15.4.17

O “CURRICULUM VITAE”

Carlos M. Costa Almeida

O «Curriculum vitae», com aquilo a que se tem chamado a sua «discussão» (avaliação), constitui, nos nossos concursos como, em boa verdade, nos dos outros países, uma peça fulcral.
«Curriculum vitae» significa «curso da vida». Tratando-se de um «curriculum  vitae» dum  profissional  da  medicina,  é  óbvio  que corresponderá  ao  curso  da  sua  vida profissional;  por  outras  palavras,  àquilo  que ele  fez,  desse  ponto  de  vista,  até  ao momento  em  que  o  está  a  escrever.
Aceite a definição, é evidente que nele não caberão descrições mais ou menos pormenorizadas do ou dos Serviços onde o autor do «curriculum» trabalhou, a não ser que esse ou esses Serviços tenham sentido alterações, melhoramentos, incrementos, da sua responsabilidade pessoal, para além do seu mero trabalho diário e rotineiro. Essas alterações, esses progressos, por si introduzidos, ou estimulados, sim, farão com certeza parte do seu «curriculum  vitae»; o resto, não. Além disso, poderá ser lícito em termos curriculares realçar que teve oportunidade de trabalhar num local e com profissionais que façam de algum modo uma diferença significativa em relação ao comum dos centros da sua área médica.
As longas e pormenorizadas descrições, de carácter encomiante, do funcionamento dos Serviços, de todo normais, apenas sugerem falta de factos curriculares (isto é, do «curriculum vitae», ou seja, da vida profissional do autor, quer dizer, daquilo que ele realmente fez do ponto de vista profissional, sentindo por isso necessidade de empolar o local onde trabalha para disso obter vantagem pessoal). Digo «apenas» porque quero deliberadamente esquecer a hipótese de o autor do pretenso «curriculum vitae» o utilizar como elemento de adulação dos elementos do Serviço que fazem parte do júri. Esse aspecto, tão conhecido de nós todos, está absolutamente fora do contexto deste artigo.
Também não terão cabimento opiniões sobre maneiras de tratar doentes, sobre técnicas ou tácticas cirúrgicas, ou sobre resultados terapêuticos, a não ser que o autor tenha criado, ou experimentado, algo de inovador nalguns desses campos.
As considerações «psico-filosóficas» sobre a Vida e os seus segredos, sobre a Humanidade em geral e os doentes em particular, sobre o Sistema Nacional de Saúde ou a medicina privada, etc., são também inteiramente descabidas.
O «Curriculum vitae» deve ser exclusivamente a descrição do que o seu autor produziu enquanto profissional, daquilo que mostrou ser capaz de fazer na fase pré-profissional, e ainda, eventualmente, de actividades para-médicas que traduzem conhecimentos científicos, interesse e capacidade de ensinar, de organizar, de criar, de inovar, de fazer. Da avaliação disto tudo, do que ele conseguiu realizar, o júri poderá ter uma ideia do que ele poderá fazer no futuro.
A descrição de factos, que terá em si mesma de ser perfeitamente objectiva, deverá ao mesmo tempo ser feita de maneira que dê uma ideia do trajecto pessoal do autor, tornando evidentes eventuais dificuldades que tenha tido que vencer, para além das que são implícitas na sua actividade.  Estes aspectos são importantes para a apreciação da pessoa cuja vida profissional está a ser analisada, sem que se admita, claro, que um «curriculum vitae» possa ser transformado num romance autobiográfico.
Se os factos em si contam, a maneira como o profissional a ser avaliado os conseguiu realizar também poderá ser importante para se ter uma ideia das suas capacidades. Será de referir, por exemplo, que teve de trabalhar ao mesmo tempo que estudava, por dificuldades económicas familiares; que tem, ou teve, qualquer dificuldade física, ou doença, que lhe tornou o estudo ou trabalho mais penoso que aos seus pares; que enquanto aluno, ou interno, foi obrigado, por razões extra-profissionais, a mudar de estabelecimento de ensino, ou Serviço, mantendo sempre, no entanto, o mesmo bom desempenho; que para fazer um determinado estágio no estrangeiro teve de concorrer com outros à obtenção duma bolsa, a qual lhe foi concedida a ele; etc., etc.
Outros factores extra-científicos, ou antes, para-científicos, importantes para a avaliação do técnico em presença de cujo «curriculum» científico se está, são, por  um lado, o modo como os dados são apresentados, por outro, a ortografia usada.  Erros de ortografia, tal como os de construção de frases, significam uma preparação básica medíocre, sobre a qual, a não ter sido corrigida, dificilmente se virá a desenvolver um verdadeiro grande profissional.
A estrutura dos «curricula vitae» poderá variar, mas, em minha opinião, há uma base que deverá ser mantida, para mais fácil apreciação comparativa. Base estrutural essa que continuará a mesma, seja para que concurso for que ele seja feito. Os factos a valorizar mais é que poderão ser diferentes, consoante o objectivo do concurso em causa.
Os dados serão distribuídos por capítulos, indexados num índice, colocado no princípio ou no fim, e que funciona como um sumário para consulta rápida e global. A maneira como está elaborado diz muito do seu autor.
O «curriculum vitae» deverá começar por um Registo Biográfico, com local e data de nascimento, e filiação.
Seguir-se-á a Carreira Escolar, com o trajecto escolar até à Universidade. Nota final no ensino secundário e de ingresso no ensino superior. Depois, classificação no curso de Medicina, com menção de eventuais prémios ou distinções recebidos, e resultado obtido no exame de seriação para acesso ao internato de especialidade.
Em seguida, Internato: ano comum e formação específica. Onde foram essas duas parte realizadas, datas, classificações, quem era o Director de Serviço e o Orientador de Formação.
