6.12.09

BLOWING IN THE WIND

A nova Legislatura conseguiu o primeiro êxito na área da Saúde. A ministra da Saúde considerou haver condições para terminar com o pagamento pelos doentes dos hospitais públicos de taxas moderadoras no internamento e nas cirurgias. Vai fazer o que tantos clamaram dever fazer, e o próprio ministro Correia de Campos dizia antes de ser ministro, quando labutava na oposição. Está a Dra. Ana Jorge de parabéns.
Muitas vozes se ergueram na altura contra o que consideramos um atentado grave ao Serviço Nacional de Saúde, ao seu espírito, de serviço público tendencialmente gratuito. Dessas vozes avultou, como seria de esperar, a do próprio criador do SNS, o Dr. António Arnaut. A nossa Associação, a Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar, foi das organizações médicas que criticaram a criação daquelas taxas, e den-tre elas a que se bateu duma maneira empenhada, persistente, lógica, convicta, pela sua revogação, chegando ao ponto de apresentar uma queixa no Provedor de Justiça, solicitando-lhe a intervenção no sentido de dirigir ao Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização constitucional daquela medida. Devo dizer que ficámos sem resposta, nem sim nem não. Silêncio.
Pela minha boca, enquanto Presidente, e pela de outros colegas, em diversas ocasiões, a Associação dos Médicos de Carreira Hospitalar fez largamente saber que não concordava com o pagamento que era exigido daquela maneira aos doentes internados e operados nos hospitais, e que até foi apresentado como uma medida para levar os médicos a dar-lhes alta mais depressa, por razões económicas. Vários artigos foram escritos por nós e publicados neste jornal e em revistas médicas, artigos que os jornais nacionais generalistas, note-se, persistentemente se recusaram a aceitar.
Dizem que o tempo é a grande solução. Quantos cheios de razão passam uma vida à espera que o tempo se encarregue de lha dar! Às vezes tarde demais, para eles ou para que não haja entretanto prejuízos severos que precisarão de muito mais tempo e muito esforço para serem recuperados. Não há na vida nada irreparável, mas há coisas muito difíceis de reparar.
Do que se tem passado nos nossos hospitais nos últimos anos, estas taxas moderadoras eram o mais fácil de corrigir: basta um despacho a anular outro despacho. Mas estão longe de ser o mais importante. Queremos, no entanto, acreditar que é um começo, por alguém que saberá ver pelos seus olhos o que vem acontecendo e através disso antever o futuro que se perspectiva. E que obriga seguramente a rever o presente.
As mudanças introduzidas na gestão dos hospitais EPE levaram a uma desestruturação clínica estabelecida, institucional, através duma teia de medidas artificiosamente construída e que precisará de algum trabalho e coragem política para desfazer, mesmo nesta Legislatura. A gestão clínica dos hospitais, condição absoluta para se tirar o maior proveito e rendimento possíveis das instituições hospitalares, foi secundarizada, entregue a quem as administrações entenderam, por razões por que elas serão responsáveis, e que contribuíu muitas vezes para aquela mesma secundarização. As carreiras médicas foram retiradas dos hospitais, mantendo-se os graus com responsabilidades crescentes mas podendo ser, e sendo, os mais diferenciados chefiados pelos menos diferenciados. Numa desierarquização que se reflectiu – e tinha de reflectir, e se irá reflectir mais – na saída de muitos dos mais experientes dos hospitais, por reforma antecipada, ou para a actividade privada, e no desinteresse dos que vão ficando, limitando-se a cumprir o que está contratualizado, como agora se diz, de acordo com o pagamento previamente estabelecido. O estímulo para a progressão científica está moribundo, a formação é um "fait divers" no dia a dia dos trabalhadores médicos, muitos deles contratados por objectivos, à peça ou à hora, segundo critérios os mais variados.
Quer dizer, se as mudanças na administração dos hospitais EPE foram introduzidas invocando a sustentabilidade financeira do SNS, a verdade é que os custos dos hospitais públicos não param de aumentar, e passou a estar cada vez mais posta em causa a sua sustentabilidade técnica e clínica, com a deterioração da formação e as incontornáveis repercussões, pelo menos a médio prazo, na qualidade da medicina praticada e na saúde conseguida.
O tecido hospitalar público nacional ficou retalhado em dezenas de empresas, cada uma delas entregue à administração que Deus lhe deu, gerida à sua maneira. Mas todas elas evoluindo paulatina e insensivelmente para policlínicas. Felizmente, diga-se de passagem, que existem algumas clínicas privadas a tentar evoluir para hospitais.
Há muito a fazer nesta nova Legislatura, e esperemos que o círculo decisório na Saúde se vá abrindo. Nós continuaremos a falar, porque não queremos ficar com a responsabilidade de nada ter dito. A responsabilidade total será de quem decidiu e de quem foi ouvido. Nós iremos tentando que quem manda e decide também nos oiça.
Lembram-se do Bob Dylan? Soprar no vento. Soprar contra o vento… remar contra a maré… de vez em quando… quando é preciso.
C. Costa Almeida in TM

A Saúde, os hospitais e a nova Legislatura - 2

E eis o primeiro resultado positivo da nova Legislatura, já sem a maioria absoluta que ensombrou e inutilizou todo o anterior debate parlamentar: a ministra da Saúde resolveu acabar com as taxas moderadoras nos internamentos e cirurgias nos hospitais públicos, contra as quais a nossa Associação tanto e tão persistentemente se bateu. Se constitucionalmente a saúde a cargo do Estado deve ser tendencialmente gra-tuita, aquelas taxas eram na verdade uma aberração, só possível de fazer vingar no ambiente de decisão autocrática que aquela maioria foi proporcionando, até ser removida. Acho que é agora altura de o círculo de decisão restrito que se estabeleceu na Saúde, coincidente com aquele ambiente, se abrir aos muitos outros, associados e representados, que trabalham naquela área, e cujas opiniões e sensibilidades, divergentes daquele círculo, parecem ser consideradas simplesmente inexistentes.
Muitas decisões desajustadas foram tomadas nestes últimos anos, e que necessitam de ser corrigidas, embora não o possam ser com tanta facilidade como aquelas taxas o foram. Esperemos que a nova Legislatura torne isso possível, com base na sociedade civil médica considerada em sentido lato e não da maneira exclusiva e redutora como tem sido. Nós continuaremos a falar, embora isso nos traga inconvenientes.
Tudo o que dizemos tem um fim construtivo, sugerindo alterações imprescindí-veis sem destruir completamente tudo o que foi feito. No artigo anterior falámos das mudanças administrativas da gestão hospitalar e das suas consequências negativas na gestão clínica, quando a gestão dos hospitais deve ser dirigida ao exercício da medicina.
A colocação das carreiras médicas fora dos hospitais transformou-as, na prática, numa espécie de curso pós-graduado com duas etapas. Não que isso seja mau, numa tentativa de estimular a formação contínua, mas ao não terem uma repercussão directa na vida intra-hospitalar perdem toda a força enquanto carreiras. Outra coisa seria se, como em qualquer carreira, na progressão para cargos de maior responsabilidade e de direcção técnica fossem necessariamente consideradas as carreiras médicas dentro de cada instituição, com comparação objectiva entre os vários elementos de cada grau, balizando as escolhas feitas. Estas vão ser feitas na mesma, mas segundo critérios a que aquelas são totalmente alheias. Nada de diferente do que já se faz, aliás. Amizade, ini-mizade, vingança e compadrio são aqui pedras de toque, ou podem ser, respeitadas pela lei que se estabeleceu.
“Um chefe fraco faz fraca a forte gente”, dizia o nosso Camões. Diminuir o nível no topo arrasta uma diminuição de todos os níveis abaixo. Numa diminuição iniludível de qualidade, com repercussões a médio prazo na nossa medicina e na nossa saúde. Que os administradores nem sequer notarão por não se poderem contabilizar directamente, mas que serão a explicação para uma medicina de má qualidade e cara. Ou cara porque de má qualidade. Ninguém se admire depois – a descida actual no “ranking” internacional tem sido já a pique - ou se assaquem culpas a todos os médicos.
As administrações hospitalares empresariais contratarão quem quiserem, dos graus que entenderem, mas não sei o que farão em termos de ordenados se os seus contratados subirem entretanto de grau. Serão obrigados a pagar-lhes mais? Precisarão de tantos médicos no topo da carreira? É que poderão ser todos, o que teoricamente até seria desejável, mas terão dinheiro disponível para lhes pagar? Com certeza outros menos graduados fariam o mesmo trabalho em termos numéricos, ou até mais, por menos dinheiro…
Os hospitais EPE estão a deixar sair os seus médicos e a contratar outros, ou os mesmos, mas em regime de mero fornecimento de serviços, ao estilo de policlínicas. O contrato individual de trabalho é agora a regra, com remunerações díspares e acordos de trabalho os mais variados, beneficiando objectivamente alguns de maneira às vezes inesperada, para dizer o menos, por razões que com certeza se lhes poderiam pedir, já que se trata de dinheiro de todos nós e não de instituições privadas. Será que o contrato colectivo de trabalho que se vem anunciando virá anular estas combinações pessoais? Terá de ser igual para todos? Pelo menos para os sócios dos sindicatos, como a lei actual prevê, sim. Ser sócio dum sindicato é condição sine qua non para ter acesso a alguns tipos de contrato colectivo de trabalho; se não se for, há o contrato colectivo geral. Ou então o contrato individual, para alguns contemplados, quem sabe se até muito mais vantajoso (isto se o círculo decisório na Saúde não o eliminar entretanto).
Ausência de carreira médica dentro de cada instituição; falta de estímulo estru-turado institucional para progressão científica; nomeações para chefias técnicas e direcções intermédias assentes puramente no “achismo”, de base muito variada, de quem transitoriamente manda no hospital; remunerações díspares por fornecimento de serviços específicos, à peça ou à hora, dos trabalhadores médicos, cuja formação contínua passou a não ser uma preocupação do hospital onde trabalham; perda da ligação de muitos médicos aos doentes e à equipa do hospital onde prestam serviço.
Tudo isto redunda na falta de sustentabilidade científica e clínica dos hospitais. Para uma mudança administrativa não havia necessidade de nada disto. Não quero crer que fosse isto que o ministro Correia de Campos idealizou. Acho mais que se tratou de um efeito colateral inesperado para ele.
Estamos certos que o bom senso acabará por vir ao de cima. Só não queríamos que demorasse tempo demais, com os estragos na medicina e na saúde que já se começam a notar. Quanto mais depressa houver coragem para as correcções necessárias, melhor. Por isso, e porque mantemos a esperança, vamos chamando a atenção de quem decide.
C. Costa Almeida in Semana Médica

