15.2.08

O EMPREGO

Sentado numa cadeira encostada à parede do grande hall, onde se encontra um “relógio do dedo”, aguardo já sem reacção que chegue a minha hora da lá pôr o meu dedo médio da mão direita. Foi esse dedo que dei para amostra, quando ainda reagia contra este culminar da funcionarização dos médicos nos hospitais do Estado.
Faltam ainda quinze minutos. Vem sentar-se na cadeira ao meu lado outro colega da velha guarda. Falamos de trivialidades, depois, inevitavelmente, do estado da medicina e da saúde no nosso país. Olhamos o aparelho na parede… “Isto está tudo feito num oito, caramba” - foi o desabafo dele. Quando finalmente chegou a nossa hora de saída cumprimos o ritual burocrático e fomos à nossa vida. No parque de estacionamento despedimo-nos com um conformado “até amanhã”. Amanhã voltamos ao emprego.
Pego às 8, com um atraso permitido de 15 minutos. Está bem, é o quarto de hora académico muito à portuguesa, sim senhor. A hora de saída é variável de dia para dia na semana, mas perfeitamente estabelecida em cada dia – só não sei se tem alguma tolerância, lembrei-me agora. Há dias, uma intervenção complicou-se, saí duas horas e meia depois, ultrapassando todas as tolerâncias possíveis. Um mau hábito ainda, não voltará a acontecer. Hoje já não aconteceu: não comecei o que não podia acabar dentro do horário. Dizem-me que quando sair mais tarde um dia, poderei sair mais cedo noutro, mas este horário controlado rigidamente levou a que estabelecesse o início da minha vida diária depois do hospital do mesmo modo, não há por isso lugar a sair mais tarde nem mais cedo – só àquela hora.
Ao esperar para “picar” o ponto lembrei-me: “Por que não? É um emprego como tantos outros, há tanta gente a fazer o mesmo…”. E desatei a pensar na minha vida profissional antes, a saída da Faculdade, a entrada no hospital, depois neste mesmo hospital, o entusiasmo, as tardes passadas a fazer histórias clínicas, a deambular pelo Banco, absorvendo a pouco e pouco a emoção de lidar com a vida e a morte, dando tudo para salvar uma pessoa que nunca se viu antes e se calhar nunca mais se verá. As longas horas nocturnas ajudando em intervenções cirúrgicas para que me tinha oferecido para ajudar, sem ganhar um tostão por isso. E no dia seguinte chegar antes da hora para preparar a visita médica, e ficar o tempo que fosse preciso. A assiduidade era marcada pelo trabalho feito, por estar presente quando necessário, quantas vezes tão depois da hora de saída. E a escala (sim, escala, e completamente fora de qualquer horário oficial e pago) para vir aos sábados, domingos e feriados ver os “nossos” doentes. Estavam no hospital mas eram “nossos”, estavam a nosso cargo, sentíamo-los como nossa responsabilidade directa. A nossa obrigação era tratá-los, cuidar deles, mandá-los embora bem, ou o melhor possível, marcando encontro mais tarde para verificar se continuavam bem. E quando algum internado piorava e o colega de serviço entendia que precisava de reoperação, telefonava sempre para o responsável pelo doente avisando-o, discutindo o caso com ele, e quantas vezes era este que completamente fora de horas ia operá-lo.
Há poucos dias um antigo director do Serviço passou por lá e, comentando-se “o dedo”, perguntou: “Mas quando vêm cá ao domingo como é que fazem para “picar” o ponto?” A resposta foi uma gargalhada a meia voz, meio encabulada: “Ninguém vem mais ao domingo, fora do seu horário”.
Do prazer, do entusiasmo, da disponibilidade mental permanente, da dedicação aos “nossos” doentes, das idas com interesse ao “nosso” hospital, a qualquer hora, ficou uma máquina de controlo biométrico de assiduidade. Um pormenor tão pequeno, uma exigência dispendiosa tão gratuita, por inútil, como ela levou a uma radicalização tão grande duma mudança que já vinha a processar-se de há uns anos para cá! Desde que a saúde passou a ser gerida administrativamente, e não clinicamente.
É claro que quem tem uma profissão administrativa, sentado a uma secretária, provavelmente nem compreenderá bem o que estou a dizer, mesmo que trabalhe num hospital. O que é curioso é que a nova lei de gestão hospitalar, que dizem que foi feita para agilizar a administração, o que conseguiu foi burocratizar mais a saúde. Criando-se condições para expandir a saúde privada, em grande parte à custa de médicos e doentes da pública, vão-se tirando condições para esta poder competir com aquela. A liberalização dos hospitais estatais foi basicamente entregue a quem tem o espírito de funcionário público, e desta incongruência não se podia esperar outra coisa.
Hospitais transformados em empresas e entregues a si próprios, ou melhor, a quem foi lá posto a dirigi-los. Que em muitos casos querem acima de tudo poupar dinheiro, e para isso dispensam pessoal médico e outro, restringem consultas e seleccionam patologias, afastando as mais dispendiosas. Como um restaurante que para poupar despede os chefes e fica só com os ajudantes de cozinha, já que não precisa de mais para servir carapaus fritos. Mas terá de mandar os clientes de pratos mais sofisticados e mais caros para outro restaurante. O problema é se todos fizerem assim… Como ficará a comida no país?... Teremos de ir comer “paella” a Espanha?... E onde os novos aprenderão a cozinhar?
“Isto está tudo feito num oito, caramba.” Ficou-nos o emprego, por enquanto. E a medicina privada, felizmente em expansão. “Não há-de ser sempre assim” – respondi eu. Será que é isto que temos para oferecer aos jovens que venceram tantas dificuldades para realizar o sonho de ser médico? Este emprego, ainda por cima tão mal pago?... Aos mais velhos vá que vai ficando a recordação do que durante trinta anos não foi assim.
O sistema de saúde mudou, a gestão hospitalar também, mas era sempre melhor o que passou. O presente é assim, tenhamos esperança no futuro.
Carlos Costa Almeida, Revista da Ordem dos Médicos

