18.9.11

Recordando para memória futura

Há pouco mais de 6 anos houve uma mudança significativa na organização da Saúde no nosso país, com medidas que foram julgadas por alguns, desde logo, como lesivas a médio e a longo prazo, senão de imediato. Todas essas críticas foram liminarmente ignoradas, e as medidas propostas, incensadas por alguns e por muita da comunicação social, foram postas em execução, e mantidas até hoje.
Diz-se que um país que não tem em conta a sua História não tem futuro. O mesmo é válido para cada um de nós, e para as instituições, e para os ministérios. Incluindo o da Saúde. Na altura daquelas mudanças, e visando sobretudo as da área hospitalar, escrevi e publiquei um artigo, em papel e no blog da Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar (medicoshospitalares.blogspot.com), depois inserido no livro “Farpas pela nossa Saúde” (ed. MinervaCoimbra), intitulado “Os dois Antónios do PS na Saúde”. Num momento de mudança de governo, e em que se esperam mudanças, será oportuno relê-lo. Dizia assim:
“O Dr. António Arnaut, advogado de Coimbra e membro antigo do Partido Socialista, foi o criador do Serviço Nacional de Saúde (SNS), há mais de 25 anos. E ficou na História por bons motivos, "pai" dum serviço que neste último quarto de século funcionou perfeitamente, e que até há uns meros 5 anos a Organização Mundial de Saúde classificava em 12º lugar entre todos os sistemas de saúde do mundo, com o 5 º lugar na Europa e muito à frente do inglês e do norteamericano (37º), sendo apesar disso o que gasta menos entre todos os dos países da Europa dos doze. Um Serviço de Saúde verdadeiramente aberto a todos, ricos e pobres, nas cidades maiores e nas aldeias mais recônditas, tendencialmente gratuito, e permitindo com facilidade e "souplesse" a articulação com as Carreiras Médicas. Estas foram um passo decisivo na organização médica e na nossa formação pós-graduada, responsáveis por um avanço ímpar na nossa História em termos de preparação técnico-científica dos médicos, e sobretudo na sua homogeneização em todo o território, desde os hospitais maiores até aos mais pequenos e distantes dos grandes centros.
O outro António, o Dr. Correia de Campos, socialista mais recente, chegou ao Ministério da Saúde em 2002, saiu e voltou a entrar, e desde sempre tem demonstrado para com a Saúde uma preocupação economicista redutora, que coloca acima de tudo e de todos. Essa preocupação veio fixar muito claramente um preço à saúde, e à vida (habitualmente ditas sem preço), pondo cada vez mais restrições nessa área. Tem o objectivo confesso de poupar dinheiro com a saúde, o que justificou as medidas que tem tomado para alterar o SNS, e que ao que tudo indica vão pôr em perigo as próprias Carreiras Médicas. Apesar dessa preocupação, e das medidas que tem tomado, a despesa não pára de crescer, eventualmente pela sobrecarga administrativa e burocrática que elas próprias acarretaram. Obrigando a uma cada vez maior comparticipação financeira directa dos doentes, já agora uma das mais elevadas na Europa dos doze.
São estes os dois Antónios do PS em questão. Um ficou famoso, o outro vamos a ver. Tudo dependerá dos resultados.”
Pois bem, os resultados estão à vista, e a conclusão a tirar é por demais evidente. Inegavelmente coincidindo com as alterações introduzidas, a despesa com a Saúde disparou, as carreiras médicas, garante no nosso país de formação contínua adequada e de progressão na hierarquia da competência, da responsabilidade e do vencimento daí decorrente, foram aviltadas e destruídas, substituídas por uma trapalhada qualquer que já ninguém percebe o que é. Sucedem-se contratos e mais contratos, o mais díspares possível, uns pelo preço da chuva outros por valores milionários, sem qualquer explicação aceitável, à peça ou à hora, ou “por objectivos de produção”, como os administradores a quem os hospitais estão entregues gostam de dizer. A actividade científica desvanece-se, sem qualquer estímulo e carregada do ónus de ficar muito cara, e a qualidade da medicina praticada diminui a olhos vistos (para quem queira ver), já com sinais preocupantes como o aumento da mortalidade por tuberculose e a recrudescência da mortalidade infantil, com o acesso global dos doentes aos cuidados de saúde a remeter-nos actualmente para o 27º lugar na Europa (numa queda a pique de 22 lugares). E falamos em apenas meia dúzia de anos.
Ao fim de tão pouco tempo, a medicina hospitalar portuguesa ficou num beco sem saída, do qual, a manter-se tudo como está, não tem meios para recuar. Por via das mudanças introduzidas pelo segundo dos Antónios citados. Mas estas mudanças poderiam, a par do desmantelamento da estrutura que suportava a qualidade, ter pelo menos levado a poupar algum dinheiro, o que, eventualmente, ainda deporia a seu favor. Mas não, dos hospitais empresarializados daquele modo um terço estão considerados falidos, e note-se que isto, dito assim, é, como todos sabemos, demasiado lisonjeiro para os outros dois terços.
Foi sobre este desastre que se veio agora abater a crise financeira que nos aflige. Urge modificar as coisas, poupar, com certeza, mas não apenas com cortes cegos e sem olhar a quem ou a quê. É preciso acima de tudo corrigir o que de mal foi feito e levou ao estado actual, e que foi repetidamente detectado, exposto e discutido. E é isso que numa hora de mudança se espera.
Sim, é possível corrigir, reestruturar, recuperar a qualidade e a eficácia, e com elas poupar muito, melhorando. É a qualidade que acaba por ficar mais barata. Mas é preciso mudar, e isso não se consegue continuando a ouvir, a publicar, a seguir, muitos daqueles que contribuíram para o que foi feito erradamente. Por muito que digam agora, a sua obra está aí. Fala por eles. Oiçam-se outros, sigam-se outros. Não se queira ignorar a História, porque se o fizermos corremos o risco de repetir os mesmos erros. Ou, neste caso, continuá-los, o que será, além do mais, incompreensível já no momento presente.
Carlos Costa Almeida, APMCH