27.4.09

VAMOS ÀS CARREIRAS - VI

Terminamos hoje esta série de seis artigos sobre as carreiras médicas. Neles procurámos elencar o que elas tinham e conseguiram de bom, e mostrar o que as colocou em agonia. E o que o seu desaparecimento previsivelmente arrastará. Procurando ao mesmo tempo mostrar o que há a fazer, e também a não fazer, para eventualmente as ressuscitar. Duma forma positiva, e para que não nos acusem de estarmos entre todos os que se calaram, ou acomodaram ou, pior ainda, se aproveitaram. Façamos uma resenha final.
A nova lei de gestão hospitalar conduziu acima de tudo a uma “administradorização” dos hospitais, com passagem da gestão clínica para um plano totalmente secundário, perfeitamente subsidiário da gestão administrativa, da contabilidade pura e dura, tornada o centro de tudo. Foi uma mudança radical em instituições que deveriam estar centradas na actividade clínica, desempenhada e gerida pelos médicos, com o contributo directo do pessoal dos laboratórios e de enfermagem. Assistiu-se, por via dessa lei, a um aumento enorme do número de administradores nos hospitais, assumindo eles o papel de capatazes dos médicos. Sem que nada, absolutamente nada, os qualifique para essas funções. Quer dizer, o acessório tornou-se a si próprio central, e secundarizou o que é o âmago imprescindível e nuclear duma empresa para ser um hospital.
Em termos económico-financeiros as coisas não melhoraram, já vimos. Em França procura-se reduzir custos com a saúde – recordemos que era a melhor da Europa nesse campo (quando Portugal era 6º), mas com uma despesa de 14 % do seu PIB, contra os nossos 10%, do nosso pobre PIB. Para isso eles têm procurado recriar e desenvolver os hospitais públicos, no sentido do que nós tínhamos e ao invés do que temos vindo a fazer. A primeira medida de contenção que tomaram foi reduzir drasticamente as despesas com administradores e administrativos – também ao arrepio do que por cá se tem feito…
Em termos médicos desencadeou-se uma total desierarquização nos serviços hospitalares, com chefes nomeados apenas porque alguém “achou” que sim. Só isso levaria ao colapso das carreiras, assentes na hierarquia profissional conferindo autoridade e responsabilidade. Foi, mais uma vez, a ideia de substituir líderes por capatazes: o resultado está à vista. Toda a prática da medicina hospitalar foi posta em causa, e isso vai-se reflectir na qualidade dos serviços prestados. Que diminuirá ainda mais à medida que a formação for sofrendo, por essa mesma ausência de estruturação baseada nos conhecimentos científicos, na diferenciação técnica, nas provas dadas.
As carreiras soçobraram, os internatos estão em perigo, o Serviço Nacional de Saúde torna-se periclitante. Como já referimos, o grande responsável por isto continua a dizer que faria tudo igual – ainda não se apercebeu do que fez. Um Secretário de Estado diz que não sabe o que vai ser do Serviço Nacional de Saúde – já se começou a aperceber.
O Ministério da Saúde, agora liderado por uma médica, reconhece finalmente que as carreiras médicas estão acabadas mas fazem falta (o que durante muito tempo afirmámos quase sozinhos, criticados até por quem não queria que se falasse sequer nisso). Mas, em vez de aceitar modificar o que veio provocar a derrocada, insiste apenas em tentar remediar os estragos. Será que isso é possível? Ou estar-se-á, também aqui, a trocar o essencial pelo acessório?
Pretende-se que as carreiras sejam baseadas num acordo colectivo de trabalho, dele derivando um contrato colectivo a que só pode aceder quem estiver inscrito no sindicato que subscreveu o acordo. Quer dizer, quem quiser entrar numa carreira terá de estar obrigatoriamente sindicalizado. E no sindicato certo. Isto é, um médico, para além de ter de estar inscrito na Ordem, para poder exercer medicina, passa a ter de ser sócio dum sindicato para poder percorrer a sua carreira profissional.
Uma orientação política na saúde, que pareceu conduzir a uma liberalização nessa área, acabou por redundar na proletarização dos médicos. Tão grande e completa que, para poderem trabalhar integrados numa carreira, terão de estar sindicalizados. Quem não o quiser estar poderá tentar um contrato individual de trabalho, mas sem acesso à carreira.
É isto que parece desenhar-se para o futuro, e que levanta, obviamente, várias dificuldades. Desde logo, e se os sindicatos existentes não se entenderem? Se um fizer um acordo com o Ministério e o outro não? Se a carreira passar a ser tão dependente dum sindicato, que razão impedirá os médicos de se juntarem em sindicatos que melhor defendam os seus interesses na sua área ou modo de trabalho específicos?
O estabelecimento de graus baseados em concursos inter-pares, como os que havia, não levanta dificuldades. Mas o que obrigará cada unidade empresarial hospitalar, que contrata quem quer, do modo que entende, para fazer o que achar melhor, sem quadro fixo, a pagar mais a um médico por ter subido na carreira, ainda por cima para continuar a fazer o mesmo que fazia antes?
Quem obrigará as empresas-hospital, geridas com independência quase absoluta, por administrações lá colocadas como se fossem donos, a atribuir mais responsabilidade, mais autonomia, funções de chefia e de direcção técnica, aos médicos que forem subindo na sua carreira? É evidente que a lei de gestão aqui em causa teve como um dos seus fins, precisamente, quebrar essa hierarquia de competência, paralela e atentatória das nomeações pelos chamados “bons serviços”. Daí a avaliação SIADAP que se prepara para os médicos, o que, como também desde logo dissemos a quem nos quis ouvir, já se previa após a desagregação das carreiras.
Trata-se de um sistema de classificação que existe para si próprio, que não deriva naturalmente da actividade normal dos trabalhadores. Quer dizer, obriga a que cada um faça o que é bom para a classificação, embora isso não corresponda ao seu trabalho normal. É algo estranho enxertado na actividade clínica do hospital, que consome esforço e tempo a esses trabalhadores e veio obrigar a toda uma burocracia extra – também aqui mais administradores e funcionários administrativos – usada depois por quem rege o hospital do modo que quiser. O que é que isto tem a ver com uma carreira profissional? Nada. Quando ainda por cima os avaliadores são os chefes nomeados “ad hoc” pelas administrações.
É evidente, a nosso ver, que a progressão na carreira tem de ser a base da progressão no hospital, justificando a evolução remuneratória. Os chefes terão de ser os mais graduados, com a autoridade que daí deriva, liderando a equipa com a aceitação de todos, e orientando depois a avaliação do desempenho dos seus colaboradores. Qualquer coisa que não leve a isto não fará reviver as carreiras. Reconhecemos as suas virtualidades e acreditamos que seria possível recriá-las, mas em convivência com o que as matou é que não cremos que possam ter muita saúde e vitalidade. Continuaremos a lutar por elas, com o apoio que temos sentido dos colegas, dizendo frontalmente o que pensamos. Mesmo que isso nos afaste dos que tomam decisões e dos que participam nelas. Mas com a consciência tranquila, e esperança no futuro.
C M Costa Almeida in TM