Estágios feitos fora do Serviço, eventualmente no estrangeiro. É importante dizer como foram conseguidos: à própria custa, com a simpatia do Director (ou do Orientador, sendo interno), ou concorrendo a uma bolsa de estudo e ganhando-a. E quais os objectivos, enquadrando-os dentro do plano individual de preparação ou de actividade. Bem como quais foram as suas consequências, para o próprio e  para o Serviço onde está inserido.
Actividade Médica Hospitalar: funções desempenhadas (incluindo a de orientador de formação), para além do trabalho de rotina. Eventualmente criação, ou desenvolvimento, de alguma actividade hospitalar. Possibilidade de colaborar nalgum trabalho de ponta, ou de o criar. Funções de chefia ou de direcção de carácter clínico.
Actividade Médica Extra-hospitalar eventualmente existente: funções desempenhadas, experiência conseguida.
Outra Actividade Hospitalar: cargos desempenhados, funções de direcção ou de chefia não clínicas; cursos de gestão hospitalar, de controlo de qualidade ou de revisão de processos; organização de reuniões científicas ou de ensino pós-graduado; ter sido escolhido para integrar comissões ou grupos de trabalho com um fim determinado, no Serviço, no hospital ou a nível nacional, ou para melhorar ou iniciar algo no seu local de trabalho; etc.
Alguma Actividade não médica eventualmente relevante para dar uma ideia do profissional em causa como pessoa.
Concursos da carreira hospitalar: para o grau de consultor, para provimento como graduado sénior. Local e data; classificação, absoluta e relativa, com indicação do número de concorrentes.
Actividade Docente, se a houver: Faculdade de Medicina, Escola de Enfermagem, Escola de Técnicos de Saúde, etc. Funções desempenhadas nessa actividade, e sua duração. O ensino de internos não é sequer de referir, uma vez que faz parte da actividade normal dum especialista hospitalar. Títulos da Carreira Académica, se for o caso.
Actividade de Investigação, quando existe: clínica ou laboratorial, com indicação dos objectivos, colaboradores, meios, locais e datas. Referir se foi admitido num programa doutoral, e se está a desenvolver um trabalho de investigação nesse âmbito, e qual o tema.
Conferências proferidas, onde e quando. Trabalhos apresentados, escritos e orais, com locais, datas, e indicação dos autores, tornando bem clara a posição relativa entre eles do autor do «curriculum» (um trabalho em que se é autor único, ou primeiro autor entre dois ou três, não será com certeza de considerar como um trabalho do Serviço com dez autores...). Poder-se-á fazer um pequeno resumo de cada um, ou dos que se considerarem mais importantes ou originais.
Cursos em que participou, como docente ou discente, bem identificados em relação a quem os levou a cabo, onde e quando, e com relevo para os que tiveram avaliação final, com indicação da sua, se for o caso.
Reuniões Científicas em que tomou parte activa, apresentando trabalhos, participando em mesas redondas, fazendo palestras. Reuniões científicas que organizou ou ajudou a organizar. Reuniões científicas a que assistiu, com indicação do título, local e data.
Actividade Para-médica relevante, como lugares desempenhados na Ordem dos Médicos, ou em outras associações médicas, científicas ou sindicais.
Sociedades  Científicas  a  que  pertence.
Finalmente, no caso de se tratar duma especialidade em que haja técnicas a executar, cirúrgicas ou outras, uma listagem quantitativa parece-me importante. Isto é com certeza discutível, mas quando estão publicados currículos de especialidade chamados mínimos, com carácter quantitativo quase todos, creio que será de apresentar essa listagem. Ela, ao fim e ao cabo, sempre dá alguma ideia da experiência técnica do seu autor. Devo, no entanto, dizer que tal listagem não é habitual noutros países, onde é feita apenas para uso individual ou para orientação interna de cada Serviço, ou ainda para demonstrar experiência numa determinada área específica.
Realmente, se se aceita que um Serviço funciona bem e é idóneo, todos dentro dele deverão ter experiência suficiente na respectiva especialidade e consoante o seu grau de diferenciação. O problema é que no nosso País, cheio de originalidades, as coisas não se passam sempre assim... Por exemplo, foram publicados pelo Ministério da Saúde currículos de especialidade mínimos elaborados pela Ordem  dos Médicos, através dos seus colégios; portanto, se um interno acabar o seu internato de formação específica e apresentar o «curriculum vitae» sem listagem das intervenções em que tomou parte, terá de se acreditar que cumpriu nesse campo o estabelecido por lei e pela Ordem dos Médicos. Mas, ao mesmo tempo, admite-se que muitas vezes não é possível cumprir esses currículos em todos os seus pormenores em Serviços considerados idóneos. Logo, admite-se «a priori» que um interno pode não o ter cumprido integralmente… e haverá, por isso, que avaliar possíveis implicações desse facto.
Como documentos finais, apenas se deverão incluir declarações escritas do Director de Serviço, e eventualmente do Orientar de Formação ou doutros profissionais que o queiram fazer, ou outros documentos abonatórios. Nunca o diploma de curso, ou de inscrição na Ordem dos Médicos, ou a declaração do Hospital em como é assistente hospitalar, ou assistente graduado, ou sénior, etc. Isso são redundâncias que apenas servem para fazer volume.
E um «curriculum vitae» não se deve avaliar pelo número de páginas, pelo peso, pela organização do Serviço onde o autor trabalha (se isso não for da sua responsabilidade), ou pelas suas opiniões sobre técnicas cirúrgicas inventadas por outros, ou sobre a saúde em Portugal. Deve-se avaliar estritamente pelo que o seu autor fez. E pela maneira clara, límpida, lógica, inteligente e objectiva como o expuser.
Carlos Costa Almeida
Director de Serviço de Cirurgia do CHUC - Hospital Geral (Covões), Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra.