A Saúde, os Hospitais e a nova Legislatura - 1

O que espera a Saúde Hospitalar da Legislatura que aí vem? Alguém sabe?
Os programas apresentados pelos diversos partidos candidatos às eleições deixavam antever o que a Saúde seria para cada um deles? Temo que não. E temo mais ainda: não parece que nenhum deles tenha neste momento uma ideia muito precisa do que fazer com a Saúde. Partido do governo incluído. Um agora ex-Secretário de Estado da Saúde dizia publicamente não saber qual a evolução que o SNS viria a ter.
E, no entanto, todos dizem defender o Serviço Nacional de Saúde – o “seu” Serviço Nacional de Saúde. E multiplicam-se as comemorações e cerimónias alusivas aos 30 anos de SNS, numa manifestação que tanto pode ser entendida de vitalidade do mesmo como de suspeita, ou receio, de estar próximo o seu fim… Senão vejamos: não se festejaram os 10, os 20, nem sequer os 25 anos (bodas de prata), porquê agora?...
Mas esperemos que ele não esteja para desaparecer, quando nos Estados Unidos da América se luta desesperadamente para haver um arremedo de um. E quero crer que quem dirige o nosso Ministério também assim espera. A dificuldade reside em que tudo o que se faça agora na área da Saúde tem por trás esta inovação notável, que foi a maior e mais bem conseguida realização pública do Portugal democrático pós-25 de Abril, no seu conjunto com as Carreiras Médicas e os Internatos Médicos. Que a ser modificado só faria sentido se fosse para melhor. E já começou a ser modificado.
Desta nova Legislatura, com um equilíbrio de forças diferente, aguarda-se que consiga corrigir muito do que foi mal feito na Saúde e segue um caminho inapropriado. E, para começar, espera-se que os governantes oiçam quem trabalha e sabe realmente dos assuntos em causa, já que os resultados terão agora de ser a par e passo justificados, perante uma oposição com peso determinante na governação.
O círculo decisório da Saúde no nosso país está fechado: Ministério e Sindicatos. E a Ordem de vez em quando. De fora da discussão fica a restante sociedade, numa visão autocrática derivada directamente do entendimento abusivo que se fazia da maioria absoluta que existia. E que é o de assumir-se que os escolhidos em algum momento como representantes dum grupo passam a ter o direito de saber tudo e falar sempre por todos, em todos os momentos, entendendo-se escolhidos como detentores absolutos da verdade e do conhecimento. Como patrões ou donos, não como representantes. Será que a nova Legislatura, despida da maioria absoluta entendida daquela maneira, irá ter a virtude de abrir o círculo a todos os outros, aos menos iguais?
A empresarialização hospitalar levada a cabo teve consequências negativas de que não havia necessidade, e que urge corrigir, até para a tornar sustentável no tempo.
Para começar, as mudanças implementadas, do foro administrativo, foram alegadamente no sentido de tornar a gestão mais ágil, rápida e eficiente. Mas redundaram fundamentalmente na perda de controlo por parte do Estado do modo como a gestão de cada uma das suas unidades hospitalares é feita. Essa empresarialização, com uma autonomia quase absoluta de cada administração, levou a uma desierarquização nos hospitais estatais, com incontornável reflexo na actividade clínica e científica dos seus médicos, repercutindo-se negativamente na sua formação contínua e de especialização, por um lado, e, necessariamente e em consequência, na qualidade da medicina praticada, por outro.
Entendeu-se fazer enfraquecer as vozes médicas eventualmente discordantes do controlo oferecido aos administrativos dentro dos hospitais pela desierarquização dos Serviços, entregando a sua direcção a colegas menos graduados e com menor estatuto profissional, e mesmo pela sua destruição. Levando por essa via, concertadamente, ao afastamento dos mais diferenciados, para a reforma antecipada, para a actividade privada, para o desinteresse. Assim se tirou peso realmente à gestão clínica, pondo de parte sistematicamente os mais experientes e com provas dadas, para que a gestão administrativa fosse dominante. Curiosamente, quando os problemas que levaram à mudança eram, precisamente, do foro administrativo. Quer dizer, tornaram-se os problemas na sua própria solução. Com criação de mais problemas, como já era de esperar.
Retalharam-se os hospitais em múltiplas unidades entregues aos muitos administradores entretanto contratados, adjuvados por alguns médicos escolhidos pelas administrações, por critérios que são delas. Quando numa empresa, cujo fim único é lidar com doentes, o pessoal mais básico é também o mais evoluído tecnicamente, e o único que entende no seu conjunto e no seu pormenor o negócio de que se trata, é a ele que se deve entregar a sua gestão. Quer dizer, o caminho tem de ser exactamente o oposto do que foi tomado. A gestão hospitalar tem de ser basicamente clínica, centrada nos médicos, coadjuvados por pessoal administrativo com conhecimentos de contabilidade e gestão.
Obviamente é desejável que a qualidade da saúde em Portugal possa ombrear com a dos seus parceiros europeus – já foi uma das melhores, como se sabe, e nos últimos anos veio por aí abaixo – mas há um senão: temos pouco dinheiro. Duplo problema, portanto, para resolver: boa qualidade, pouco dinheiro. Que não se resolve seguramente pelo “contabilicismo”, deformação profissional dos contabilistas: poupar nas contas, para que elas dêem certas ao fim de cada mês. A gestão tem de ser muito mais do que isso, sobretudo quando o resultado é a saúde de todos nós. A boa medicina é que fica mais barata ao país, e essa, sim, é a resposta para aqueles problemas. E só os médicos a podem obter.
A gestão duma empresa hospitalar tem de estar centrada nos doentes que a procuram, e que são estimulados a procurá-la, através de quem lida directamente com eles, e os pode atrair ao hospital, e que, na verdade, justifica a existência da própria instituição – os médicos. Os processos administrativos, não despiciendos embora, são secundários, têm de ser elásticos e maleáveis, adaptarem-se ao que for preciso. Por não o serem é que surgiu esta mudança que acabou por pôr tudo o resto em causa.
E não havia necessidade. Aconteceu precisamente porque quem a gizou não é médico e não se aconselhou bem. Para tentar modificar a pequena parte de que tinha conhecimento, desorganizou tudo o resto. E “tudo o resto” é, só, o fulcro da questão.
Houve ministros não médicos que souberam entender os problemas da Saúde. Com certeza, ouviram os médicos, e restante pessoal da Saúde (o pessoal operacional, os que lidam com os doentes), e entenderam o que lhes foi dito. Mas duma ministra médica espera-se especialmente que estas críticas não caiam em cesto roto, tanto mais que são todas construtivas, porque podem levar a alterar caminhos que comprometem, do nosso ponto de vista, a sustentabilidade técnica, clínica, médica, do SNS e mais, da própria medicina praticada em Portugal. É isso que temos vindo a procurar demonstrar, erguendo a nossa voz, e da nossa Associação. E não desfalecemos, apesar de aparentemente ignorados pelo círculo da Saúde que se criou. Não nos poderão acusar de nada ter dito ou feito. Não teremos essa responsabilidade. Os responsáveis serão só os decisores e seus conselheiros. Apesar de que as responsabilidades no nosso país – políticas, sociais, morais – se diluem muito… Mesmo com as legais vamos vendo o que se passa…
Houve uma comissão ministerial que chegou à conclusão que não havia falta de médicos, até os havia possivelmente a mais. Isso teve consequências. Houve quem levantasse dúvidas, nós fomos desses. Mais uma vez não ouvidos. Limitaram-se severamente as entradas nas Faculdades de Medicina. Agora criam-se cursos de medicina rápidos, e têm de se importar médicos ao quilo – literalmente, por exemplo com a vinda de centenas de médicos cubanos negociada por grosso pelo nosso governo com o governo cubano. E a quem se pede responsabilidade?
No próximo artigo continuaremos, tocando noutros pontos muito sérios para o futuro da saúde do país em que vivemos, trabalhamos e adoecemos, e a ser encarados por esta nova Legislatura.
C. Costa Almeida, in Semana Médica

10.11.09

O ESTADO DA SAÚDE EM PORTUGAL EM 2009

A Saúde em Portugal sofreu uma mudança nos últimos anos, que a atingiu quando era uma das mais conseguidas no mundo, a um custo muito inferior à dos outros países da Europa, para não falar já dos Estados Unidos da América. A avaliação dessa mudança não poderá deixar de ser feita, não em termos teóricos ou meramente conceptuais, mas sim de resultados conseguidos, ou provocados, no imediato e a médio e longo prazo.
A nível hospitalar a mudança foi basicamente administrativa, invocando-se para ela uma necessidade de reduzir a todo o custo os gastos do Estado com a Saúde. Criaram-se os hospitais-empresa (EPE), o que, na prática, se traduziu por substituir a gestão clínica, feita por quem trata os doentes, por uma gestão puramente administrativa. Na sequência disso, ao mesmo tempo que se reduzia o pessoal clínico, em nome da contenção económica, aumentava-se exponencialmente o número de administradores, com o encargo aparente de levarem quem trata os doentes a fazê-lo do modo mais barato possível. Curiosamente, em França, num esforço também de reduzir custos (gastam muitíssimo mais que nós, mesmo em proporção), fizeram precisamente o contrário: começaram por dispensar drasticamente administradores e administrativos, deixando ficar quem cuida dos pacientes.
A medicina é uma matéria cuja qualidade se exige sempre a mais alta, e é complexa, específica, difícil, com nuances as mais variadas que só quem a ela se dedica há uma série de anos, e a vive, ou viveu, profundamente, pode tentar abarcar com algum grau de eficiência e eficácia. Praticar boa medicina é a maneira mais barata de praticar medicina. E isso é com os médicos.
Quer dizer, uma instituição que existe para tratar doentes deve ser gerida por quem sabe fazer isso. Pôr a gerir uma actividade específica quem a desconhece, é um caminho para o descalabro. Por isso, a gestão clínica deverá ser a base da gestão dum hospital, apoiada pela administrativa - e não ao contrário. No hospital, os trabalhadores mais diferenciados são os que trabalham na base da pirâmide de produção, em contacto directo com os utentes, fornecendo o que estes precisam. É desses que deve surgir quem vai ocupar o vértice, com a noção intrínseca de que não se deve transformar um acto médico num mero acto administrativo, sob pena de inapelavelmente o desumanizar.
Os conselhos de administração contratam, “descontratam”, nomeiam para as direcções intermédias quem bem lhes aprouver, independentemente do seu grau na carreira. Isso gerou uma desierarquização profissional, que redundou numa desorganização que vai progressivamente levando a uma degradação da qualidade dos serviços prestados, com maus resultados (alguns começam a ser conhecidos outros ainda não), dolorosos para os doentes, para os profissionais e até para as instituições.
Uma equipa médica hospitalar tem de ter um chefe esclarecido, com provas dadas, aceite como tal pelos seus membros. A carreira médica implica uma ascensão nesse sentido, e não meras avaliações administrativas, por bons serviços prestados à administração do hospital ou a quem esta encarregou de fazer a avaliação. Uma equipa sem chefia e orientação assentes numa liderança técnico-profissional reconhecida leva invariavelmente a má medicina, quer dizer, a medicina cara. Para além de inviabilizar uma formação médica pós-graduada adequada e entusiasta, que é o garante da qualidade da medicina praticada.
No agravamento dessa situação veio inserir-se a lógica da contratação preferencial de serviços externos, com o fim único de reduzir a verba para ordenados nas empresas-hospital. Ela levou a que os hospitais – sobretudo nas Urgências - se transformassem numa manta de retalhos, de mercenários trabalhando para várias empresas de fornecimento de médicos à hora, em exclusividade ou para além do seu serviço específico no hospital a que ainda pertencem. Esta mesma lógica, extravasando já, naturalmente, para os próprios profissionais (diz o nosso povo que cada um dança segundo a música que lhe tocam…), fez com que internos de especialidade, e até especialistas, prefiram fazer o trabalho médico pago por essas empresas a realizar o seu trabalho hospitalar próprio – é que auferem, nessas condições, muitíssimo mais.
A desierarquização e a mercenarização vieram ameaçar de morte as equipas médicas, que são uma mais-valia de qualquer hospital e que levaram muitos anos a formar-se. Muitos profissionais de grande gabarito preferiram, por tudo isto, sair precocemente dos hospitais, deixando-os desguarnecidos, quer na assistência quer no ensino, o que terá inegáveis repercussões muito negativas na qualidade da nossa medicina, num futuro próximo, tanto maiores e mais difíceis de corrigir quanto mais tempo se demorar a fazer as correcções necessárias no sistema criado.
A tónica quase exclusiva posta na administração dos hospitais por quem não sabe de medicina levou a uma situação muito problemática, ainda a agravar-se mas que já começa a dar sinais clínicos alarmantes. Mesmo que se reconstruam as carreiras médicas, será muito difícil, com esta lei de gestão, integrá-las nos hospitais. Tais carreiras – na verdade limitadas, no projecto existente, a dois graus, já que os dois últimos, de três, parecem ser uma espécie de pool que dá acesso ao mesmo - serão algo externo, não interferindo nas contratações hospitalares nem nas nomeações para os lugares de chefia intermédia, deixadas à avaliação administrativa de desempenho encomendada e corrigida pelos conselhos de administração. Quer dizer, os lugares de maior responsabilidade e autoridade técnicas continuarão, em cada hospital, entregues à discricionariedade de quem lá foi plantado também discricionariamente para dirigi-lo. Uma avaliação por concurso interno, contraponto em cada local às opções baseadas na política ou no gosto, desaparece em definitivo – é o “achismo” triunfante.
E no aspecto financeiro, as mudanças geraram menos gastos? Pessimismo face ao que tem vindo a público, a muito do que atrás se diz, e a actos de gestão como este: conceder licenças sem vencimento a alguns médicos do quadro, para depois os contratar por mais dinheiro e menos horas de trabalho, com as mesmas funções. Redução dos custos da Saúde nacional?!... Como?!...
Mas a preocupação economicista reinante leva alguns hospitais a filtrarem doentes e doenças, fechando consultas, reduzindo internamentos e urgências, empurrando para outros os encargos com doentes mais graves ou menos “rentáveis”. Há administrações de hospitais que se esforçam por descartar actividades clínicas que os doentes neles continuam a procurar, mesmo que isso implique não tratar doentes e desperdiçar a capacidade instalada ao longo de anos de esforço dos próprios médicos do hospital.
Isto tudo pode não acontecer ao mesmo tempo em todos os hospitais EPE, mas é indubitavelmente uma realidade. A realidade que resultou da nova gestão hospitalar e que urge encarar de frente e de olhos bem abertos, embora construtivamente. Uma gestão que secundarizou a gestão clínica, que reduziu os doentes a números de doentes com uma etiqueta com o preço, e que implantou legalmente o factor político ou de amizade na progressão dos profissionais no hospital, ignorando o seu mérito pessoal, científico e clínico e introduzindo uma dúvida razoável sobre a qualidade dos serviços prestados. Que nos punha em 5º lugar na Europa em 2000, e nos deixou em 26º num estudo publicado em 2008.
Carlos Costa Almeida, in Semana Médica Out 2009

