27.9.06

Fórum Médico atento ao Ministro e à Saúde

O Fórum Médico reuniu-se outra vez, agora em Coimbra hoje dia 27 de Setembro. Dessa reunião saiu o seguinte comunicado:

COMUNICADO
O Fórum Médico reuniu-se, desta vez em Coimbra, na sede da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos.
Foram analisados desenvolvimentos recentes na área da saúde, como por exemplo as afirmações do Senhor Ministro da Saúde, repetidas ainda hoje de manhã na Assembleia da República, sobre o pagamento pelos doentes de uma chamada “taxa de utilização”, na cirurgia do ambulatório e no internamento, que mereceram a nossa total discordância.
O Fórum continuou o debate sobre as Carreiras Médicas, postas em causa com as modificações introduzidas no estatuto das instituições de saúde públicas. A não existência de carreiras médicas profissionais comprometerá séria e inexoravelmente quer a formação dos novos especialistas quer a formação contínua e a diferenciação técnico-profissional dos já existentes. Em virtude disso, as estruturas representadas no Fórum não abdicam duma reestruturação adequada das Carreiras, garante também da qualidade dos cuidados de saúde prestados, e nesse sentido se irá continuar a trabalhar.

17.9.06

Carreiras na mira

Desde sempre foi evidente que a nova lei de gestão hospitalar – publicada pelo actual ministro da Saúde quando o era pela primeira vez, em 2002 - dificilmente seria articulável com a existência de carreiras médicas, e do mesmo modo o sistema (?!) de saúde que se tem desde então vindo a delinear aos poucos dá sinais de não contar com elas e de as considerar mesmo um empecilho. Oiça-se o que se ouvir, na prática é o que se vê.
E na prática a destruição das carreiras já começou, ao ser possível, e estar a ser praticada, a nomeação como directores de serviço de médicos que não atingiram ainda o topo da carreira, quando há outros mais graduados disponíveis. Nos hospitais empresarializados (SA ou EPE), legalmente, e nos outros, apesar de nesses a lei aplicável o contradizer, qualquer um, mais graduado ou menos graduado, pode ser nomeado para o efeito. A escolha é do director clínico, ou antes, do director do hospital, o qual por sua vez foi quem escolheu o director clínico e o pode demitir a qualquer momento, se ele deixar de cumprir os critérios que levaram à sua nomeação. Que critérios? Os critérios não estão estabelecidos em parte alguma, são pessoais, de confiança pessoal e política, os mesmos que levaram à nomeação do próprio director do hospital pelo ministro da Saúde, e que traçarão o “perfil” exigido aos directores de serviço nomeados em cada hospital.
Ora o papel do director de serviço é eminentemente técnico, responsável máximo no Serviço pela actividade clínica e pelo treino dos mais novos, elemento que deve ser de referência para os outros, com a experiência e o prestígio pessoal e profissional que o tornem naturalmente respeitado e aceite no grupo de trabalho que um Serviço clínico deve ser. É, pois, obviamente desejável que ele seja escolhido entre os que, por provas dadas, da carreira médica e, eventualmente, da carreira académica, atingiram a maior diferenciação profissional no grupo.
Mas na nova ordem implantada nos nossos hospitais, não é isso que se passa, pelo menos não obrigatoriamente. É deixado ao poder discricionário de um, com os seus critérios pessoais. O grau de carreira e as provas dadas não contam para nada, a opinião desse é que prevalece. E isso dá que pensar. Porquê assim? Procurando resposta para esta questão lembrei-me, muito a propósito como verão, dum facto respeitante à guerra do Vietname.
Nos campos de prisioneiros de guerra é norma internacional que haja um deles que lidera os outros, os organiza e os representa face aos captores, e esse é o oficial de patente mais elevada presente entre os detidos. Essa liderança é indiscutida, o grupo permanece coeso, organizado, e essa organização ajuda-os a mais facilmente sobreviverem, enquanto grupo e individualmente, como seres vivos mas também como militares e como homens. Contrariando a norma, nos campos de prisioneiros americanos na guerra do Vietname isso não se passava assim. Os vietcongs escolhiam eles aquele a quem punham o nome de líder do grupo de prisioneiros, por critérios que eram do director do campo. Era um oficial subalterno, um sargento, um cabo ou até um simples soldado, um elemento que ele entendesse ter o perfil adequado para servir os seus desígnios. Ao mesmo tempo que diminuía perante todos o oficial mais graduado, o chefe natural, escolhia o mais novo em idade, ou o mais medroso, o mais inseguro ou então o mais ambicioso e com menos escrúpulos, que ao sentir-se de posse dum poder que não esperava e que não merecia tudo faria para o manter. Nenhum dos outros lhe reconhecia intrinsecamente autoridade, e por isso a única que ele podia exercer é a que lhe provinha de quem o nomeara, o que o transformava desde logo numa simples correia de transmissão do director do campo. À medida que o tempo passava e a sua actuação se revelava nesse sentido, mais dependente ele ficava do lugar e com receio de o perder. Assim os captores conseguiam a desagregação do grupo, o desentendimento no seu interior, o seu enfraquecimento, a completa falta de iniciativas credíveis e com alguma hipótese de sucesso.
Como estratégia de destruição, foi uma estratégia eficaz. Será que se pode achar aqui alguma semelhança, respeitando-se as diferenças? Mas será que alguém está interessado em destruir os Serviços, a vida hospitalar e os Hospitais? Provavelmente não, mas um desejo cego de pôr as carreiras médicas em causa e acabar por eliminá-las poderá levar a isso. Se isso acontecer, haverá que responsabilizar alguém. E depois não se diga que foram atitudes e medidas impensadas.
Mas talvez a mira não esteja sobre as carreiras médicas. Ao fim e ao cabo outras carreiras estão a ter problemas, na área da saúde e fora dela. E não se afirmou já que o Procurador Geral da República não precisa de ser um Procurador (magistrado do ministério público)? E que os Juizes do Supremo Tribunal de Justiça não é necessário que sejam Juizes? Será que alguém neste país está a pensar em substituir as carreiras profissionais por uma espécie de carreirismo político?... (Pub. Tempo Medicina 18/9/2006)