3.2.08

INCOMPREENSÃO

O ministro da saúde agora substituído clamava que o país não compreende o alcance das mudanças introduzidas no nosso sistema de saúde. É claro que se pode dar uma interpretação governamentalmente conveniente a essa incompreensão, a de que são precisas mais explicações sobre o que se pretende com as medidas tomadas. Mas ela também pode interpretar-se, em bom português, de outra maneira: como um generalizado desacordo com o que tem vindo a ser feito.
E no entanto há quem diga compreender, e que considere até estúpidos todos os outros, os que não percebem. O problema é que os “estúpidos” são, para além dos doentes, os profissionais que com eles lidam no dia a dia dos hospitais e dos centros de saúde, e que os tratam ou procuram tratar.
É realmente preocupante que seja quem está no terreno, os produtivos, os profissionais que são o núcleo do sistema e cuja actuação justifica tudo o resto que à sua volta gravita, quem começa por não compreender. E mais preocupante ainda é que quando o Dr. António Arnaut, há umas dezenas de anos, introduziu as mudanças profundas que constituíram o Serviço Nacional de Saúde, todos perceberam. Desde os doentes aos profissionais de saúde, todos as entenderam, não houve “estúpidos”, muito menos geraram manifestações populares e vigílias de repúdio, ou explicações ministeriais sistemáticas sobre a morte de doentes alegadamente por falta de assistência. E o bom resultado dessas medidas viu-se durante 30 anos, tendo dado origem à porventura maior realização social após o 25 de Abril.
A verdade é que há muita gente a falar do que não sabe. Se cada um falasse do que sabe – o que implicaria para alguns não falar da saúde só por ouvir dizer - chegar-se-ia com certeza mais facilmente a bons resultados. Urgências, emergências, casos agudos, falsas urgências, urgências básicas ou polivalentes, etc., são tudo assuntos clínicos, que aos médicos dizem respeito e a ser discutidos e resolvidos entre médicos. Não se compreende que esquemas e planos elaborados por esses técnicos nessas áreas possam depois ser distorcidos por razões declaradamente políticas, ou melhor, partidárias.
Não se compreende que uma nova lei de gestão hospitalar tenha pura e simplesmente inviabilizado as carreiras médicas, eliminando a estrutura que foi um dos pilares do SNS e contribuiu decisivamente para a boa formação pós-graduada contínua dos nossos médicos, com as repercussões negativas que se antevêem a curto prazo.
A nova lei produziu hospitais desestruturados, com muitos serviços tecnicamente desierarquizados, com chefias escolhidas “ad hoc”, de acordo com parâmetros também eles incompreensíveis. E evidenciando uma preocupação com a produtividade médica centrada no controlo biométrico de assiduidade, revelando um pungente desconhecimento da natureza da actividade médica e das suas particularidades e idiossincrasias, como actividade nuclear do hospital, com ignorância de que o melhor caminho para atingir aquele fim seria confiá-lo à gestão clínica de cada serviço. Mas compreende-se que para isso a nomeação dos directores clínicos e de serviço teria de ser feita doutra maneira e a gestão dos hospitais intrinsecamente diferente.
Também não se compreende que vantagens trouxe retalhar o tecido hospitalar nacional em dezenas de empresas, geridas por pessoas que esmagadoramente apenas querem que o “seu” hospital tenha menos prejuízo que os outros, administrando-o para isso como uma mercearia de bairro, sem terem minimamente em conta a função de cada instituição hospitalar no quadro sanitário do país e na zona onde está inserida.