28.9.09

Debate Saúde e Hospitais


No passado dia 23 de Setembro realizou-se na sede da Ordem dos Médicos em Lisboa uma sessão de debate sobre o tema Saúde e Hospitais, na sequência da apresentação na capital do livro Farpas pela nossa Saúde, do Prof. Doutor Carlos Costa Almeida, editado pela Minerva Coimbra em Julho passado.
A sessão, presidida e moderada pelo Bastonário da Ordem dos Médicos Dr. Pedro Nunes, iniciou-se com a apresentação do livro pelo Prof. Doutor Carlos Pereira Alves, antigo Presidente do Conselho de Administração do Hospital dos Capuchos. Começando por apresentar, jocosamente, uma declaração de conflito de interesses, na medida em que é amigo pessoal do autor (Chefe de Serviço de Cirurgia do Centro Hospitalar de Coimbra e Presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar), afirmou-se de acordo com quase tudo o que lá está expresso, apresentado e escrito duma maneira muito clara e perceptível, mostrando que o seu autor sabe realmente do que está a falar, ou não fosse ele um médico hospitalar de longa data e provas dadas. Provas dadas numa carreira profissional muito prestigiada, centro da formação médica pós-graduada e contínua dos médicos portugueses e ao mesmo tempo garantia da qualidade da medicina praticada nos nossos hospitais. E nas instituições privadas de saúde, uma vez que é dos hospitais públicos que têm saído os médicos das clínicas privadas. Compartilha totalmente a ideia do autor de que a medicina é para ser praticada e gerida pelos médicos, embora a preocupação tenha também de ser posta na parte administrativa. Esta não pode é tornar-se no centro do que é feito para tratar doentes, consumindo-lhe uma grande parte dos recursos, que assim são desviados desse objectivo - à semelhança do que se passa já nos Estados Unidos da América, em que 40% dos recursos alocados à Saúde são gastos pelos administradores. Com o fim supremo de impedir que os médicos gastem dinheiro com os doentes, como comentaria depois, ironicamente, o Prof. Carlos Costa Almeida. O Prof. Pereira Alves terminou mostrando-se muito apreensivo com a possibilidade que a tónica administrativa e economicista posta na Saúde possa vir a negar cuidados a doentes por se achar que não são “cost-effective”. Uma coisa dessas contradiz totalmente a humanização que todos dizem pretender, a qual assenta acima de tudo numa ligação pessoal estreita e franca entre médico e doente, confiando este abertamente naquele, não podendo sequer imaginar que ele lhe está a colocar um rótulo com o preço enquanto doente, calculando ao mesmo tempo se esse preço deve ou não ser pago.
A Prof. Doutora Manuela Arcanjo, ex-ministra da Saúde, teceu rasgados elogios ao autor do livro, declarando-se em total sintonia com ele. Achou-o ingénuo apenas quando lá diz que a fórmula EPE estabelecida não deu os ganhos financeiros esperados. Ela não os esperava, realmente, e sempre entendeu que essa chamada empresarialização dos hospitais públicos teve antes dois objectivos diferentes: a desorçamentação de grande parte dos custos, e a abertura dessa área aos privados. O que se tem visto acontecer, aliás, devendo a despesa em excesso com os hospitais EPE ser vista como uma aplicação de capital para a liberalização mais extensa do sector, tal como foi pretendido por quem gizou essa empresarialização. Algo que sempre a chocou enquanto responsável pela Saúde foi o subfinanciamento crónico da área, observando amiúde como facilmente grandes verbas eram desviadas, por razões políticas, algumas ocasionais, para outros sectores, em detrimento da Saúde. E sempre a chocou também a influência da política no que devia ser só técnico – chegando-se ao ponto de agora se esperar pelo resultado das eleições legislativas para se substituir um Presidente do Conselho de Administração dum hospital reformado já há meses, acrescentaria mais tarde Carlos Costa Almeida. A Prof. Manuela Arcanjo terminou dando mais uma vez os parabéns ao autor do livro “Farpas pela nossa Saúde”, pedindo-lhe que permanecesse alerta e não desistisse de escrever sobre o tema, contribuindo para que se conhecesse o que se passa e ajudando eventualmente à tomada de decisões pelos decisores.
O Prof. Doutor Pedro Pita Barros – professor de Economia da UNL e também autor de um livro editado pela Minerva Coimbra, sobre A Economia da Saúde – declarou-se igualmente encantado com a leitura deste livro, dele ressaltando, segundo disse, o orgulho que o seu autor tem em ser médico. E entende agora que a medicina é uma actividade demasiado complexa e específica para ser gerida por não médicos, devendo estes, claro, preocupar-se também com a parte económica e financeira dessa sua actividade. Critica sobretudo o que chamou de contabilicismo, a preocupação de poupar apenas nas contas, ao invés de se procurar, sim, aproveitar melhor todo o dinheiro investido, forma correcta de ser económico em Saúde. Carlos Costa Almeida comentaria mais tarde, a este respeito, que, na verdade, a medicina que fica mais barata é a boa medicina, mesmo que ela implique alguns gastos mais elevados. No parecer do Prof. Pita Barros, o que interessa é a relação custo-efeito, e o segundo às vezes é difícil de contabilizar quantitativamente, sobretudo por quem é leigo na profissão e está fora da relação médico-doente. Já algumas medidas puramente administrativas tomadas, como o “dedómetro”, são susceptíveis de ser avaliadas quantitativamente, medindo-se os gastos e os ganhos que trouxeram, e isso, por exemplo, deveria ser feito. Como seria muito importante avaliar o desempenho das administrações hospitalares, o que pode ser feito quantitativamente, pois é mensurável, ao contrário de muitos aspectos do tratamento dos doentes. Terminou inquirindo os médicos da possibilidade de a formação médica e as carreiras médicas se estenderem a instituições privadas, tal como às públicas.
O Dr. Pedro Nunes, moderando o debate e afirmando a sua concordância na generalidade com o que é escrito pelo autor de “Farpas pela nossa Saúde”, afirmou que as carreiras médicas estão em debate, havendo já um projecto entregue no Ministério, centradas na Ordem dos Médicos e, eventualmente, estendidas a Hospitais privados, se eles detiverem todas as condições exigidas – e não propriamente a policlínicas. O Prof. Costa Almeida lembrou que as Carreiras Médicas só surtirão efeito e vingarão se forem incorporadas no funcionamento dos hospitais, como o eram até à lei EPE. A sua lógica, para além da formação, é assegurar aos governantes e aos doentes que quem dirige os serviços de saúde e os hospitais são os mais capazes, os mais sabedores, os mais diferenciados, aqueles que deram mais e melhores provas, e não quem foi depois escolhido dentro de cada instituição ignorando-se tudo isso. Através de uma chamada avaliação de desempenho que nada faz supor que possa ser diferente para os médicos do que é agora para as outras carreiras: uma forma cara, consumidora de tempo e recursos humanos, geradora de zangas e desinteresse dos profissionais, de permitir que as administrações postas nos hospitais possam escolher em absoluto quem querem para dirigentes técnicos intermédios das suas instituições, isto é, para responsáveis directos pela formação e pelo nível da medicina lá praticada.
Depois das intervenções de vários colegas presentes – Drs Dias Pereira e Armando Rocha, de Coimbra, e Canas Mendes e Isabel Caixeiro, de Lisboa – na linha do que atrás é referido, o Bastonário encerrou finalmente o debate.

20.7.09

Apresentação do livro "Farpas pela nossa Saúde"


Da autoria de Carlos Costa Almeida, prefaciado pelos Drs. Paulo Mendo e Armando Gonsalves, editado pela MinervaCoimbra, Farpas pela nossa Saúde foi apresentado na Ordem dos Médicos em Coimbra pelo Dr. António Arnaut e pelo Prof. Manuel Antunes.

Nessa ocasião (fotos), a representante da editora, Isabel Garcia, congratulou-se com o facto de, apesar de crítico, este livro não ser, no fundo, contra ninguém e sim «acerca da saúde, dos hospitais, crítico pela nossa saúde». «É um privilégio ter este livro na nossa editora, de um amigo de longa data, de um profissional de excelência e de um pensador atento aos problemas da nossa sociedade», declarou.
A António Arnaut, jurista responsável pela criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), coube apresentar a obra. «São 48 crónicas, análises ou críticas, numa visão experimentada de quem conhece o meio da Saúde e a carreira hospitalar», referiu o advogado, lembrando que os acontecimentos decorrem entre os anos 2000 e 2009 e que, de todos os temas, o das carreiras médicas ressalta como fundamental. Com efeito, «sem elas não temos SNS», afirmou, concordando com o autor.
O cirurgião Manuel Antunes quis, a propósito do livro, referir-se a uma temática de grande actualidade: as carreiras médicas, cujo novo diploma apenas aguarda assinatura do Presidente da Republica, revelou. No entender de Manuel Antunes, «o documento que está para sair não é bom nem mau, já que não acrescenta nada».
O autor, Carlos Costa Almeida, falando no fim, explicou que os seus comentários no livro são datados e que, muito provavelmente, algumas coisas não se passam já hoje exactamente assim. Têm uma lógica e vão surgindo à mesma medida das alterações e das maiores turbulências na Saúde, «não é contra o Governo, é sobre o que se passa nos nossos hospitais». As «Farpas» pretendem «mostrar o que está mal e o que é possível e necessário mudar, a temática interessa a profissionais de saúde e a todos os candidatos a doentes, que deviam preocupar-se com a Saúde que o País nos oferece e que é paga com os nossos impostos», afirmou. in Tempo Medicina online.


