Medicina.
Mas então afinal há falta de médicos em Portugal?! E esse panorama vai piorar dentro de alguns anos? Mas isso não se passava já há quatro ou cinco anos atrás? Nessa altura não veio o Governo afirmar que não havia nada falta de médicos, se calhar até havia demais, estavam era mal distribuídos? E a comissão governamental nomeada especificamente para avaliar a situação não transmitiu essa conclusão? Estaremos todos a ser vítimas de um acidente vascular cerebral colectivo que nos apaga memórias recentes e confunde o espírito?
Há erros grosseiros, com repercussões dramáticas, que simplesmente não se podem ter. Não quando implicam a governação de um país, ainda por cima numa área tão sensível e tão importante para os seus cidadãos como é a saúde. Não se pode errar tanto. E principalmente não se pode depois vir calmamente dizer tudo ao contrário, no fundo esperando que como de costume a culpa seja “da política”. É verdade que “a política” tem sido responsável por tanta coisa mal feita neste país, tanta que já nos habituámos. Mas quem lida com a saúde sabe que há hábitos fatais, quer isto dizer que têm de se perder porque senão podem conduzir rapidamente à morte.
A limitação da entrada de estudantes nas nossas Faculdades de Medicina assentou afinal em contas e cálculos mal feitos. Pois expliquem isso agora aos alunos com médias de 17 e 18 valores no 12º ano que não conseguiram seguir a sua vocação para médico. E ao jovem estudante com média de 18,43 que não pôde entrar em Medicina porque a nota mínima nesse ano foi de 18,45. E afinal faziam falta, deviam ter entrado, eles e muitos outros, já que a classificação mínima exigida tem apenas que ver com o número total de alunos a admitir. E esse deveria ter sido muito maior, dizem-nos agora: às centenas. Como é possível errar tanto?! Mas perguntamo-nos também, à cautela: as contas de agora estarão bem feitas? Serão precisos tantos?...
Os médicos são processados judicialmente pelos seus erros; os conselhos de administração dos hospitais EPE são responsabilizados pessoal e individualmente pela má gestão económico-financeira (e tarda que o sejam também pelo malbaratar ou desbaratar dos recursos humanos e da capacidade instalada nos hospitais que lhes foram confiados); já se percorreu algum caminho no sentido de responsabilizar os juízes quando cometem erros (no Egipto antigo o Faraó mandava cortar as orelhas aos juízes que julgavam mal). E os nossos políticos? Continuarão a esconder-se impunemente atrás da “política”?...
Na sequência daquele erro vem o segundo facto notável deste Verão: o anúncio da importação de centenas de médicos do estrangeiro (da inevitável Cuba, mas também doutros países, fora e dentro da CEE), responsabilizando-se o nosso Governo pelas despesas com o processo de equivalência dos oriundos de fora da Comunidade Europeia, cubanos incluídos. Quer dizer, tem de se pagar para virem para cá, e virão por certo não os melhores da terra deles, esses ficarão lá ou emigrarão para locais mais apetecíveis para médicos bem preparados, com apetência científica e desejo de progredir enquanto profissionais. Isto porque a nossa medicina pública, tradicionalmente mal paga mas que tinha ainda assim, numa medida razoável, atractivos nesse aspecto, deixou de os ter com a sua empresarialização e o fim das carreiras médicas. Atente-se, por exemplo, no predomínio exigido da quantidade sobre a qualidade nos hospitais-empresa; na substituição da grande cirurgia por pacotes enormes de cirurgia de ambulatório ocupando nalguns hospitais o espaço operatório daquela, perante a indiferença ministerial; no encerramento da prestação de serviços em algumas patologias, com afastamento dos doentes para outros hospitais, por ficarem caros à empresa-hospital; na dificuldade crescente de introdução de medicamentos novos e de aquisição e pagamento de instrumentos e material de consumo mais sofisticados e com aplicação menos frequente. Nos hospitais públicos a gestão clínica cedeu lugar à gestão puramente administrativa, atulhados que estão de administradores limitando, complicando e encarecendo a actividade clínica, razão de ser da sua existência. Estabeleceu-se uma enorme dificuldade em fazer investigação clínica, com equipas médicas desmotivadas e compostas e recompostas a bel-prazer de quem manda no hospital, sempre numa lógica economicista de contratação dos mais baratos e cordatos, que não dos melhores. E nem vale a pena falar duma quase absoluta falta de investigação experimental. Se juntarmos a tudo isto o facto da saída de muitos dos médicos mais experientes desses hospitais, uns para hospitais privados, outros por reforma, a grande maioria antecipada (porquê?...), ficamos com o panorama que no momento presente a medicina pública hospitalar em Portugal oferece.