Vá lá que é claramente perceptível o objectivo fulcral da política de saúde do nosso actual governo: poupar dinheiro na saúde. Ou melhor, gastar menos dinheiro, porque poupar seria manter a mesma qualidade gastando menos dinheiro, e infelizmente a nossa descida no ranking internacional das qualidades de saúde nacionais é acelerada. Quem dirige a saúde dessa maneira percebeu que tem dois grandes óbices: por um lado os doentes que querem ser tratados, por outro os médicos que os querem tratar. Por isso houve que dificultar o acesso dos doentes aos locais onde os cuidados médicos são prestados, e ao mesmo tempo criar toda a espécie de incómodos e dificuldades aos médicos hospitalares, levando-os mesmo a sair para a medicina privada.
Mas nessa preocupação economicista já não se percebe o porquê de atulhar os hospitais com administradores hospitalares, ainda por cima isentos de horário, como se fossem eles a eventualmente demorarem mais tempo a operar um doente ou a sentirem a necessidade de ir ver algum fora de horas. Num delírio administrativo que levou também a gastos sumptuários com sistemas informáticos dispensáveis, sobretudo quando se quer poupar dinheiro.
Compreende-se que a saúde dum país deve assentar primariamente nos cuidados de saúde primários, por isso não se compreende que os médicos de família vão sendo colocados fora do circuito dos “seus” doentes. As emergências pré-hospitalares dizem respeito ao INEM, mas procurou-se eufemísticamente acentuar uma diferença entre urgência e caso agudo, para justificar que os doentes não precisam de procurar o seu médico, nem devem fazê-lo, até pode ser perigoso, eles não sabem nem têm condições. Ora alguém que durante a noite, ou num sábado, domingo ou feriado, tem uma dor de barriga e vómitos, ou uma forte dor de cabeça ou de ouvidos, ou dispneia moderada com tosse, ou um pico hipertensivo, ou uma descompensação da sua crónica insuficiência cardíaca, etc., precisa com urgência de um médico, não dum bombeiro, dum enfermeiro, ou dum emergencista. E não precisaria provavelmente de ser deslocado para uma urgência hospitalar a cinquenta ou sessenta quilómetros de distância, onde chega sem ter sido visto antes pelo “seu” médico, ou outro.
Compreende-se, pois, que as urgências hospitalares estejam cada vez mais sobrecarregadas com doentes, e que o atendimento possa por isso ter falhas, mas já não se compreende que nelas se diminuam as equipas e reduzam as especialidades, tornando-as frequentemente locais de trabalho quase impraticáveis e perigosos. Ao mesmo tempo que do chamado plano de reestruturação das urgências tenham resultado apenas encerramentos, quando se encerram também centros de saúde e de atendimento permanente, em vez de se criarem nesses centros as condições necessárias para não ser “perigoso” os doentes lá irem de urgência.
Como se vê, da reforma da saúde em curso há muita coisa que não se compreende, na asserção semântica de não se estar nada de acordo com ela. Mas uma coisa não se compreende mesmo, é por que razão o governo vai gastar milhões numa auditoria estrangeira a esta política de saúde, só para que alguém possa eventualmente dizer bem duma coisa de que quase todos os que a sentem na pele dizem mal. É mais um gasto inútil, no meio de tanta poupança, mesmo que não se pague mais para o resultado ser menos negativo.
Carlos Costa Almeida, Pub Tempo Medicina.