5.7.09

Livro FARPAS PELA NOSSA SAÚDE

O livro "FARPAS PELA NOSSA SAÚDE"
de Carlos Costa Almeida, prefaciado pelo Dr. Paulo Mendo (ex-Ministro da Saúde) e pelo Dr. Armando Gonsalves (ex-Presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar), será apresentado no dia 14 de Julho próximo, pelas 21,h15 horas, na Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos, Sala Miguel Torga. A apresentação será feita pelo Dr. António Arnaut e pelo Prof. Doutor Manuel Antunes.
(Texto da contracapa) …o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras Médicas e os Internatos constituem sem sombra de dúvida a maior e melhor realização dos governos pós-25 de Abril, e a mais duradoura… uma realização social que fez um país pobre entre ricos ter uma saúde melhor que a maioria, com um gasto muito inferior... Com um outro aspecto notável… criação duma estrutura que acabou por levar profissionais de muita qualidade a deslocar-se para hospitais mais pequenos, não por quaisquer incentivos financeiros mas pelo que faz correr os melhores…Eis senão quando se criou a ideia de que era preciso mudar... A despesa com a saúde disparou, os ganhos anunciados não surgiram… As alterações de gestão introduzidas levaram… à perturbação de toda a estrutura clínica… esboroamento das equipas, perda de sentido das carreiras médicas, esvaindo-se o estímulo para um aperfeiçoamento constante… criando-se… a monoideia do lucro, do incentivo monetário… Cada vez se torna mais evidente que a maneira mais eficaz de rentabilizar os hospitais é basear a sua administração na gestão clínica… Carlos Costa Almeida, in Introdução.
O autor, cirurgião profundamente envolvido na actividade assistencial, na formação, no ensino, na gestão clínica, juntou muitos dos artigos que publicou sobre saúde e carreiras médicas (no Tempo Medicina, Revistas da Ordem dos Médicos, Diário de Notícias, Revista do Centro Hospitalar de Coimbra, blog da Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar - medicoshospitalares.blogspot.com), acompanhando a evolução nessas áreas no nosso país, e reuniu-os neste livro. Que resultou assim numa visão global do que se tem passado ultimamente nos hospitais portugueses – visão necessariamente pessoal, mas totalmente apoiada em factos reais e incontroversos – e das suas consequências, para os médicos, para os doentes, para a Saúde. É um ponto da situação, num momento de mudança e de turbulência na área da saúde, são chamadas de atenção às vezes aguçadas, mas que devem ser encaradas sempre como positivas, já que pretendem acima de tudo que o caminho seguido na Saúde e nos Hospitais seja o mais correcto.

Uma bota difícil de descalçar

E pronto, a situação foi-se deixando estar, a gestão clínica dos hospitais foi completamente engolida pela administrativa, a tónica posta nesta, com afastamento para trás de tudo o que lhe possa constituir o mais pequeno entrave. Pouco faltará, neste trajecto, para o que quer que seja ou se chame a estrutura com funções clínicas (serviço, departamento, unidade, a.i.g., u.a.g., o que for) passe a ser dirigido directamente por um administrador. Por enquanto vai havendo uns médicos de permeio. Nesta conformidade, e nestes hospitais, é difícil entender a permanência duma estrutura como as carreiras médicas. E não se esboça qualquer intenção do governo de alterar seja o que for nessa matéria, eventualmente animado por alguns que parecem estar de acordo. Há sempre alguém disposto a aproveitar a oportunidade de apanhar um comboio vá ele para onde for…
A verdade também é que continua a haver quem acredite que as carreiras se podem manter sem se operar uma mudança significativa nalguns aspectos estruturantes da actual lei de gestão hospitalar. É bom que essa esperança exista, ajuda a não as deixar cair no esquecimento, se bem que, com esta gestão EPE, eu tema que as carreiras possam ter a mesma eficácia e futuro que um cadáver mantido em ventilação para se evitar que o coração pare de vez. Oxalá estivesse enganado.
Os hospitais-empresas foram entregues a administrações nomeadas que se comportam como verdadeiros donos, com a enorme vantagem de ao fim de algum tempo se poderem ir embora sem qualquer preocupação com o que ficar para trás. Gerem o hospital conforme entendem, contratam e descontratam, pagam o que entendem a quem querem, tratam os doentes segundo uma lógica administrativa, isto é, de lucro e de números. E cada instituição dessas é um caso, com as suas particularidades próprias, na dependência directa de quem lá foi posto a dirigir. Os aspectos médicos e de formação foram completamente subalternizados, o que veio criar problemas de difícil resolução numa empresa que acima de tudo é um hospital. Problemas que já levaram o Presidente francês Sarkozy muito recentemente a afirmar, sic: “Je n’ai jamais dit que les hôpitaux devraient devenir des entreprises”.
Mas por cá insiste-se. Haja os prejuízos que houver, não se quer voltar atrás. E, nestas condições, anunciam-se acordos entre os sindicatos médicos e o governo em matéria de carreiras. É um passo importante, com certeza, mas note-se que não é difícil manter os graus que já havia, ainda para mais se os respectivos concursos, abertos a todos os médicos, dentro e fora do Estado, forem da responsabilidade e com a despesa da Ordem dos Médicos. O que é obra é fazer com que esses concursos e graus sirvam realmente para alguma coisa, face à lei EPE: isso é que é uma bota muito difícil de descalçar.
Não vou repetir o que já escrevi tantas vezes, vou apenas chamar a atenção para alguns pontos particulares, e tão somente sobre carreiras médicas e formação.
Os hospitais EPE não têm um quadro de pessoal médico. Cada vez mais contratam quem querem ocasionalmente, para trabalhos específicos, recorrendo de modo crescente a médicos à tarefa e à hora por intermédio de empresas de prestação de serviços. Quem os obrigará a contratar quotas de médicos dos vários graus da carreira? Sobretudo se alguns ganharem mais do que outros e puderem ter o privilégio de ficar dispensados de alguns trabalhos (benefícios da idade, consagrados legalmente)?
Mas têm contratado médicos reformados ou com licença sem vencimento, por valores proibitivos em matéria de função pública e com horários especiais acordados, até para desempenharem funções de direcção e de gestão, funções estas para as quais a hierarquização técnica – leia-se carreiras – não tem significado: considera-se que qualquer um as pode desempenhar.
Numa carreira espera-se que aos que chegam aos lugares do topo sejam cometidas funções correspondentes, de direcção, de orientação, de comando, de representação, de gestão. Não se pode sequer imaginar que alguém no topo seja comandado, dirigido, orientado, representado, por outro que não conseguiu lá chegar.
O lugar de director de serviço (ou de departamento, ou de u.a.g, ou u.i.g., ou a.i.g., ou qualquer coisa dessas) é entregue a quem a administração EPE quiser, por razões que só a ela dizem respeito. Não tem, portanto, implicações técnicas. O que não impede que haja quem obrigue a que os júris para provimento no lugar de chefe de serviço sejam presididos por um director desses (se for chefe de serviço…)! É a mesma incongruência de querer incluir actualmente o desempenho do cargo de director de serviço ou de departamento na avaliação do currículo para chefe de serviço!
Está-se a ver claramente a incompatibilidade entre este estado de coisas e as carreiras médicas, mesmo que se consiga a existência de concursos e graus. Se não tiverem verdadeira tradução na prática hospitalar, no trabalho em equipa que é a pedra de toque da medicina hospitalar, para que servem? Para quê perder tempo e dinheiro, para quê admitir concursos e recursos? Mesmo que sejam por conta da Ordem, é dinheiro do país, vão seguramente encarecer a saúde – e sem qualquer vantagem palpável.
Admitamos que se logra estabelecer um pagamento base diferenciado para cada grau. Como irá uma empresa aceitar pagar mais a um chefe de serviço que não tem qualquer função de chefia, e faz um trabalho básico, do que a um assistente que é director, da sua particular simpatia e detentor de toda a responsabilidade? E será que este último, sob o peso da responsabilidade de zelar para que se faça exactamente o que a administração de quem é amigo – por isso foi nomeado - quer, se contentará em receber menos que o que foi mais longe que ele na carreira mas está sob as suas ordens? Difícil de descalçar, não é?...
Claro que sempre existirá a classificação SIADAP, que permitirá ordenar os ordenados, dos amigos até aos outros, em decrescendo. E a pergunta assoma outra vez ao espírito: para quê as carreiras? Pelo prazer de fazer exame?... E gastar dinheiro em currículos, e em trabalhos?... E deixar de ganhar remunerações exorbitantes no trabalho à tarefa?...
A progressão na carreira ia paralela ao trabalho científico e técnico, ao prestígio conseguido, ao peso profissional, até à direcção dum serviço, à responsabilidade na formação do “seu” pessoal. Tudo isto acompanhava a capacidade e possibilidade de tomar decisões, de orientar o desenvolvimento tecnológico da instituição. Os actuais directores não são necessariamente isto nem têm condições para fazer nada disto (só por acaso, já que a sua nomeação é declaradamente por outros motivos, sejam eles quais forem, do “amiguismo” ao alegado jeito administrativo).
As indústrias farmacêutica e de material cirúrgico têm sido indubitavelmente o suporte do trabalho científico e de investigação nos nossos hospitais. Com intuitos, compreensivelmente, de marketing, mas dos quais resultava uma mais-valia científica notável, ao ser utilizado o seu apoio através dos directores e responsáveis que personificavam o interesse, a prática e o êxito nessa área. Com certeza o marketing levá-las-á a continuar a apoiar sobretudo os que têm possibilidade de decidir, só que o interesse científico desses e a sua capacidade nesse campo estarão agora maioritariamente ausentes, já que não foram escolhidos por isso. Quer dizer, a tal mais-valia científica do marketing empresarial está a um passo de se desvanecer, por mau aproveitamento.
E tanta coisa mais se poderá antever, num acordo de carreiras face a esta lei de gestão hospitalar, mas vamos ficar por aqui. Nunca fomos chamados a dar a nossa opinião, mas sempre a procurámos deixar expressa, para não sermos um dia acusados de desinteresse, ingenuidade ou má-fé. O tempo será o grande julgador, e cremos que ele no fim nos dará razão.

