INVENÇÕES E
INOVAÇÕES
É perceptível a
diferença entre “invenção” e “inovação”. A invenção assenta num princípio
totalmente novo, original, que não existia
antes. Inovação é uma melhoria ou uma nova aplicação, eventualmente dum
tipo diferente, de algo já antes descrito e inventado.
Invenções clássicas são, por exemplo, a roda e a pólvora.
Quanto à Medicina, ela tem progredido com algumas invenções, mas sobretudo com
inovações. Uma das invenções mais básicas, mais fundamentais para a medicina
tal como a praticamos hoje, e que por isso passa despercebida quando se fala em
grandes avanços tecnológicos nessa área, é a agulha oca, ou agulha de
injecções. É tão vulgar que quase
pensamos sem querer que terá existido sempre...
Pois não existiu, claro, houve um momento em que foi inventada. E se
pensarmos que foi por um médico, enganamo-nos.
No século XVII (1628) William Harvey descreveu a circulação
sanguínea como ela é, publicando em Frankfurt o resultado dos seus estudos num
trabalho intitulado Exercitatio Anatomica
de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (em português Um exercício anatómico sobre o movimento do
coração e vasos sanguíneos em animais). Anos mais tarde houve dois outros
ingleses, inteligentes, curiosos pelo mundo que os rodeava e a sua explicação
científica, que, sem terem nada que ver com medicina, leram esse trabalho de
Harvey. Foram eles Sir Christopher Wren, arquitecto, físico e astrónomo, que
dirigiu a construção da Catedral de S. Paulo, em Londres, bem com a
reconstrução da “city” londrina após o fogo que quase a consumiu por completo,
e um seu amigo, o bem conhecido físico e químico Robert Boyle. Dessa leitura perceberam
como se realizava a circulação do sangue, do coração para o coração, pelas
artérias e pelas veias, e, raciocinando sobre isso, pensaram que seria possível
introduzir algo nela artificialmente, sem seguir o trajecto normal a partir do
intestino, pela absorção. E resolveram, com entusiasmo, testar essa hipótese.
Para isso serviram-se dum cão, a quem expuseram uma veia superficial e nela
introduziram um tubo oco (base duma pena de ganso), pelo qual injectaram uma solução
de ópio, usando uma bexiga de animal para forçar a entrada do líquido.
O ópio era fumado e desse modo conheciam-se os seus efeitos, e
como era preciso uma prova de que o que era introduzido directamente na veia
seguia o caminho sanguíneo normal, esperava-se que tais efeitos se
manifestassem no animal. E foi isso que aconteceu: aquele cão foi, assim, o
primeiro “pedrado” por via endovenosa!
Wren e Boyle escreveram a experiência, publicaram-na, e
continuaram as suas vidas longe da medicina, deixando para ela uma ideia
brilhante. Mas como tantas vezes acontece a quem está à frente do seu tempo e
não é compreendido, essa ideia não foi aproveitada. Só no século XIX ela foi
recuperada, primeiro para administração subcutânea de líquidos, através dum tudo
oco com um trocarte aguçado dentro, e depois com a inovação das agulhas
metálicas pontiagudas para injecções subcutâneas, intramusculares e endovenosas,
com o uso de seringas, surgindo depois a inovação dos sistemas tubulares de
administração intravenosa. As seringas já existiam no tempo dos romanos, serviam para introduzir líquidos
em espaços limitados, e foram sendo modificadas e aperfeiçoadas ao longo dos
tempos, por sucessivas inovações. A seringa de vidro, na forma como hoje a
conhecemos, apareceu em meados desse século.
Pode-se dizer que a agulha oca abriu o caminho à medicina
moderna, quer do ponto de vista diagnóstico, quer terapêutico. Punções as mais
variadas, cateteres de todos os tipos, não existiriam sem ela. Ligada ao
aparecimento dos cateteres, outra invenção
foi o cateter de balão para embolectomia. E os balões para angioplastia, depois
com a inovação do stent que fica no
local após a plastia arterial.
Do ponto de vista imagiológico há inúmeras inovações, a partir
da invenção que foi a radiografia. Também nas técnicas cirúrgicas
as inovações vão aparecendo, muitas delas baseadas nas inovações tecnológicas
cada vez mais frequentes, muitas delas motivadas pelas necessidades sentidas
pelos cirurgiões na sua prática. E tem havido translação de técnicas dumas
áreas cirúrgicas para outras, levadas a cabo por cirurgiões com uma experiência
ampla, dumas e doutras.
Uma inovação cirúrgica importante, que correspondeu na
realidade a uma mudança de paradigma, foi, às clássicas intervenções de
ressecção, de remoção do que está doente, se terem juntado intervenções
planeadas de acordo com a fisiologia, e a fisiopatologia das doenças em causa,
de modo a, através de alterações anatómicas, se poder recuperar, ou modificar,
uma função. Foi uma inovação conceptual, que trouxe o que podemos chamar “cirurgia
fisiológica”, de que são exemplos a cirurgia do refluxo gastroesofágico e a
cirurgia metabólica e da obesidade.
Thomas Fogarty, o inventor do cateter de embolectomia, diz que
“os inovadores quebram regras e vão contra o que está estabelecido”. Na
verdade, é sabido que se fazem coisas extraordinárias, em termos de novidade e
mudança, fora das guidelines. O que
não impede que estas se devam conhecer, e sobretudo os princípios e os
trabalhos que a elas levaram. Precisamente não se pode ignorar o conhecimento
destes se quisermos tentar fazer diferente. Mas o seguimento cego de
protocolos, por quem só sabe fazer duma maneira e faz sempre igual, não conduz
seguramente à inovação e ao progresso.
Finalmente, uma
chamada de atenção para que o que é novo não é sempre bom, ou melhor. Devemos ter um espírito aberto para as
inovações, mas ao mesmo tempo crítico, capaz de avaliar os prós e os contras, e
sem querer forçosamente seguir a novidade apenas para sermos “modernos”. Há sempre um tempo para se afirmar a validade
duma inovação, ou para a infirmar. Esse tempo de espera avaliadora vale nos
dois sentidos: para se dizer que é válida e se deve passar a usar, ou para se
chegar à conclusão que não traz vantagens e por isso se deve abandonar. Lembremo-nos
que nem tudo o que é inovação funciona bem logo de início, às vezes a ideia é
boa mas a sua aplicação na prática demora a aperfeiçoar-se, e há que aguardar,
ou procurar, esse aperfeiçoamento, sem a falta de paciência de a recusar precocemente,
não lhe dando a oportunidade de se vir a afirmar.
Carlos Costa Almeida
In Newsletter da Cirurgia C, Número 14, Novembro de 2017 (Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral-CHUC)