10.4.09

VAMOS ÀS CARREIRAS - V

Outra influência notável que as carreiras médicas tiveram foi nos internatos médicos. Eram duas estruturas que, pode-se dizer, se completavam, imbuídas do mesmo sentido de progressão pela formação, pela aquisição de conhecimentos, pelo trabalho feito, tudo avaliado periodicamente e conferindo cada vez mais autonomia e responsabilidade.
Os internatos, as suas regras e programas, os orientadores, os responsáveis pela formação, tudo isso assentava nas carreiras, e vai sobrevivendo porque, pelo menos teoricamente, elas se mantêm. Mas à medida que os mais velhos forem saindo - e estão a sair de forma acelerada e prematura – corre o risco de rapidamente estiolar e perder valor e sentido.
Já há sinais claros dessa tendência, para quem os quiser ver. Um dos pontos altos no começo duma carreira era quando pela primeira vez um especialista se via designado para integrar um júri de exame final de internato. Não só isso traduzia o reconhecimento pelos seus pares de que estava em condições de avaliar outros, àquele nível, como era um factor de enriquecimento curricular na sua vida profissional. Pois agora há jovens especialistas que, pura e simplesmente, recusam desempenhar essas funções. Recusam interromper o seu trabalho diário hospitalar, deslocar-se a outro hospital, “perder tempo” a examinar candidatos a especialistas na sua área. E, vendo bem, não terão razão? Vejamos: não estão integrados em nenhuma carreira, são contratados para fazer um determinado trabalho clínico, ganham em grande medida à peça ou à hora, quantos mais doentes tratarem mais bem vistos serão por quem dirige o hospital, não precisam dum currículo diferente desse para poderem ser nomeados por esses dirigentes para lugares de responsabilidade, até mesmo directores de serviço ou de departamento. É assim ou não é? Poderá achar-se incorrecta a atitude daqueles colegas?!
A preocupação com a aprendizagem e o ensino era uma constante comum aos internatos e às carreiras, enformados, na realidade, à volta disso, conduzindo à evolução profissional e à ascensão a funções e lugares cada vez de maior importância, responsabilidade e poder e obrigação de decisão. No início, aliás, o internato era o primeiro grau da carreira. Num dado momento, o Ministério da Saúde retirou os internos da carreira médica, por razões administrativas, e agora retirou todos os médicos, por razões do mesmo tipo. Ficaram apenas os que já estavam integrados nelas, ocupando lugares a extinguir quando vagarem, uma vez que não há novas entradas. Curiosamente, nestas condições os concursos para os graus e lugares vão-se multiplicando nos vários hospitais, numa autêntica girândola de fim de festa. Unicamente porque quem entrou tinha a expectativa e tem por isso o direito de tentar progredir até ao topo.
Os especialistas contratados pelos hospitais EPE não pertencem às carreiras médicas, não podem por isso concorrer nesses concursos nem, por maioria de razão, integrar os respectivos júris. Antes desta nova lei de gestão, a sua entrada na carreira fazia-se no fim do internato, agora não se faz nunca. Pertencem ao colégio da sua especialidade, e é só por isso que podem fazer parte de júris de fim de internato. Já vimos que com razão para grande falta de motivação – a mesma que para o ensino, seguramente.
Também seria legítimo pensar que a desierarquização hospitalar provocada pela lei de gestão EPE iria reflectir-se negativamente na prossecução dos internatos. Vejamos: quem é o responsável máximo pela formação em cada Serviço? O director de serviço, naturalmente. Mas é natural que esse não seja o mais diferenciado no Serviço? Ou, pelo menos, um dos mais diferenciados? Aceite como tal pelos outros? Isso corresponde obviamente a uma desestruturação, que é a maneira melhor de destruir uma estrutura.