C. Costa Almeida, in Revista da OM

Uma bota difícil de descalçar

E pronto, a situação foi-se deixando estar, a gestão clínica dos hospitais foi completamente engolida pela administrativa, a tónica posta nesta, com afastamento para trás de tudo o que lhe possa constituir o mais pequeno entrave. Pouco faltará, neste trajecto, para o que quer que seja ou se chame a estrutura com funções clínicas (serviço, departamento, unidade, a.i.g., u.a.g., o que for) passe a ser dirigido directamente por um administrador. Por enquanto vai havendo uns médicos de permeio. Nesta conformidade, e nestes hospitais, é difícil entender a permanência duma estrutura como as carreiras médicas. E não se esboça qualquer intenção do governo de alterar seja o que for nessa matéria, eventualmente animado por alguns que parecem estar de acordo. Há sempre alguém disposto a aproveitar a oportunidade de apanhar um comboio vá ele para onde for…
A verdade também é que continua a haver quem acredite que as carreiras se podem manter sem se operar uma mudança significativa nalguns aspectos estruturantes da actual lei de gestão hospitalar. É bom que essa esperança exista, ajuda a não as deixar cair no esquecimento, se bem que, com esta gestão EPE, eu tema que as carreiras possam ter a mesma eficácia e futuro que um cadáver mantido em ventilação para se evitar que o coração pare de vez. Oxalá estivesse enganado.
Os hospitais-empresas foram entregues a administrações nomeadas que se comportam como verdadeiros donos, com a enorme vantagem de ao fim de algum tempo se poderem ir embora sem qualquer preocupação com o que ficar para trás. Gerem o hospital conforme entendem, contratam e descontratam, pagam o que entendem a quem querem, tratam os doentes segundo uma lógica administrativa, isto é, de lucro e de números. E cada instituição dessas é um caso, com as suas particularidades próprias, na dependência directa de quem lá foi posto a dirigir. Os aspectos médicos e de formação foram completamente subalternizados, o que veio criar problemas de difícil resolução numa empresa que acima de tudo é um hospital. Problemas que já levaram o Presidente francês Sarkozy muito recentemente a afirmar, sic: “Je n’ai jamais dit que les hôpitaux devraient devenir des entreprises”.
Mas por cá insiste-se. Haja os prejuízos que houver, não se quer voltar atrás. E, nestas condições, anunciam-se acordos entre os sindicatos médicos e o governo em matéria de carreiras. É um passo importante, com certeza, mas note-se que não é difícil manter os graus que já havia, ainda para mais se os respectivos concursos, abertos a todos os médicos, dentro e fora do Estado, forem da responsabilidade e com a despesa da Ordem dos Médicos. O que é obra é fazer com que esses concursos e graus sirvam realmente para alguma coisa, face à lei EPE: isso é que é uma bota muito difícil de descalçar.
Não vou repetir o que já escrevi tantas vezes, vou apenas chamar a atenção para alguns pontos particulares, e tão somente sobre carreiras médicas e formação.
Os hospitais EPE não têm um quadro de pessoal médico. Cada vez mais contratam quem querem ocasionalmente, para trabalhos específicos, recorrendo de modo crescente a médicos à tarefa e à hora por intermédio de empresas de prestação de serviços. Quem os obrigará a contratar quotas de médicos dos vários graus da carreira? Sobretudo se alguns ganharem mais do que outros e puderem ter o privilégio de ficar dispensados de alguns trabalhos (benefícios da idade, consagrados legalmente)?
Mas têm contratado médicos reformados ou com licença sem vencimento, por valores proibitivos em matéria de função pública e com horários especiais acordados, até para desempenharem funções de direcção e de gestão, funções estas para as quais a hierarquização técnica – leia-se carreiras – não tem significado: considera-se que qualquer um as pode desempenhar.
Numa carreira espera-se que aos que chegam aos lugares do topo sejam cometidas funções correspondentes, de direcção, de orientação, de comando, de representação, de gestão. Não se pode sequer imaginar que alguém no topo seja comandado, dirigido, orientado, representado, por outro que não conseguiu lá chegar.
O lugar de director de serviço (ou de departamento, ou de u.a.g, ou u.i.g., ou a.i.g., ou qualquer coisa dessas) é entregue a quem a administração EPE quiser, por razões que só a ela dizem respeito. Não tem, portanto, implicações técnicas. O que não impede que haja quem obrigue a que os júris para provimento no lugar de chefe de serviço sejam presididos por um director desses (se for chefe de serviço…)! É a mesma incongruência de querer incluir actualmente o desempenho do cargo de director de serviço ou de departamento na avaliação do currículo para chefe de serviço!
Está-se a ver claramente a incompatibilidade entre este estado de coisas e as carreiras médicas, mesmo que se consiga a existência de concursos e graus. Se não tiverem verdadeira tradução na prática hospitalar, no trabalho em equipa que é a pedra de toque da medicina hospitalar, para que servem? Para quê perder tempo e dinheiro, para quê admitir concursos e recursos? Mesmo que sejam por conta da Ordem, é dinheiro do país, vão seguramente encarecer a saúde – e sem qualquer vantagem palpável.
Admitamos que se logra estabelecer um pagamento base diferenciado para cada grau. Como irá uma empresa aceitar pagar mais a um chefe de serviço que não tem qualquer função de chefia, e faz um trabalho básico, do que a um assistente que é director, da sua particular simpatia e detentor de toda a responsabilidade? E será que este último, sob o peso da responsabilidade de zelar para que se faça exactamente o que a administração de quem é amigo – por isso foi nomeado - quer, se contentará em receber menos que o que foi mais longe que ele na carreira mas está sob as suas ordens? Difícil de descalçar, não é?...
Claro que sempre existirá a classificação SIADAP, que permitirá ordenar os ordenados, dos amigos até aos outros, em decrescendo. E a pergunta assoma outra vez ao espírito: para quê as carreiras? Pelo prazer de fazer exame?... E gastar dinheiro em currículos, e em trabalhos?... E deixar de ganhar remunerações exorbitantes no trabalho à tarefa?...
A progressão na carreira ia paralela ao trabalho científico e técnico, ao prestígio conseguido, ao peso profissional, até à direcção dum serviço, à responsabilidade na formação do “seu” pessoal. Tudo isto acompanhava a capacidade e possibilidade de tomar decisões, de orientar o desenvolvimento tecnológico da instituição. Os actuais directores não são necessariamente isto nem têm condições para fazer nada disto (só por acaso, já que a sua nomeação é declaradamente por outros motivos, sejam eles quais forem, do “amiguismo” ao alegado jeito administrativo).
As indústrias farmacêutica e de material cirúrgico têm sido indubitavelmente o suporte do trabalho científico e de investigação nos nossos hospitais. Com intuitos, compreensivelmente, de marketing, mas dos quais resultava uma mais-valia científica notável, ao ser utilizado o seu apoio através dos directores e responsáveis que personificavam o interesse, a prática e o êxito nessa área. Com certeza o marketing levá-las-á a continuar a apoiar sobretudo os que têm possibilidade de decidir, só que o interesse científico desses e a sua capacidade nesse campo estarão agora maioritariamente ausentes, já que não foram escolhidos por isso. Quer dizer, a tal mais-valia científica do marketing empresarial está a um passo de se desvanecer, por mau aproveitamento.
E tanta coisa mais se poderá antever, num acordo de carreiras face a esta lei de gestão hospitalar, mas vamos ficar por aqui. Nunca fomos chamados a dar a nossa opinião, mas sempre a procurámos deixar expressa, para não sermos um dia acusados de desinteresse, ingenuidade ou má-fé. O tempo será o grande julgador, e cremos que ele no fim nos dará razão.
C. Costa Almeida, in Revista da OM

3.5.09

PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADO

A saúde da população portuguesa é uma preocupação que a nossa Constituição consagra como devendo ser do próprio Estado. E assim tem sido. Mas de há uns dois anos para cá essa preocupação parece ter começado a ser pesada demais para quem nos governa, e daí procurarem aligeirá-la. Uma maneira de o fazer seria deixar de fornecer todos os cuidados de saúde necessários; outra, seria começar a cobrar pelo que constitucionalmente deveria ser tendencialmente gratuito. Optou-se, para já, pela segunda hipótese, pretendendo-se, declaradamente, que ela leve também, insensivelmente, à primeira, ao afastar dos hospitais alguns doentes que têm de poupar todos os tostões que ganham, mesmo que isso os prive de assistência médica de que necessitariam. Para além disso, lembrou-se o governo de dividir com entidades privadas os cuidados que tem de prestar, nas tão propaladas parcerias público-privado.
Quando se fala em cuidados de saúde nacionais de cariz universal e responsabilidade estatal, isso inclui necessariamente a preocupação com a sua qualidade, até porque a saúde e a educação são a base de qualquer sociedade evoluída actual, e que queira continuar a conviver com algumas das sociedades mais evoluídas do nosso planeta. E nesse aspecto não basta controlar e avaliar a qualidade, há que contribuir para ela de maneira activa e decisiva, envolvendo-se o Estado na formação de base e contínua dos seus agentes. Antes de mais dos principais de entre eles, daqueles à volta de quem tudo gira e deve girar em termos de saúde: os médicos.
E também assim tem sido, conseguindo-se com a estruturação que existia, das carreiras médicas estatais, a formação contínua e a sua avaliação, ao mesmo tempo e com a mesma despesa, para além da colocação dos mais capazes, com mais e melhores provas dadas, nos lugares de mais responsabilidade e com maior poder de intervenção e decisão. Foi uma hierarquização pela competência, a muito baixo custo, que passou o teste do tempo (trinta anos de óptimos resultados, com o mais baixo preço per capita na União Europeia e um lugar entre os melhores).
Mas por alguma razão, ainda não propriamente muito clara, resolveu-se mudar tudo. A explicação dada foi a de poupar dinheiro. Isso incluía gastar menos, globalmente, ou o governo pagar menos. É nesta última parte que se vieram inserir as parcerias público-privado. A ideia geral é esta: os cuidados de saúde, obrigação do Estado, são prestados com o governo a fornecer directamente uma parte e encarregando uma instituição privada de fornecer os restantes, pagando-lhos ou permitindo-lhe que os cobre dos doentes, directamente ou através de alguma outra entidade para a qual eles contribuam.
O objectivo-base do Estado nesta matéria deve ser assegurar os cuidados de saúde aos seus cidadãos, enquanto que o objectivo-base das instituições privadas que se envolvem na saúde é, e legitimamente, o lucro. É possível concatenar estas duas atitudes? É, mas com muito cuidado. O problema principal surge quando o Estado, dividido em múltiplas empresas hospitalares praticamente entregues a si próprias (ou a quem o governo as entregou), passa a ter também como objectivo o lucro. Ou, dito de outra maneira, passa a condicionar a sua actividade clínica basicamente pelos números da sua contabilidade. Neste contexto, quando numa parceria destas se anuncia que ambos ganham, alguém provavelmente ficará a perder.
Até agora o que se tem visto é a despesa dos hospitais EPE a aumentar catastroficamente. Se o principal motivo para a mudança era poupar dinheiro, falhanço total. E o resto? A qualidade da saúde, o seu desenvolvimento sustentado e estruturado, a eficácia e eficiência dos Serviços, a formação médica, a avaliação desta?... Por aí abaixo. Ao mesmo tempo que os cuidados que os hospitais-empresa prestam por si são mais e mais limitados, os seus quadros médicos são cada vez mais reduzidos. Socorrem-se de maneira crescente de serviços médicos externos, num regime de prestação de serviços que tem tudo da mercenarização, em parcerias com empresas que negoceiam preços e pagam aos seus funcionários conforme lhes apetece. Não há continuidade na acção médica, quando os “fornecedores” fazem saltar os “prestadores” de hospital em hospital, de banco em banco, pagos à hora muito acima do que ganhariam se trabalhassem permanentemente numa instituição hospitalar. E quais os ganhos das duas empresas em parceria? Há médicos à hora que num dia de banco num hospital ganham tanto como ganhariam num mês se pertencessem ao quadro do mesmo hospital. É um negócio, e legítimo. Um mau negócio para quem paga num dia o que levaria um mês a gastar. Independentemente do que conste nas parcelas do Deve e Haver – preocupação dos contabilistas -, o resultado final é que conta, no que toca aos custos da nossa Saúde. E estes é que deveriam ser a preocupação dos gestores pagos pelo Estado.
Em áreas mais vastas e complexas de parcerias público-privado não nos vamos pronunciar de momento, mas todos conhecemos exemplos muito mal sucedidos e outros aparentemente com melhores resultados. Aparentemente, digo, porque há aspectos – de formação, de evolução nos conhecimentos médicos, de transmissão desses conhecimentos – que não são despiciendos mas não estão a ser considerados em momento algum. Se calhar irão ser considerados tarde demais.
Parcerias público-privado em saúde: possíveis, com certeza, eficazes, talvez, se com cuidado e nas condições desejáveis para quem gere os dinheiros públicos e, principalmente, para quem fornece esse dinheiro: nós todos. Parcerias que tenham sempre o objectivo de servir melhor os cidadãos com menor gasto. Mas sem se focalizarem exclusivamente no aspecto financeiro – tendência inevitável se os dois parceiros tiverem como objectivo o lucro. Exemplo disso é a recente legislação sobre o enriquecimento ilícito, que não foi criminalizado mas é taxado com 60% de imposto. Quer dizer, permite-se que se roube, e continue a roubar, e uma parte é para o Estado. Uma autêntica parceria público-privado em que ambos os parceiros lucram. Mas alguém perde. Com certeza não é uma parceria deste género que se deseja para a Saúde.
Carlos Costa Almeida in TM

