17.9.06

Carreiras na mira

Desde sempre foi evidente que a nova lei de gestão hospitalar – publicada pelo actual ministro da Saúde quando o era pela primeira vez, em 2002 - dificilmente seria articulável com a existência de carreiras médicas, e do mesmo modo o sistema (?!) de saúde que se tem desde então vindo a delinear aos poucos dá sinais de não contar com elas e de as considerar mesmo um empecilho. Oiça-se o que se ouvir, na prática é o que se vê.
E na prática a destruição das carreiras já começou, ao ser possível, e estar a ser praticada, a nomeação como directores de serviço de médicos que não atingiram ainda o topo da carreira, quando há outros mais graduados disponíveis. Nos hospitais empresarializados (SA ou EPE), legalmente, e nos outros, apesar de nesses a lei aplicável o contradizer, qualquer um, mais graduado ou menos graduado, pode ser nomeado para o efeito. A escolha é do director clínico, ou antes, do director do hospital, o qual por sua vez foi quem escolheu o director clínico e o pode demitir a qualquer momento, se ele deixar de cumprir os critérios que levaram à sua nomeação. Que critérios? Os critérios não estão estabelecidos em parte alguma, são pessoais, de confiança pessoal e política, os mesmos que levaram à nomeação do próprio director do hospital pelo ministro da Saúde, e que traçarão o “perfil” exigido aos directores de serviço nomeados em cada hospital.
Ora o papel do director de serviço é eminentemente técnico, responsável máximo no Serviço pela actividade clínica e pelo treino dos mais novos, elemento que deve ser de referência para os outros, com a experiência e o prestígio pessoal e profissional que o tornem naturalmente respeitado e aceite no grupo de trabalho que um Serviço clínico deve ser. É, pois, obviamente desejável que ele seja escolhido entre os que, por provas dadas, da carreira médica e, eventualmente, da carreira académica, atingiram a maior diferenciação profissional no grupo.
Mas na nova ordem implantada nos nossos hospitais, não é isso que se passa, pelo menos não obrigatoriamente. É deixado ao poder discricionário de um, com os seus critérios pessoais. O grau de carreira e as provas dadas não contam para nada, a opinião desse é que prevalece. E isso dá que pensar. Porquê assim? Procurando resposta para esta questão lembrei-me, muito a propósito como verão, dum facto respeitante à guerra do Vietname.
Nos campos de prisioneiros de guerra é norma internacional que haja um deles que lidera os outros, os organiza e os representa face aos captores, e esse é o oficial de patente mais elevada presente entre os detidos. Essa liderança é indiscutida, o grupo permanece coeso, organizado, e essa organização ajuda-os a mais facilmente sobreviverem, enquanto grupo e individualmente, como seres vivos mas também como militares e como homens. Contrariando a norma, nos campos de prisioneiros americanos na guerra do Vietname isso não se passava assim. Os vietcongs escolhiam eles aquele a quem punham o nome de líder do grupo de prisioneiros, por critérios que eram do director do campo. Era um oficial subalterno, um sargento, um cabo ou até um simples soldado, um elemento que ele entendesse ter o perfil adequado para servir os seus desígnios. Ao mesmo tempo que diminuía perante todos o oficial mais graduado, o chefe natural, escolhia o mais novo em idade, ou o mais medroso, o mais inseguro ou então o mais ambicioso e com menos escrúpulos, que ao sentir-se de posse dum poder que não esperava e que não merecia tudo faria para o manter. Nenhum dos outros lhe reconhecia intrinsecamente autoridade, e por isso a única que ele podia exercer é a que lhe provinha de quem o nomeara, o que o transformava desde logo numa simples correia de transmissão do director do campo. À medida que o tempo passava e a sua actuação se revelava nesse sentido, mais dependente ele ficava do lugar e com receio de o perder. Assim os captores conseguiam a desagregação do grupo, o desentendimento no seu interior, o seu enfraquecimento, a completa falta de iniciativas credíveis e com alguma hipótese de sucesso.
Como estratégia de destruição, foi uma estratégia eficaz. Será que se pode achar aqui alguma semelhança, respeitando-se as diferenças? Mas será que alguém está interessado em destruir os Serviços, a vida hospitalar e os Hospitais? Provavelmente não, mas um desejo cego de pôr as carreiras médicas em causa e acabar por eliminá-las poderá levar a isso. Se isso acontecer, haverá que responsabilizar alguém. E depois não se diga que foram atitudes e medidas impensadas.
Mas talvez a mira não esteja sobre as carreiras médicas. Ao fim e ao cabo outras carreiras estão a ter problemas, na área da saúde e fora dela. E não se afirmou já que o Procurador Geral da República não precisa de ser um Procurador (magistrado do ministério público)? E que os Juizes do Supremo Tribunal de Justiça não é necessário que sejam Juizes? Será que alguém neste país está a pensar em substituir as carreiras profissionais por uma espécie de carreirismo político?... (Pub. Tempo Medicina 18/9/2006)

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