11.9.06

Só para não pagar a alguns médicos?!

A modificação do decreto-lei que rege a realização e respectivo pagamento de horas extraordinárias por parte dos médicos no SNS, feita de modo a que os médicos em regime de não exclusividade e 35 horas semanais não sejam obrigados a fazer horas extraordinárias, parece ser pouco mais que uma “birra” do Senhor Ministro da Saúde. Na verdade, o problema que estava a um passo de desencadear uma greve médica mantém-se, isto é, os médicos nesse regime de trabalho continuam a ver o seu trabalho extraordinário pago numa percentagem do mesmo trabalho realizado pelos seus colegas em 42 horas e exclusividade. Apenas de agora em diante podem legalmente recusar-se a fazê-lo, e é o que muito provavelmente irá acontecer. Nem precisam para isso de fazer greve, que, aliás, já foi desconvocada.
Não se trata aqui de serem médicos que gostam de trabalhar menos que os outros, o que se passa é que todos gostam de ver o seu trabalho dignificado, e uma das maneiras de dignificar o trabalho de cada um é recompensá-lo adequadamente. E não é isso que acontece, se exactamente pelo mesmo trabalho de outros colegas estes médicos receberem menos 40% do que aqueles recebem.
O problema de princípio permanece, pois, exactamente o mesmo. Mas parece, parafraseando um político português actual, que aqui “não se trata de princípios, mas de fins”, e estes são – como não poderia deixar de ser e é declaradamente reconhecido – poupar dinheiro na saúde. Nem que seja, como neste caso, à custa de quem dá o corpo ao manifesto, executando as tarefas para que os hospitais foram criados: tratar doentes. Mas daqui é que nasce o espanto: se esses médicos não fizerem trabalho extraordinário, porque não são obrigados, ele terá de ser feito pelos outros, os das 42 horas, esses sim expressamente obrigados a fazê-lo por esta modificação da lei. Então?... A alteração legislativa em questão foi feita só para não pagar horas extraordinárias a alguns médicos?!
Os obrigados por esta lei a trabalhar fora do seu horário normal – pois é disso que as horas extraordinárias tratam – receberão a hora extraordinária pelo valor máximo legal, por isso não se antevê qualquer poupança em remunerações. O que se antevê em muitos hospitais é dificuldades em manter equipas e serviços de urgência com as condições mínimas imprescindíveis para uma assistência adequada aos doentes e formação pós-graduada dos internos organizada e credível. Há que se perceber que as horas extraordinárias existem sobretudo pelos quadros de pessoal serem pequenos, e se com isso se consegue gastar menos nos salários mensais, em contrapartida tem de se gastar mais em trabalho feito para além dos horários de trabalho dos funcionários. Acresce o facto de no trabalho médico ter de haver um limite temporal, em nome da segurança dos doentes e dos próprios médicos. Atingido esse limite – definido até por lei, esta ainda não revogada – cada médico não deve, nem legalmente pode, trabalhar mais. Por isso será difícil que os médicos em exclusividade, mesmo sobrecarregados ao máximo permitido no seu trabalho extraordinário, possam fazer o trabalho deles e o dos outros.
Quer dizer, esta decisão do Conselho de Ministros tem com certeza um alcance, mas que não nos parece claro. Admitimos que não seja só para deixar de pagar a alguns médicos e pagar a outros, ou para desmobilizar momentaneamente e in extremis uma greve anunciada. Muito menos que seja só para “castigar” os médicos que estavam a falar em fazer essa greve… Teremos agora de esperar para ver as consequências e os desenvolvimentos por parte do Ministério da Saúde, isto sem que nos possam acusar de ter ficado calados e não alertar de imediato para os problemas que dela podem advir a curto e médio prazo. A responsabilidade é do Senhor Ministro, aguardemos. (Pub. Tempo Medicina 11/9/2006)