27.4.09

VAMOS ÀS CARREIRAS - VI

Terminamos hoje esta série de seis artigos sobre as carreiras médicas. Neles procurámos elencar o que elas tinham e conseguiram de bom, e mostrar o que as colocou em agonia. E o que o seu desaparecimento previsivelmente arrastará. Procurando ao mesmo tempo mostrar o que há a fazer, e também a não fazer, para eventualmente as ressuscitar. Duma forma positiva, e para que não nos acusem de estarmos entre todos os que se calaram, ou acomodaram ou, pior ainda, se aproveitaram. Façamos uma resenha final.
A nova lei de gestão hospitalar conduziu acima de tudo a uma “administradorização” dos hospitais, com passagem da gestão clínica para um plano totalmente secundário, perfeitamente subsidiário da gestão administrativa, da contabilidade pura e dura, tornada o centro de tudo. Foi uma mudança radical em instituições que deveriam estar centradas na actividade clínica, desempenhada e gerida pelos médicos, com o contributo directo do pessoal dos laboratórios e de enfermagem. Assistiu-se, por via dessa lei, a um aumento enorme do número de administradores nos hospitais, assumindo eles o papel de capatazes dos médicos. Sem que nada, absolutamente nada, os qualifique para essas funções. Quer dizer, o acessório tornou-se a si próprio central, e secundarizou o que é o âmago imprescindível e nuclear duma empresa para ser um hospital.
Em termos económico-financeiros as coisas não melhoraram, já vimos. Em França procura-se reduzir custos com a saúde – recordemos que era a melhor da Europa nesse campo (quando Portugal era 6º), mas com uma despesa de 14 % do seu PIB, contra os nossos 10%, do nosso pobre PIB. Para isso eles têm procurado recriar e desenvolver os hospitais públicos, no sentido do que nós tínhamos e ao invés do que temos vindo a fazer. A primeira medida de contenção que tomaram foi reduzir drasticamente as despesas com administradores e administrativos – também ao arrepio do que por cá se tem feito…
Em termos médicos desencadeou-se uma total desierarquização nos serviços hospitalares, com chefes nomeados apenas porque alguém “achou” que sim. Só isso levaria ao colapso das carreiras, assentes na hierarquia profissional conferindo autoridade e responsabilidade. Foi, mais uma vez, a ideia de substituir líderes por capatazes: o resultado está à vista. Toda a prática da medicina hospitalar foi posta em causa, e isso vai-se reflectir na qualidade dos serviços prestados. Que diminuirá ainda mais à medida que a formação for sofrendo, por essa mesma ausência de estruturação baseada nos conhecimentos científicos, na diferenciação técnica, nas provas dadas.
As carreiras soçobraram, os internatos estão em perigo, o Serviço Nacional de Saúde torna-se periclitante. Como já referimos, o grande responsável por isto continua a dizer que faria tudo igual – ainda não se apercebeu do que fez. Um Secretário de Estado diz que não sabe o que vai ser do Serviço Nacional de Saúde – já se começou a aperceber.
O Ministério da Saúde, agora liderado por uma médica, reconhece finalmente que as carreiras médicas estão acabadas mas fazem falta (o que durante muito tempo afirmámos quase sozinhos, criticados até por quem não queria que se falasse sequer nisso). Mas, em vez de aceitar modificar o que veio provocar a derrocada, insiste apenas em tentar remediar os estragos. Será que isso é possível? Ou estar-se-á, também aqui, a trocar o essencial pelo acessório?
Pretende-se que as carreiras sejam baseadas num acordo colectivo de trabalho, dele derivando um contrato colectivo a que só pode aceder quem estiver inscrito no sindicato que subscreveu o acordo. Quer dizer, quem quiser entrar numa carreira terá de estar obrigatoriamente sindicalizado. E no sindicato certo. Isto é, um médico, para além de ter de estar inscrito na Ordem, para poder exercer medicina, passa a ter de ser sócio dum sindicato para poder percorrer a sua carreira profissional.
Uma orientação política na saúde, que pareceu conduzir a uma liberalização nessa área, acabou por redundar na proletarização dos médicos. Tão grande e completa que, para poderem trabalhar integrados numa carreira, terão de estar sindicalizados. Quem não o quiser estar poderá tentar um contrato individual de trabalho, mas sem acesso à carreira.
É isto que parece desenhar-se para o futuro, e que levanta, obviamente, várias dificuldades. Desde logo, e se os sindicatos existentes não se entenderem? Se um fizer um acordo com o Ministério e o outro não? Se a carreira passar a ser tão dependente dum sindicato, que razão impedirá os médicos de se juntarem em sindicatos que melhor defendam os seus interesses na sua área ou modo de trabalho específicos?
O estabelecimento de graus baseados em concursos inter-pares, como os que havia, não levanta dificuldades. Mas o que obrigará cada unidade empresarial hospitalar, que contrata quem quer, do modo que entende, para fazer o que achar melhor, sem quadro fixo, a pagar mais a um médico por ter subido na carreira, ainda por cima para continuar a fazer o mesmo que fazia antes?
Quem obrigará as empresas-hospital, geridas com independência quase absoluta, por administrações lá colocadas como se fossem donos, a atribuir mais responsabilidade, mais autonomia, funções de chefia e de direcção técnica, aos médicos que forem subindo na sua carreira? É evidente que a lei de gestão aqui em causa teve como um dos seus fins, precisamente, quebrar essa hierarquia de competência, paralela e atentatória das nomeações pelos chamados “bons serviços”. Daí a avaliação SIADAP que se prepara para os médicos, o que, como também desde logo dissemos a quem nos quis ouvir, já se previa após a desagregação das carreiras.
Trata-se de um sistema de classificação que existe para si próprio, que não deriva naturalmente da actividade normal dos trabalhadores. Quer dizer, obriga a que cada um faça o que é bom para a classificação, embora isso não corresponda ao seu trabalho normal. É algo estranho enxertado na actividade clínica do hospital, que consome esforço e tempo a esses trabalhadores e veio obrigar a toda uma burocracia extra – também aqui mais administradores e funcionários administrativos – usada depois por quem rege o hospital do modo que quiser. O que é que isto tem a ver com uma carreira profissional? Nada. Quando ainda por cima os avaliadores são os chefes nomeados “ad hoc” pelas administrações.
É evidente, a nosso ver, que a progressão na carreira tem de ser a base da progressão no hospital, justificando a evolução remuneratória. Os chefes terão de ser os mais graduados, com a autoridade que daí deriva, liderando a equipa com a aceitação de todos, e orientando depois a avaliação do desempenho dos seus colaboradores. Qualquer coisa que não leve a isto não fará reviver as carreiras. Reconhecemos as suas virtualidades e acreditamos que seria possível recriá-las, mas em convivência com o que as matou é que não cremos que possam ter muita saúde e vitalidade. Continuaremos a lutar por elas, com o apoio que temos sentido dos colegas, dizendo frontalmente o que pensamos. Mesmo que isso nos afaste dos que tomam decisões e dos que participam nelas. Mas com a consciência tranquila, e esperança no futuro.
C M Costa Almeida in TM

10.4.09

VAMOS ÀS CARREIRAS - V

Outra influência notável que as carreiras médicas tiveram foi nos internatos médicos. Eram duas estruturas que, pode-se dizer, se completavam, imbuídas do mesmo sentido de progressão pela formação, pela aquisição de conhecimentos, pelo trabalho feito, tudo avaliado periodicamente e conferindo cada vez mais autonomia e responsabilidade.
Os internatos, as suas regras e programas, os orientadores, os responsáveis pela formação, tudo isso assentava nas carreiras, e vai sobrevivendo porque, pelo menos teoricamente, elas se mantêm. Mas à medida que os mais velhos forem saindo - e estão a sair de forma acelerada e prematura – corre o risco de rapidamente estiolar e perder valor e sentido.
Já há sinais claros dessa tendência, para quem os quiser ver. Um dos pontos altos no começo duma carreira era quando pela primeira vez um especialista se via designado para integrar um júri de exame final de internato. Não só isso traduzia o reconhecimento pelos seus pares de que estava em condições de avaliar outros, àquele nível, como era um factor de enriquecimento curricular na sua vida profissional. Pois agora há jovens especialistas que, pura e simplesmente, recusam desempenhar essas funções. Recusam interromper o seu trabalho diário hospitalar, deslocar-se a outro hospital, “perder tempo” a examinar candidatos a especialistas na sua área. E, vendo bem, não terão razão? Vejamos: não estão integrados em nenhuma carreira, são contratados para fazer um determinado trabalho clínico, ganham em grande medida à peça ou à hora, quantos mais doentes tratarem mais bem vistos serão por quem dirige o hospital, não precisam dum currículo diferente desse para poderem ser nomeados por esses dirigentes para lugares de responsabilidade, até mesmo directores de serviço ou de departamento. É assim ou não é? Poderá achar-se incorrecta a atitude daqueles colegas?!
A preocupação com a aprendizagem e o ensino era uma constante comum aos internatos e às carreiras, enformados, na realidade, à volta disso, conduzindo à evolução profissional e à ascensão a funções e lugares cada vez de maior importância, responsabilidade e poder e obrigação de decisão. No início, aliás, o internato era o primeiro grau da carreira. Num dado momento, o Ministério da Saúde retirou os internos da carreira médica, por razões administrativas, e agora retirou todos os médicos, por razões do mesmo tipo. Ficaram apenas os que já estavam integrados nelas, ocupando lugares a extinguir quando vagarem, uma vez que não há novas entradas. Curiosamente, nestas condições os concursos para os graus e lugares vão-se multiplicando nos vários hospitais, numa autêntica girândola de fim de festa. Unicamente porque quem entrou tinha a expectativa e tem por isso o direito de tentar progredir até ao topo.
Os especialistas contratados pelos hospitais EPE não pertencem às carreiras médicas, não podem por isso concorrer nesses concursos nem, por maioria de razão, integrar os respectivos júris. Antes desta nova lei de gestão, a sua entrada na carreira fazia-se no fim do internato, agora não se faz nunca. Pertencem ao colégio da sua especialidade, e é só por isso que podem fazer parte de júris de fim de internato. Já vimos que com razão para grande falta de motivação – a mesma que para o ensino, seguramente.
Também seria legítimo pensar que a desierarquização hospitalar provocada pela lei de gestão EPE iria reflectir-se negativamente na prossecução dos internatos. Vejamos: quem é o responsável máximo pela formação em cada Serviço? O director de serviço, naturalmente. Mas é natural que esse não seja o mais diferenciado no Serviço? Ou, pelo menos, um dos mais diferenciados? Aceite como tal pelos outros? Isso corresponde obviamente a uma desestruturação, que é a maneira melhor de destruir uma estrutura.
A pouca ou nenhuma preocupação evidenciada com a desestruturação na área da formação ressalta desde logo, também, do facto de se nomearem como presidentes de júris finais de internato assistentes hospitalares em júris que integram, para além deles, chefes de serviço. É uma antevisão do futuro imediato: como serão formados, e estruturados, os júris de fim de internato? Com que critérios? Quando não houver necessidade de progredir numa carreira técnica para se ser seja o que for dentro de um hospital? E em qualquer júri?
Ao longo desta série de artigos temos vindo a enumerar as consequências negativas da actual lei de gestão hospitalar nas carreiras médicas. E na formação pós-graduada e no serviço nacional de saúde. A Saúde no nosso país assentava num tripé: carreiras médicas, internatos médicos, Serviço Nacional de Saúde. Com este conjunto conseguiram-se resultados notáveis, num país pequeno e de poucos recursos, pondo-o a ombrear nesta matéria com os melhores, gastando muito menos que eles. Um dia alguém resolveu mudar a parte administrativa, por razões exclusivamente desse foro. Dessa mudança intempestiva – e parece que pouco pensada – resultou a aniquilação de um daqueles pés, as carreiras, carcomido por uma doença (a dita lei de gestão), em vias de se propagar rapidamente aos outros (os internatos e o SNS). Coxo dum pé, o tripé abana e tomba rapidamente. Pretendeu-se, na prática, substituir a gestão clínica por uma gestão preponderantemente administrativa, e disso não se vislumbram quaisquer ganhos, nem sequer administrativos e económico-financeiros. Como consequência directa, apenas um incremento notável da burocracia, acompanhando o aumento galopante do número de administradores nos hospitais e a sua actividade, recompensada, aliás, com aumentos de ordenado e bónus pecuniários.
O responsável principal pelo descalabro diz a quem o convida para dizer que faria tudo da mesma maneira – ainda não se apercebeu. Um dos Secretários de Estado da Saúde afirma que não sabe o que o Serviço Nacional de Saúde virá a ser no futuro – começou a aperceber-se. Os médicos já sabem, os doentes virão rapidamente a saber.
Se algo bem estruturado, tendo passado no teste do tempo, operacional, com um resultado global invejável num país em que tudo o mais anda por baixo quando comparado com o que se passa lá fora, é alterado nalguns aspectos e fica por isso, de repente, desestruturado e cambaleante, seria lógico pensar que haveria de se corrigir o que se fez e que perturbou severamente o conjunto. Quer dizer – e temo-lo dito nas raríssimas vezes que fomos chamados a emitir opinião – seria lógico esperar-se que algo na lei de gestão hospitalar fosse corrigido. Mas não, pretende-se teimosamente enveredar pelo caminho de mudar tudo o resto.
Na verdade, acabou por se entender agora que há necessidade de recuperar o que ficou lesado, nomeadamente as carreiras médicas. Mas, a manterem-se inalteradas as mudanças desestruturantes, afigura-se muito improvável vir-se a obter um novo equilíbrio eficaz e duradouro, isto é, um novo tripé com pés fortes e estáveis. Parece-nos um tratamento unicamente sintomático e não etiológico, quando se conhece a etiologia e se tem cura para ela. Os médicos não actuam assim. Ou não devem.
Carreiras assentes num contrato colectivo de trabalho são a proposta actual. Será possível compatibilizá-las com a gestão EPE? E com a avaliação SIADAP que se anuncia para os médicos? Da próxima vez terminaremos esta série de artigos de opinião sobre o problema das Carreiras Médicas em Portugal em 2009.