Compreende-se assim que a maioria dos médicos que para cá venham o façam apenas numa lógica de emigrante mercenário, que vem ganhar “o seu”, empregar-se por exemplo como tarefeiro à hora numa dessas empresas de aluguer de médicos que por aí agora pululam, geridas por administradores hospitalares, por médicos ou mesmo por enfermeiros. E eu a esses colegas até os compreendo (afinal o nosso Ministério da Saúde não lhes oferece muito mais), enquanto que outros, os de cá, se desqualificam desempenhando um trabalho médico desgarrado, ocasional e indiferenciado a troco apenas de um pagamento principesco em comparação com o que auferem do seu trabalho hospitalar específico. E o político responsável por esta aberração ainda escreve livros a vangloriar-se dela!
Mas o Governo não aposta só nos estrangeiros, anunciou também que vai produzir médicos rápidos no Algarve, num curso de 4 anos – terceiro facto.
Fico espantado – e espanta-me ainda mais o silêncio generalizado – quando se anuncia um curso rápido de medicina, para formar “clínicos gerais”. Estarão a falar daquela especialidade para cujo internato se concorre depois de tirar o curso de Medicina e fazer um ano de internato comum? Ou de outra coisa, eventualmente com o mesmo nome mas até agora desconhecida? Ainda pensei que fosse alguma brincadeira (teria de ser de mau gosto), mas não, foi apresentado com pompa e circunstância pelas mais altas individualidades do Governo. E semelhante anúncio não pareceu preocupar a Associação dos Médicos de Clínica Geral, pelo menos publicamente, nem do mesmo modo a Ordem dos Médicos. Mas será que esses profissionais serão inscritos na Ordem dos Médicos? E depois poderão concorrer com os outros para uma especialidade diferente? É conhecido o programa de formação acelerada anunciado? Não poderá ele, quem sabe, ser aplicado às Escolas de Medicina, aligeirando a formação dos médicos portugueses e adaptando-a ao futuro que se começa a prever da nossa realidade em termos de saúde, com a Espanha aqui tão perto para os casos mais complicados (leia-se “mais caros”)?...
A verdade é que das Faculdades de Medicina também não se ouviu qualquer comentário, nem expressaram pelo menos curiosidade. Por um curso anunciado oficialmente para começar antes do fim do ano, dirigido expressamente àqueles que queriam ser médicos, que tinham essa vocação e não conseguiram entrar em Medicina, por uma limitação de entradas considerada agora desadequada. Se se quiser de algum modo compensá-los – admitindo o erro – permita-se a sua entrada numa Faculdade de Medicina com as equivalências a que tiverem direito. Apoucá-los para o resto da vida dando-lhes “uma espécie” de curso de medicina, apoucando ao mesmo tempo os clínicos gerais, é que não me parece minimamente razoável. O que parece pretender-se é usá-los para aumentar rapidamente a mão de obra médica em Portugal através de “médicos rápidos”, acompanhando afinal a época de “comida rápida” em que vivemos. Esquecendo primariamente que está demonstrado que a fast food não é boa para a saúde.
C.M.Costa Almeida in Tempo Medicina