1.9.06

Sinais preocupantes...

O senhor ministro da Saúde passou o mês de Agosto a vir repetidamente a público dizer que «não está minimamente preocupado» com a greve dos médicos (anunciada para Setembro) e que os portugueses também não deveriam estar. É claro que ele conhece, como todos os portugueses, a deontologia especial dos médicos que, embora cheios de razão, não irão nunca fazer perigar a vida dos doentes para que o ministro faça o que deveria fazer. Com certeza que ninguém estará à espera de ver os mortos amontoarem-se aos pés dos médicos como forma de pressão sobre os economistas do Ministério, ou doentes a serem deixados morrer, um a um, até que as reivindicações dos seus médicos sejam finalmente satisfeitas… Provavelmente nunca iremos ter que fazer em Portugal o que os nossos colegas belgas já uma vez foram obrigados, in extremis, a fazer: abandonar todos o país, de uma só vez, até o governo ganhar juízo. E ganhou.
Na visão do ministro, portanto, está tudo bem, todos podem ficar descansados. E isso é que é um sinal preocupante. Parece que nem lhe passa pela cabeça que a greve anunciada tem uma razão, nem está minimamente preocupado com ela. E é uma razão simples: o Governo ter dado o dito por não dito, para poder reduzir pontualmente a remuneração de alguns médicos, mantendo o seu trabalho. O trabalho feito é o mesmo, o pagamento de cada hora é que diminui. Com uma justificação confessa, e única: para poupar dinheiro.
Dentro da lógica economicista reconhecidamente redutora deste Ministério, tudo vale para poupar dinheiro. Nem que seja à custa directamente de quem trabalha, de quem dá o corpo ao manifesto. Reduz-se o valor da hora extraordinária. Como se reduzem as equipas, se contratam os que fiquem mais baratos, sem olhar à sua diferenciação profissional e à qualidade do seu trabalho, se reduzem os serviços, e os hospitais e os centros de saúde.
E isso é outro sinal preocupante. É que toda a racionalização apregoada — que é antes racionamento — tem incidido, na prática, no atendimento aos doentes. E a empresarialização da saúde pública, teorizada e posta em prática pelo agora senhor ministro da Saúde — iniciada por ele em 2002 e prosseguida até hoje — começa a ter laivos de certas empresas «à portuguesa», de que todos vamos ouvindo falar com frequência, quando começam a ter alguma dificuldade financeira, ou pelo menos não dão os lucros pretendidos: primeiro deixam de pagar os ordenados, e não pagam os subsídios devidos; depois despedem empregados; para, finalmente, abrirem falência e fecharem as portas.
Mas esperemos que sejam só sinais preocupantes, e a doença não se concretize, ou seja tratada a tempo. A Saúde é um bem público de necessidade fundamental em qualquer país. E a nossa até é a que tem ficado mais barata em toda a Europa comunitária dos doze, diga lá o que se disser para justificar o que se quer fazer dela. E a verdade é que com as mudanças feitas, e as restrições todas que têm sido impostas na assistência aos doentes, a despesa com a Saúde até acabou por aumentar. Por que será? (Pub. Tempo Medicina 4/9/2006)