Carlos Costa Almeida in TM

22.2.09

VAMOS AS CARREIRAS - IV

Todos concordam que as carreiras médicas são necessárias no nosso país, uma necessidade que foi demonstrada ao longo de três dezenas de anos de resultados notáveis em termos de saúde e de formação médica. E o “todos” inclui agora o ministério da saúde – “agora” significando que temos um ministro médico que percebe realmente o que se passa nesta área. Há, portanto, um consenso alargado neste ponto, embora suspeite que alguns dos mais novos ainda não sentiram essa necessidade, lá no fundo aliviados com o que se traduz de início por menos trabalho, menos estudo, menos provas a prestar. E é natural que se procure optar pelo caminho mais fácil; mas compete a todos perceber o que faz falta e que a formação contínua na nossa profissão é fundamental, daí derivando a ascensão a lugares de maior responsabilidade e mais autoridade profissional por parte dos que demonstraram ser mais capazes e estar mais preparados. O que não fará sentido é uns terem o trabalho e outros serem guindados a tais lugares. Se assim for, então é bem verdade que o caminho a escolher pela maioria será, naturalmente e sem se poder criticar, o mais fácil.
A recriação duma carreira com os mesmos graus que existiam, a que se tem acesso por concursos julgados pelos pares, não me parece de grande dificuldade. Na verdade, ao fim e ao cabo, será suficiente deixar tudo como está no papel nesse aspecto. Onde está o busílis da questão é naquilo que na verdade matou as carreiras, apesar de elas continuarem teoricamente a existir. E que é a lei de gestão hospitalar EPE que, por um lado, impede a entrada de novos profissionais nessas carreiras e, por outro, fez tábua rasa dos graus e categorias ainda existentes.
À luz dessa lei cada hospital contrata quem quiser, quando quiser, para fazerem o que entender ao preço que estipular. Onde é que se encaixa aqui uma carreira? E não oiço o governo querer mudar este estado de coisas.
Pela mesma lei, e pela interpretação que as administrações hospitalares EPE fazem dela, os lugares de direcção, de chefia, de responsabilidade quer na assistência quer no ensino e formação, são distribuídos por quem os administradores “acham”, sem qualquer relação com graus ou categorias. E esta atitude está tão disseminada, diria é tão homogénea no país, que por certo tem algo comum a todos os hospitais a motivá-la. Faz sentido nestas condições falar-se em carreiras? Para além de que os resultados, em termos de assistência e formação, não se afiguram nada bons a médio e muito menos a longo prazo. Não se as carreiras tiverem a importância fundamental que se lhes atribui. E que leva agora a querer fazê-las renascer.
A salvação invocada baseia-se no contrato colectivo de trabalho. Não em mudar uma lei que destruiu algo que funcionava muito bem, mas sim em alterar o que estava bem para se adaptar de alguma maneira ao que, intencionalmente ou por inépcia, o veio destruir. A qualidade que fez triunfar a espécie humana foi a adaptabilidade activa, isto é, os humanos serem capazes de modificar o meio exterior e adaptá-lo a si próprios. Essa é uma capacidade individual, não da espécie, a qual vive, assim, da acção de alguns dos seus nessa matéria. Esperemos que, neste assunto das carreiras, os intervenientes directos consigam traduzir o que os outros pensam e querem e logrem chegar aos resultados almejados por todos.
O contrato colectivo de trabalho poderá vir pôr alguma ordem na desordenação total das contratações feitas agora, em que se chega a conceder licenças sem vencimento a médicos logo de seguida contratados pelo mesmo hospital, para fazerem o mesmo ou menos do que faziam por muito mais dinheiro. Dinheiro de nós todos, já agora; quando se apregoou mudar a lei de gestão para se conseguirem os mesmos resultados a um custo mais baixo. Mas em que é que isso poderá, só por si, ser decisivo nas carreiras médicas?
Ao contrato colectivo apenas poderão aceder os médicos inscritos num sindicato que o tenha subscrito, e logo aí se antevêem dificuldades numa classe tão arreigada ao liberalismo de actividade. Será mais um passo na tentativa da sua completa proletarização, e ainda por cima agora em nome de algo que ela não vem necessariamente resolver: as carreiras médicas. Se a lei EPE se mantiver como foi delineada, os hospitais-empresas continuarão a não ter quadro de pessoal definido, com lugares por categoria profissional. Os contratos a efectuar serão “à la demande” de cada administração, pelos critérios que escolherem como bons para a empresa que foram postos a dirigir. E do mesmo modo os hospitais privados. Quem garante que escolherão preferencialmente os mais graduados, sobretudo se pelo contrato colectivo de trabalho lhes tiverem de pagar mais? E quem os obrigará a dar mais responsabilidades e funções de orientação aos mais graduados que eventualmente tiverem a trabalhar para eles? É claro que o contrato colectivo poderá tentar acautelar algo semelhante, mas lá estará a classificação de desempenho feita pelo próprio hospital – quer dizer, pelo conselho de administração, directamente ou por interposto chefe por eles nomeado – para colocar nos lugares as pessoas desejadas. Neste panorama será difícil falar-se em carreiras.
Foi sintomática a apresentação conjunta feita pelo ministério da saúde do projecto das “novas” carreiras médicas e do projecto de classificação intra-hospitalar de desempenho dos médicos. Aliás, as carreiras anunciadas só tinham realmente de novo o facto de não terem repercussão na actividade hospitalar de cada um, parecendo ter sido planeadas apenas para manter os médicos ocupados a estudarem e a fazerem trabalhos, ao mesmo tempo que se retirava importância prática do ponto de vista do seu emprego a tudo o que conseguissem ser capazes de fazer nesse campo. Quer dizer, aceita-se que devem manter um esforço constante de progressão, o que implica que uns possam ir mais longe que outros, mas as administrações, depois daqueles concursos todos, reservam-se o direito de escolher quem bem entenderem, pelos critérios que lhes apetecer, nomeadamente das simpatias pelos colegas “dentro do mesmo projecto de gestão”, eufemismo habitual para compadrio e pagamento de favores. Como vai o contrato colectivo lidar com isso? Como vai evitar que na vida hospitalar dos médicos se instale o princípio que melhor que ser político é ser amigo do político certo para cada momento? Carreiras médicas?!... Quando muito carreiras iguais às existentes para o resto da administração pública, para subida de escalão de vencimento de acordo com a opinião do chefe. Sem qualquer relação com formação.
E todos aqueles que optarem por um contrato individual de trabalho? Por não querem estar forçosamente na dependência dum sindicato, ou por assim conseguirem ganhar mais? Ficam fora das carreiras?
No meio de tudo isto há um aspecto fulcral também, que é a formação de internos. De que as carreiras médicas até há dois anos existentes eram como que uma continuação natural, e que continua a funcionar sem problemas de maior pela vis a tergo que traz, mas que se irá necessariamente ressentir a breve trecho. Disso falaremos na próxima vez, e também da anunciada classificação de desempenho dos médicos.
C. Costa Almeida