1.4.17

OS MÉDICOS E A INTOLERÂNCIA

Um bom médico é sobretudo um bom profissional. Claro que ser simpático, compassivo, humano, pronto a ajudar, tolerante, afectuoso com o seu semelhante, tudo aquilo que duma maneira geral contribui para se ser uma “boa pessoa”, também ajuda, mas a pedra de toque é sem dúvida o profissionalismo. O médico deve tratar os seus doentes da melhor maneira possível de cabeça fria, com objectividade, deixando a afectividade que lhe pode toldar o raciocínio e o comportamento de parte. Por isso se diz que não deve tratar pessoas que lhe sejam muito queridas, pais, filhos, etc., e que “um dos maiores riscos dum doente é ser amigo do médico”! Esta abstenção profissional de afectividade permite-lhe tratar igualmente bem pessoas de quem goste e pessoas por quem não tenha simpatia ou que deteste mesmo, o que é fundamental sendo a população de doentes extremamente heterogénea como é.

Objectividade e sangue frio é, portanto, o que se pretende de qualquer profissional. Mas não nos podemos esquecer que as máquinas com que lidamos, os doentes, têm sentimentos, têm afectividade, provavelmente especialmente exacerbada num momento de fraqueza, de preocupação e de sofrimento como é a doença. Teremos, pois, de, objectiva e friamente, profissionalmente, ter isso em linha de conta, não ignorar e saber lidar com o modo de ser de cada um, com os estados de alma, os medos, as hesitações e as dúvidas daqueles que de nós precisam para se tratar. Não por sermos boas pessoas mas para sermos bons profissionais. Porque é sabido que toda a actividade mental e afectiva tem repercussão física na reacção do corpo à doença e aos tratamentos instituídos, através de substâncias químicas, intermediários, endorfinas, de que agora pouco mais sabemos que seguramente existem e actuam do ponto de vista fisiológico ou fisiopatológico no organismo.

Tudo isto deve ter, obviamente, repercussões marcadas e determinantes no trato do médico com os seus doentes. Desde Hipócrates que a preocupação do médico é com a pessoa doente, mais do que com a doença ou as doenças consideradas no seu conjunto, como era, e é, apanágio da medicina chamada mágica, ou da religiosa. A relação médico-doente é fulcral, e durante muitos séculos baseou-se no dever de o médico fazer o melhor possível pelo “seu” doente, com o direito daí decorrente de escolher a que considerar a melhor opção para o conseguir, e o paciente simplesmente confiar nele. Foi a época do paternalismo médico, os médicos procurando fazer bem sem fazer mal e os doentes esperando exactamente isso e a eles se entregando. Mas, no início do século passado, gerou-se a ideia de que as pessoas doentes têm o direito de tomar parte nas decisões médicas que a elas digam respeito, devendo para isso ser devidamente informadas. Não mais a decisão e a responsabilidade continuaram a ser apenas do médico: elas passaram a resultar dum contrato deste com o doente, o qual consente nos exames ou tratamentos propostos por aquele. Ou não.