A pouca ou nenhuma preocupação evidenciada com a desestruturação na área da formação ressalta desde logo, também, do facto de se nomearem como presidentes de júris finais de internato assistentes hospitalares em júris que integram, para além deles, chefes de serviço. É uma antevisão do futuro imediato: como serão formados, e estruturados, os júris de fim de internato? Com que critérios? Quando não houver necessidade de progredir numa carreira técnica para se ser seja o que for dentro de um hospital? E em qualquer júri?
Ao longo desta série de artigos temos vindo a enumerar as consequências negativas da actual lei de gestão hospitalar nas carreiras médicas. E na formação pós-graduada e no serviço nacional de saúde. A Saúde no nosso país assentava num tripé: carreiras médicas, internatos médicos, Serviço Nacional de Saúde. Com este conjunto conseguiram-se resultados notáveis, num país pequeno e de poucos recursos, pondo-o a ombrear nesta matéria com os melhores, gastando muito menos que eles. Um dia alguém resolveu mudar a parte administrativa, por razões exclusivamente desse foro. Dessa mudança intempestiva – e parece que pouco pensada – resultou a aniquilação de um daqueles pés, as carreiras, carcomido por uma doença (a dita lei de gestão), em vias de se propagar rapidamente aos outros (os internatos e o SNS). Coxo dum pé, o tripé abana e tomba rapidamente. Pretendeu-se, na prática, substituir a gestão clínica por uma gestão preponderantemente administrativa, e disso não se vislumbram quaisquer ganhos, nem sequer administrativos e económico-financeiros. Como consequência directa, apenas um incremento notável da burocracia, acompanhando o aumento galopante do número de administradores nos hospitais e a sua actividade, recompensada, aliás, com aumentos de ordenado e bónus pecuniários.
O responsável principal pelo descalabro diz a quem o convida para dizer que faria tudo da mesma maneira – ainda não se apercebeu. Um dos Secretários de Estado da Saúde afirma que não sabe o que o Serviço Nacional de Saúde virá a ser no futuro – começou a aperceber-se. Os médicos já sabem, os doentes virão rapidamente a saber.
Se algo bem estruturado, tendo passado no teste do tempo, operacional, com um resultado global invejável num país em que tudo o mais anda por baixo quando comparado com o que se passa lá fora, é alterado nalguns aspectos e fica por isso, de repente, desestruturado e cambaleante, seria lógico pensar que haveria de se corrigir o que se fez e que perturbou severamente o conjunto. Quer dizer – e temo-lo dito nas raríssimas vezes que fomos chamados a emitir opinião – seria lógico esperar-se que algo na lei de gestão hospitalar fosse corrigido. Mas não, pretende-se teimosamente enveredar pelo caminho de mudar tudo o resto.
Na verdade, acabou por se entender agora que há necessidade de recuperar o que ficou lesado, nomeadamente as carreiras médicas. Mas, a manterem-se inalteradas as mudanças desestruturantes, afigura-se muito improvável vir-se a obter um novo equilíbrio eficaz e duradouro, isto é, um novo tripé com pés fortes e estáveis. Parece-nos um tratamento unicamente sintomático e não etiológico, quando se conhece a etiologia e se tem cura para ela. Os médicos não actuam assim. Ou não devem.
Carreiras assentes num contrato colectivo de trabalho são a proposta actual. Será possível compatibilizá-las com a gestão EPE? E com a avaliação SIADAP que se anuncia para os médicos? Da próxima vez terminaremos esta série de artigos de opinião sobre o problema das Carreiras Médicas em Portugal em 2009.

Carlos Costa Almeida in TM