VAMOS AS CARREIRAS - III

A actual lei de gestão hospitalar, criando os hospitais EPE, derivou do facto de quem administra os hospitais públicos considerar que não era capaz de o fazer bem com a lei previamente existente. Teve, portanto, uma causa puramente administrativa, isto é, mudou-se a lei de gestão para quem administra ser capaz de administrar. O problema é que com esse objectivo atropelaram toda a organização clínica hospitalar, desestruturando-a e conduzindo à inactivação e destruição das carreiras médicas. Isto sem aumentar visivelmente a eficácia administrativa, mas com um aumento exponencial do número de administradores circulando nos gabinetes e corredores dos hospitais. Dito de outro modo: alteraram as regras do jogo para o poderem ganhar mas, além de não o conseguirem, baralharam-no, e suspeito que no momento actual já ninguém sabe muito bem que jogo se está a jogar e como vai acabar.
Quer dizer, com uma alteração de gestão que no fundo traduziu uma incapacidade, destruíram algo que funcionava bem, tão bem que foi considerado como a base do Serviço Nacional de Saúde, o qual, por sua vez, levou a que um país pobre e em geral desorganizado e ineficaz como o nosso pudesse ser considerado o 12º no mundo, a contar de cima, na área da saúde. E o problema maior é que a modificação foi feita de tal forma, de tal maneira impensada – ou tão elaborada… -, que tornou muito difícil uma adaptação das carreiras médicas de modo a salvá-las. Mas falemos sobre isso, sem derrotismo, antes com os pés bem assentes na realidade.
Uma das alterações impostas foi que as administrações dos hospitais empresarializados podem contratar quem quiserem, pelos critérios que estabeleceram como necessários para o hospital que foram postos a dirigir. Seria com certeza inteligente para um empresário se procurasse contratar profissionais bem preparados, com provas dadas, no topo da carreira. Mas isso implicaria duas coisas: pagar-lhes mais, por um lado, e, por outro, ter um projecto de desenvolvimento da “sua” empresa-hospital que a levasse a evoluir e a fazer cada vez mais e melhor. Talvez haja algum conselho de administração assim, ou venha a haver, mas a rotina não tem sido essa: antes se pretende apresentar muitos doentes vistos e tratados a baixo custo, descartando-se para os vizinhos tudo o que custe mais caro ou implique mais investimento. Incluindo em pessoal especializado mais capaz e diferenciado.
Lá se vai, assim, a lógica do quanto mais diferenciado melhor. Algumas excepções talvez o pudessem ainda justificar, mas não passariam disso mesmo: excepções. E não se pode gerir um país com base nalgumas excepções. Que, louváveis que sejam, não serão com certeza um estímulo para uma carreira.
A grande esperança dentro do “status quo” criado reside no contrato colectivo de trabalho, que se pretende abranja tudo, hospitais privados e hospitais empresarializados. Estes adquiriram as regras e a liberdade da medicina privada, embora com capital do Estado. Mas este apenas pode intervir na dotação orçamental, na nomeação dos conselhos de administração e na avaliação dos relatórios finais, não pode dirigir ou alterar a gestão propriamente dita. Veja-se, por exemplo, que todos os conflitos eventualmente existentes com os trabalhadores – já não funcionários públicos – não são resolvidos em sede do Ministério da Saúde, terão de ser dirimidos nos tribunais, civis ou administrativos. Os trabalhadores – médicos incluídos – terão de se queixar ao sindicatos, onde, aliás, pelas novas regras, terão de
estar inscritos.
As novas leis de gestão hospitalar e da administração pública, ao acabar a função pública tal como a conhecíamos, vieram, na verdade, curiosamente, proletarizar mais os médicos e indirectamente aumentar a intervenção dos sindicatos. Estes são os interlocutores legais do governo e dos patrões, e os representantes dos médicos face aos tribunais em problemas laborais. O contrato colectivo insere-se nesse campo e, dadas as especificidades e as diferenças entre os vários tipos de actividade médica, não sei se a evolução não passará também por uma diferenciação de sindicatos e pelo consequente aumento do seu número.
No que respeita à actividade hospitalar – que interessa especificamente à nossa Associação – o contrato colectivo virá impedir o que agora se passa com contratos individuais feitos à completa vontade dos gestores dos hospitais, contratando quem querem, pelo ordenado que decidem, com a diferenciação que entenderem, sem prestarem contas a ninguém. E sem os contratados saberem mesmo quanto ganham os outros. Quer dizer, pelas mesmas funções – independentes do seu grau e categoria obtidos nas carreiras médicas moribundas - podem auferir vencimentos absolutamente diferentes, e sem sequer o saberem. Nestas condições, qual o estímulo para procurarem ascender numa carreira profissional? Estímulo, sim, para terem amigos políticos que lhes facultem de algum modo uma contratação que tem muito de política, no sentido óbvio da “politiquice”. E que lhes permitam, por exemplo, obter uma licença sem vencimento e acto contínuo serem contratados para fazer o mesmo que faziam antes mas pelo triplo do pagamento… Mais uma vez discricionariamente e sem qualquer relação com quaisquer carreiras passadas e muito menos futuras.
Mas se o contrato colectivo pode pôr alguma ordem nisto, continuará a não haver quadro de trabalhadores em cada uma das empresas-hospital, entregues que estão pela actual lei de gestão hospitalar à actuação individual de cada um dos conselhos de administração. Consoante o que planearem para o “seu” hospital (e pode ser deles tão pouco tempo como 3 anos, ou até menos), assim poderão contratar estes ou aqueles médicos, mais ou menos diferenciados. Preferindo os mais diferenciados, claro, se lhes pudessem pagar tão pouco como aos menos diferenciados. Mas se o contrato colectivo não permitir isso, terão de investir nos mais baratos, que esses irão com certeza progredir por si próprios, ganhando experiência ao tratarem muitos doentes, de preferência com pouca despesa... E quem subir no grau de diferenciação, ira passar a receber mais? Ou terá de procurar outra instituição que lhe queira pagar o correspondente ao novo grau? Quem passará a receber mais? Quem for nomeado por serviços prestados? Ao hospital, ou a um ocasional conselho de administração?...
Em que medida poderão coexistir, na actual gestão hospitalar, graus e categorias obtidos por concurso (sejam quem forem os júris para tal) e a avaliação burocraticamente feita por chefes nomeados discricionariamente em cada instituição, com regras como as do SIADAP, que, se não fossem desmotivantes e geradoras de irritação, conflitos e desinteresse, seriam risíveis por ridículas?
E qual a repercussão de tudo isto na formação médica contínua?
É todo um conjunto de problemas que foram criados há menos de dois anos e que estão por resolver. De que continuaremos a falar na próxima vez.
C Costa Almeida in Revista da Ordem dos Médicos e TM

8.2.09

POR AMOR DE DEUS!

Conheci até há muito poucos anos um grande número de colegas que foram obrigados a reformar-se por terem atingido o limite de idade e que o fizeram a contra gosto e com muita pena, deles e de quem com eles trabalhava. E sempre achei que nesses casos, em que a idade não tirou a capacidade para trabalhar e os conhecimentos e experiência acumulados e exercitados são uma enorme mais-valia para as instituições de saúde e para os seus profissionais mais jovens e para os doentes, deveria haver mecanismos legais que permitissem e até incentivassem uma forma de se usufruir deles durante mais algum tempo.
Mas, ultimamente, temos cronicamente vindo a assistir a uma enorme vaga de pedidos de reforma antecipada, de colegas na casa dos cinquenta ou nos primeiros sessentas, sem quaisquer problemas de saúde que o justifiquem. Quer dizer, no momento actual os médicos não chegam ao limite de idade para o seu trabalho hospitalar, saem antes, e existem várias causas para tal, todas de aparecimento muito recente.
Desde logo pelo receio, aparentemente fundado e propalado pelo próprio governo, de que se se reformarem mais tarde poderão ter uma redução significativa na sua pensão de reforma. Quer dizer, foi na verdade anunciado que quem trabalhar mais tempo virá a ter uma reforma mais baixa. Há, portanto, que deixar rapidamente de trabalhar para se ter uma pensão maior do que a daqueles que se mantêm a trabalhar mais tempo. Meu Deus, que situação extraordinária esta a que se chegou, não é verdade?!
E o mais extraordinário é que todos parecemos aceitar isto calmamente, resignadamente, como algo indiscutível e sem apelo. Nem o facto de há 30 anos se ter estabelecido um contrato com o patrão Estado com um conjunto de pressupostos – entre eles os respeitantes às condições de reforma – parece ter qualquer importância. Alteram-se esses pressupostos nem sequer a meio, mas mesmo no fim, e a nossa Constituição, afinal, permite-o. Bem, deve permitir, não vejo quem de direito manifestar-se contra…
Portanto, os médicos reformam-se mais cedo para conseguirem uma reforma maior do que se continuarem a trabalhar. Mas outro problema é que, reformando-se por querer, o fazem a contra gosto, o fazem aborrecidos, fartos, desmotivados em relação ao que foi a sua actividade profissional apaixonante, a medicina hospitalar. E esta é, talvez, a maior razão para o seu afastamento prematuro.
A passagem dos hospitais a entidades empresariais fez, indirectamente, soçobrar a gestão clínica dos mesmos, engolida e substituída pela gestão administrativa. Estes hospitais, apodados de empresas, esperar-se-ia que tivessem um funcionamento mais simples, com uma administração mais ágil. Mas não, adquiriram uma máquina administrativa pesada, burocratizada, cara, para cujo funcionamento requerem a contratação de milhentos administradores, cuja actividade interfere, perturba e em muitos casos dificulta a actividade clínica. Esta, a cargo fundamentalmente dos médicos, deixou de ser o centro do hospital, e justificação da sua própria existência, para passar a ser uma espécie de pretexto para existir quem administre. O resultado de tal coisa tem sido decepcionante, não só financeiramente mas em especial para quem tem de lidar com os doentes, as doenças e o seu tratamento, isto é, o pessoal clínico, médicos à cabeça. O modo mais eficaz e eficiente - e, portanto, mais barato - de um hospital desempenhar as suas funções é praticando a melhor medicina, e isso é da responsabilidade do corpo médico, e deve por eles ser regido. Nunca por quem tem funções contabilísticas e de criar as condições para se poder exercer uma gestão clínica adequada.
Não admira, pois, que os médicos tenham começado a sair, desmotivados e desencantados, de instituições pelas quais antes se batiam. Mas a desestruturação introduzida nos hospitais não se ficou por aqui. Em muitos deles instituiu-se intencionalmente uma desierarquização, com substituição nas chefias técnicas intermédias, departamentos, serviços e outras unidades, dos médicos mais graduados, mais diferenciados e, em muitos casos, líderes de opinião dentro das instituições, por outros, menos diferenciados e com menos provas dadas (ou sem provas dadas), que a administração “achou” terem melhores condições para os cargos. Como se compreende, muitos daqueles colegas preteridos e afastados optaram por abandonar quem os tratou dessa maneira e sair, passando a trabalhar para quem lhes reconhece os méritos profissionais e humanos, ou por conta própria.
Globalmente é este o quadro que levou à actual sangria dos hospitais de muitos dos seus melhores e mais experientes profissionais médicos. Foram levados a sair, e saíram para continuar a trabalhar.
Compreende-se que se reconheça agora que fazem falta, e que a própria ministra da Saúde venha fazer um apelo para que voltem a trabalhar nos hospitais EPE. Mas por amor de Deus, então por que os levaram a sair?! Não lhes criaram condições para ficar, e agora querem que voltem?!
Se calhar alguns não se importarão de voltar, provavelmente não para o hospital de onde saíram mas para outro. Como mercenários, pagos à peça ou à hora, sem estarem verdadeiramente entrosados na equipa do hospital, sem terem por isso de se preocupar com a gestão clínica ou com os erros cometidos nesse aspecto; a meio gás, portanto, ou menos, apesar de no fim ganharem mais (ou muito mais) do Estado do que ganhavam antes de se reformarem. A um esvaimento de funções importantes, do ponto de vista assistencial, científico, de formação pós-graduada, de gestão, corresponderam afinal maiores custos.
É preocupante, isto, e mais preocupante se pensarmos que as administrações de alguns hospitais se calha estão contentes com a situação. Que é equivalente, aliás, a outra que consiste em concederem licença sem vencimento a alguns médicos da sua confiança e logo de seguida contratarem-nos para as mesmas funções que tinham, mas pagos principescamente. Pode parecer esquisito - para dizer o menos – e ficar carissimo ao erário público, mas ao menos permite colocar esses gastos numa rubrica contabilística diferente da dos vencimentos, como por exemplo na mesma das couves e feijão comprados no mercado para fazer sopa. Quem apreciar as contas dessas empresas-hospital sempre poderá concluir apenas que os doentes, lá, comem muita sopa… E esta, hein?! Por amor de Deus!
C Costa Almeida in TM