Hoje em dia, pois, ao planear-se ou decidir-se um tratamento há que dar a possibilidade ao doente de o discutir, fornecendo-lhe as informações necessárias para que ele se sinta esclarecido e possa livremente aceitá-lo. É o chamado consentimento eficaz, que se tem de obter para que o nosso contrato terapêutico com o doente possa ser posto em prática. Mas, desse modo, é possível que tal consentimento nos seja negado, e a discussão doutras possibilidades se tenha de fazer até ele ser dado. Desde que é um direito reconhecido ao doente, o médico tem de ter a tolerância necessária perante alguma dificuldade em chegarem a acordo. Se bem que a grande maioria dos doentes aceitem facilmente que o médico está a exercer o seu dever de os tratar da melhor maneira possível, alguns têm algumas dúvidas e objecções de natureza vária que tornam o entendimento difícil ou até impossível. Se isto acontecer, nalgumas situações o médico poderá recusar-se a tratar aquele doente, sem que essa recusa de médico seja ilícita ou não ética; mas, pelo contrário, noutras não o poderá fazer, tendo de ceder aos desejos expressos pelo paciente no seu tratamento.

Uma das situações clássicas de alguma dificuldade de entendimento entre médico e doente é no recurso a transfusões de sangue e derivados em quem as recusa por razões religiosas – as testemunhas de Jeová. Esses doentes querem ser tratados, mas não aceitam ser transfundidos. Actualmente estamos cientes dos perigos das transfusões homólogas e da necessidade e vantagem de utilizar o menos sangue possivel como medicamento, e a “cirurgia sem sangue” é um objectivo a atingir sempre que possível, inclusivamente fazendo valer uma maior maestria técnica e uma melhor execução das intervenções. Mas mesmo com este esforço, obrigatório, assente em razões científicas sólidas, para não recorrer ao sangue, há situações clínicas em que, do ponto de vista médico, é inequivocamente considerada a transfusão como fundamental. E é só nestas que o problema se deve colocar.

Num contrato a distância, para uma cirurgia de rotina, o cirurgião pode recusar-se a operar o doente se este lhe vedar a possibilidade de utilizar sangue. E há profissionais que o fazem por princípio, inclusive em intervenções que se podem realizar, e se devem mesmo realizar, dentro do princípio da “bloodless surgery”, sem o recurso a sangue. Nestas condições, a recusa do médico, ética e legal embora, reveste um carácter de intolerância perante as convicções religiosas do seu paciente. Mesmo de cirurgiões mais apetrechados tecnicamente e com melhores condições de trabalho e que facilmente poderiam realizar a cirurgia sem uso de sangue, que se negam a fazê-lo pelo princípio de não tolerarem a opção de carácter religioso do doente.

Se o médico aceitar tratar o paciente sem sangue, é isso mesmo que terá de fazer. Seria inaceitável, do ponto de vista ético e legal, quebrar esse contrato, inclusivamente nas tais condições em que o seu uso é inquestionável do ponto de vista clínico. Se o doente, esclarecido, assim o exigiu, assim terá de ser feito, competindo ao médico tentar de todas as formas suprir essa falta, mesmo que com mau resultado.

Nas situações de urgência, se o doente, esclarecido, consciente e competente, declarar a sua recusa, assim terá de ser tratado pelo médico, ainda que intolerante para com ele. Tratá-lo-á sem sangue, aparte isso da melhor maneira que souber, e quando muito poderá, assim que possível, entregar o seu tratamento a outro colega que aceite fazê-lo. Mas se, nas mesmas circunstâncias, o doente chegar inconsciente, sendo a sua recusa de transfusão apenas comunicada por familiares, amigos ou acompanhantes, caberá ao médico a decisão de administrar ou não sangue, de acordo com as reais necessidades e o princípio de o usar o menos possível. Esse é o seu privilégio legal e a sua obrigação ética, sendo posteriormente altura para o doente salvo pela sua intervenção se mostrar tolerante para com o esforço que foi feito para seu bem, apesar de eventualmente contra o seu credo religioso.  

Carlos Costa Almeida
In Newsletter da Cirurgia C, Número 7, Março 2017, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões) - CHUC (Coimbra)