20.10.06

Provavelmente na Libéria não se põem stents

O Senhor Ministro da Saúde deu mais uma entrevista à RTP. Para justificar o que tem feito, para explicar o que quer fazer. Como habitualmente, ressaltou a única linha de força consistente na actuação do seu ministério: gastar o menos possível com a saúde. Se fazer o melhor possível com o menor gasto é o louvável, querer espremer a saúde dentro dum orçamento insuficiente é outra coisa, e representa perigo para todos nós, médicos e doentes.
Diga-se o que se disser, no nosso actual sistema de saúde a maior parte dos gastos vão para duas rubricas: o tratamento dos doentes (incluindo nesta designação os exames auxiliares de diagnóstico, os internamentos, as cirurgias, as especialidades de intervenção, os medicamentos, a profilaxia e o rastreio) e toda a parte administrativa, de gestão, de informática, contabilidade e ginástica contabilistica, de listagens, planos estratégicos, manuseamento das listas de espera, entidade reguladora da saúde, etc, etc. A querer poupar, terá de ser fundamentalmente aqui.
Nos Estados Unidos a parte administrativa já absorve 40% do orçamento para a saúde, gasto esse que não reverte directamente para o tratamento dos doentes. Pelo contrário, grande parte do esforço administrativo reside em criar medidas e regras tendentes a diminuir os gastos com os doentes, quer dificultando-lhes o acesso aos cuidados médicos quer fazendo de algum modo com que neles sejam usados os meios de diagnóstico e terapêutica menos dispendiosos. E por cá?
Todos conhecemos medidas muito recentes que terão como consequência afastar os doentes – ou os que se sentem como tal, pois ninguém em estado normal consulta um médico sabendo que não tem doença – dos locais de atendimento, seja pela distância, seja sobretudo pelo gasto exigido, quer nas taxas moderadoras quer no transporte a que ficam obrigados. E se tiverem o azar de estar mesmo doentes e terem de ficar internados, é de pensar duas vezes, pois um conto de reis por dia para muitos não é brincadeira... Principalmente quando estão doentes e por isso sem trabalhar.
Já escrevi, e faço-o de novo, que do ponto de vista clínico não é possível baixar mais os gastos sem fazer descer a qualidade da nossa saúde a níveis inaceitáveis. Inaceitáveis para um país europeu, evoluído, do pelotão da frente da comunidade europeia. Que nessa área estava classificado no 12º lugar entre 190 países, dois anos antes do Senhor Ministro da Saúde o ter sido pela primeira vez. Isso se ficou a dever a um serviço nacional de saúde bem idealizado e estruturado, integrando carreiras técnico-profissionais, como garante de formação e desenvolvimento profissional contínuo, e internatos médicos organizados e homogéneos a nível nacional. E sobretudo a um grande esforço de todos os profissionais da saúde, respondendo aos estímulos que lhes souberam criar nesse sentido. E que será lamentável, e desastroso, se quiserem alguma vez reduzir a dinheiro.
Os médicos gostam de tratar doentes, empenham-se nisso, sofrem com os maus resultados, são até capazes de se zangar se alguém os quiser impedir de tratar um doente da melhor maneira possível. Este é para eles um princípio ético e deontológico sagrado, intocável, que juraram defender. E ainda bem, para todos os que a eles confiam um dos bens mais preciosos que cada um, e a sociedade, têm: a saúde. É esse seu empenho e entusiasmo que têm feito com que muitas medidas administrativas erradas possam não ter consequências mais graves na saúde, ao levá-los muitas vezes a contornar com esforço as dificuldades que lhes são criadas na sua missão.
Portugal tem, até ao momento, uma saúde boa, reconhecidamente melhor do que o país globalmente é. Será que isso é um luxo com que urge acabar ?!
Os médicos portugueses ombreiam com os seus colegas estrangeiros. Têm direito a querer fazer o melhor possível, e preparação para isso. Em muitas ocasiões adiantaram-se e mantiveram-se à frente doutros noutros países mais desenvolvidos e ricos. Apesar dos meios reduzidos que continuam a ter quando comparados com muitos outros. É uma satisfação, um estímulo para todos, e devia ser motivo de orgulho nacional. Por favor não se diga que é mau porque custa dinheiro! Principalmente num governo que diz apoiar o desenvolvimento tecnológico...
Em Portugal colocam-se stents, sim, senhor ministro, não é preciso ir ao estrangeiro colocá-los, mesmo stents medicamentosos. Começámos antes de outros? Melhor para todos nós, possíveis receptores de um ou de vários desse caros objectos. Colocam-se em demasia, em especial nalgumas indicações? Será um problema médico a ser discutido e resolvido, responsabilizem-se por isso os Hospitais e os Serviços, mas não se apresente tal como um problema contabilistico.
Provavelmente na Libéria – o último naquela série de 190 países – não se põem stents. Têm uma medicina económica, que consome apenas 4,6% do PIB deles (presumivelmente menor que o nosso), o que permite 17 dólares por cabeça (para 1700 no nosso país). Os liberianos que precisem dum stent, se tiverem capacidade económica terão de ir a um país estrangeiro – por exemplo Portugal - colocá-lo. Se não tiverem, não vão. Se a evolução se fizer por cá nesse sentido, a medicina poderá ficar muito mais barata e Badajoz fica perto. E Salamanca e a Coruña também não ficam longe. E fica tudo na comunidade europeia.
A verdade é que os stents representaram um extraordinário avanço no tratamento desse flagelo que é a patologia aterosclerótica, seja coronária, renal ou dos membros inferiores, seja mesmo carotídea, e têm tido um grande sucesso, em Portugal tal como nos países mais desenvolvidos. Mas nada na medicina é definitivo, por isso é tão importante a nossa formação contínua. O que hoje é muito bom, amanhã pode ser até proscrito. O que não se deve é coarctar a capacidade de inovar, de descobrir, de avançar, de aplicar nos doentes o que de melhor há no momento, só porque custa dinheiro, e esperar pelos resultados “lá de fora” permite poupar algum. Os médicos portugueses merecem mais do que isso. E os doentes também. (Pub. Tempo Medicina, 18/10/2006)

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