21.5.10

DESFAÇATEZ

Políticos, sucateiros, juízes, magistrados, banqueiros, gestores, a cada passo aparecem nas bocas do mundo e nas páginas dos jornais como suspeitos de algum modo de corrupção. É de tal maneira que já se começa a falar duma sul-americanização nacional nesse campo (se é que aquela zona do mundo tem realmente proveito nessa área, para além da fama).
A ideia duma corrupção latente instalou-se, parece encontrarem-se sinais dela a cada momento, muito fumo deixando entrever fogo aqui e acolá. São cronicamente políticos, associados ou não a sucateiros, juízes e magistrados, gestores de empresas públicas e de bancos, quem tem estado em evidência nesta matéria, nos vários casos expostos ou aventados pela comunicação social. Pois bem, entendeu a Assembleia da República, e bem (depois, aliás, duma primeira tentativa nesse sentido gorada há anos, com afastamento até do seu principal proponente), criar um pacote legislativo anti-corrupção. Medida de topo programada para esse pacote, e largamente anunciada nas primeiras páginas dos jornais e noticiários: separar a medicina pública da privada. E esta, hein?! É preciso desfaçatez!
Fala-se de políticos que traficam influências a troco de alegadas vantagens materiais. De construções e autorizações estatais e municipais de legalidade pelo menos discutível e pouco clara. Do que se passa nos tribunais e na instrução dos processos. E no modo inacreditável como alguns advogados sofrem na própria pele a sua aplicação com sucesso na defesa dos interesses dos seus clientes, o que pode limitar severamente o exercício da advocacia e o direito à defesa dos cidadãos, face aos tribunais. Nas falências de bancos pagas pelo Estado, com milhões a flutuar off-shore, e os pequenos depositantes a lastimar-se da perda das suas poupanças. De negociatas e mais negociatas envolvendo detentores de cargos públicos. De situações que não configuram propriamente corrupção mas que são gritantes, como a de gestores públicos a receber milhões como bónus por terem cumprido aquilo a que se tinham proposto (em vez de serem afastados se não o cumprissem). Ou de apelidados “gestores” nomeados pelo poder político para conselhos de administração, pagos principescamente, apenas para lá estar. Etc., etc. É voz corrente. Tema de conversa diária. É altura de se fazer alguma coisa. E vai-se fazer: separar a medicina pública da privada…
As alterações introduzidas na gestão da Saúde nos últimos anos criaram tantos problemas, alguns deles têm ficado tão caro ao país e comprometido tanto o futuro, que o que menos precisamos agora é que se venha sobrecarregar tudo isso com a ideia de corrupção. Isto é, que a Saúde está a funcionar mal e a esvaziar o erário público, sem qualquer mais-valia, por uma suposta corrupção! Haja Deus!
Não só é, intencionalmente ou não, desviar a atenção dos verdadeiros problemas, quer da corrupção generalizada quer da má gestão da Saúde, como é profundamente injusto. Para com uma área que, com toda a desestruturação que sofreu e que não se dá mostras de vontade, ou capacidade, de corrigir, e pese embora o plano inclinado em que foi colocada e que cegamente se mantém, continua a desempenhar as suas funções melhor do que a maioria do resto das actividades a cargo do Estado. E em que os seus gestores nomeados, independentemente da sua competência ou falta dela, ou dos resultados que obtenham, não recebem milhões de euros de bónus! Basta-lhes permanecer nos lugares quer cumpram os objectivos quer não.
A relação entre medicina pública e privada é um tema abordado recorrentemente, até porque poderá ser sempre encarado sob diversos prismas, alguns totalmente antagónicos. A verdade é que, ao permitir conjugar as duas coisas, se tem conseguido ter médicos de elevadíssima diferenciação e qualidade a trabalhar nos hospitais públicos ganhando cerca de 2000 euros por mês (19 euros à hora). E é com isso que se reformam, menos os descontos, depois duma vida de trabalho. E falamos dos médicos no topo da sua carreira, que outros que não tenham obtido essas vagas, mas de idêntica qualidade, nem isso ganham.
Os médicos sempre aceitaram receber uma miséria do Estado por terem a possibilidade de trabalhar mais, fora, complementando assim, com trabalho, o exíguo salário estatal. Podem ganhar muito se trabalharem muito. E falamos de técnicos altamente especializados, com exigência duma preparação contínua e sujeita a um escrutínio constante. A maior vantagem que têm em continuar a trabalhar em hospitais públicos é, precisamente, pelo seu desejo de aperfeiçoamento, de trocarem impressões entre eles, de pertencerem a uma equipa diferenciada, e assim poderem obter maior satisfação profissional. Quem não entenda isso, quem tenha um espírito de funcionário manga de alpaca, dificilmente compreende por que razão um técnico desses se contenta com aquelas migalhas ao fim do mês... E não perceberá também que, sendo a formação médica pós-graduada feita sobretudo no público e exercida em todos os tipos de instituições de saúde, a comunhão e a translocação de conhecimentos e experiências entre as duas áreas, pública e privada, é sem dúvida benéfica para todas as classes de doentes, e para a medicina em geral.
Recorrentemente também, fala-se de promiscuidade entre público e privado. Mas é curioso se se falar disso agora, com a gestão empresarializada declaradamente a apostar em contratar privados para trabalhar nos hospitais públicos ou desempenhar funções que a estes pertenceriam, reduzindo os seus próprios meios. Aí, a promiscuidade passa por ceder ao lucro de particulares aquilo que poderia, e deveria, ser feito por instituições estatais não lucrativas. Isto para além das chamadas parcerias público-privado: quer-se uma promiscuidade mais declarada? Dirão que se houver regras rígidas e claras não há problema: concordo, mas para o exercício da medicina também, por que não? Com as vantagens atrás apontadas.
Até porque não se demonstrou de modo nenhum que da exclusividade médica criada a troco de maior pagamento tenha resultado algo de positivo. Nunca foi mostrado que quem trabalha só no hospital, sem acesso aos doentes fora dele, o faça de maneira mais empenhada e mais produtiva que quem trabalha dentro e fora. Tal situação criou foi uma medicina a dois pagamentos, não a duas velocidades. Com os inconvenientes e as injustiças conhecidos, já meio esquecidos mas sempre latentes e fracturantes, sobretudo ao aproximar-se a reforma.
Ainda recorrentemente, temos dito que os erros cometidos devem ser identificados e tem de haver a coragem para os corrigir na sua origem. Procurar justificações paralelas, à boleia de acidentes de percurso que nem tenham até nada que ver com a Saúde, é uma pura fuga para a frente, acelerando a descida pelo plano inclinado. Se neste momento se insistir na separação entre público e privado, ir-se-á aumentar a sangria do público, com saída de muitos dos mais experientes que por lá ainda se vão mantendo. Ou então o Estado terá de passar a pagar directamente em competição com o privado, já que a possibilidade de ascensão no hospital dentro duma carreira médica (poderoso factor de atracção hospitalar) desapareceu nos hospitais EPE.
Mas e se o objectivo for, precisamente, esvaziar ainda mais de médicos os hospitais públicos? Para fazer contrato com os privados. Essa não será com certeza a melhor maneira de manter a qualidade mínima do SNS, nem de lhe reduzir o prejuízo imenso e a aumentar a cada ano que passa. Nem se coaduna com o facto de se andarem a importar médicos por grosso para o público, dos países mais inesperados.
C. Costa Almeida, in Tempo Medicina