25.8.06

Os custos da saúde

Sou português e médico, agora representante de médicos que dedicaram a vida profissional a trabalhar nos hospitais, em exclusividade ou não. Os médicos têm a mística consubstanciada no juramento de Hipócrates, que os leva a pretender sempre, com naturalidade, o melhor para o doente. É uma "deformação profissional", que faz procurar em cada momento o melhor remédio, o exame auxiliar de diagnóstico mais adequado, as melhores condições para o doente. Tal ultrapassa questões políticas, a importância social ou financeira do doente, a rentabilidade económica do hospital. Se não puderem tratar adequadamente o doente, isso dói, marca, corrói. Uma vida não se pode traduzir em euros. Muitos não o entendem, a não ser que um dia lhes toque à porta, como doentes. A nós toca todos os dias.
Claro que como profissionais, e como cidadãos, não nos apartamos dos gastos com a profissão. Um jornal há tempos dizia que o Estado português despende 20 milhões de euros por dia com a saúde. É um número absoluto, e pergunto: é muito ou pouco? A ser correcto, ele está dentro do que é reconhecido internacionalmente que a saúde no nosso país globalmente (público e privado) custa: 9,6% do PIB (dados da OMS). E isso é muito? Não é? Para se ter uma ideia, veja-se que os EUA gastam 15,2% do seu enorme PIB. Na Europa comunitária, os gastos com a saúde em França são 10,1% do PIB local, na Alemanha 11,1%, na Grécia 9,9%. Também há Espanha com 7,7%, Irlanda, 7,3% e Reino Unido, 8%. Portugal está, pois, na média, mas se calcularmos o que cada país gasta realmente per capita com a saúde, o nosso país é de longe aquele em que a saúde fica mais barata: contra os nossos 1700 dólares temos 2389 do Reino Unido, 2500 da Irlanda, 1850 da Espanha, além de 2000 da Grécia, 3000 da Alemanha e 2900 da França, 5700 dos EUA. Anunciar que Portugal é um gastador desastroso com a saúde é uma falácia: na verdade é o que gasta menos em termos globais. O PIB é muito mais pequeno que o dos outros, e por isso a percentagem é relativamente maior.
Mas quando se gasta dinheiro, há que avaliar a sua rentabilidade. Perguntemos: o que se tem obtido entre nós com 1700 dólares por cabeça? Um Serviço Nacional de Saúde aberto a todos, podendo cada português recorrer aos centros de saúde e hospitais e ser atendido de acordo com as suas queixas clínicas sem ter de provar que tem dinheiro para pagar; medicamentos comparticipados, alguns a 100%; e hospitais bem equipados, com médicos com boa preparação de base, em boas escolas médicas, com formação pós-graduada contínua adequada e avaliada periodicamente, escalonados nos locais de trabalho pela diferenciação profissional e provas dadas. Um SNS com alguns problemas de funcionamento, mas nada impossível de ser corrigido.
No último relatório da OMS sobre sistemas de saúde dos vários países do mundo, o SNS português surge em 12.º lugar no desempenho global. É o 5.º da Europa comunitária, bem à frente dos EUA, que ocupam o 37.º lugar - Portugal é um país pobre com saúde de qualidade igual à dos ricos. Os gastos com a saúde têm, pois, valido a pena. Mas é evidente que o aumento do custo da saúde nos deve preocupar a todos. Em grande parte, deve-se a um avanço científico e tecnológico nunca antes observado e que nos deverá fazer sentir felizes a todos - enquanto possíveis doentes - por ser na nossa época. E também agrada aos médicos, que assim se realizam mais profundamente do ponto de vista profissional, deitando-se mais vezes felizes por terem ajudado nesse dia um doente há anos sem qualquer solução. Esses gastos são, por esse lado, bem-vindos. Com certeza devem ser racionalizados, mas um país socialmente evoluído não pode invocar falta de dinheiro para se atrasar do ponto de vista sanitário. É lícito procurar conter despesas na saúde, mas é preciso manter a qualidade da assistência ao doente. Diminuir gastos diminuindo qualidade não é grande habilidade...
Analisando a questão, peritos norte-americanos chegaram à conclusão de que cerca de 40% do orçamento para a saúde vai para a área administrativa, não contemplando portanto o binómio médico-doente. Pelo contrário, grande parte do trabalho dos administradores e administrativos é só tentar reduzir o que os médicos gastam com os doentes. E calcularam que cortando para metade esses custos administrativos poderiam pagar o acesso médico a todos os que naquele país não o têm neste momento estabelecido por falta de meios financeiros. Interessante, não é? E por cá? Mas uma decisão dessas tem-se mostrado difícil, porque lá, como noutros países, quem a deveria tomar move-se precisamente naquela área.
Outro modo de reduzir os custos, dizem os americanos, seria diminuir o número de hospitais e outros centros de atendimento a doentes. Na verdade, não são os salários do pessoal de saúde que justificam os custos crescentes, mas sim, para além do preço duma máquina burocrática e administrativa sempre a aumentar, o consumo pelos doentes de medidas diagnósticas e terapêuticas cada vez mais eficazes mas também mais caras. Se não houver acesso fácil e rápido dos pacientes aos cuidados de saúde, pode calcular-se que muitos acabarão por desistir. É claro que haverá aqueles para quem o atraso na ida ao médico acabou mal...
No economicismo da saúde o preço da saúde é limitativo. Mas, para o médico, um doente seu que morre tem um valor absoluto. Muito oportunamente, o nosso bastonário alertou já para o facto de ser uma falta grave do ponto de vista da ética profissional deixar de se tratar um único doente que seja, rico ou pobre, citadino ou rural, duma cidade grande ou duma aldeia pequena, para poupar dinheiro.
Em resumo, há que ter preocupação com os custos da saúde, mas há formas apropriadas de os conter, visando sempre manter a qualidade dos cuidados de saúde prestados. O nosso Governo quer obsessivamente poupar dinheiro com a saúde e nesse sentido tem vindo a tomar medidas que afectam sobretudo o atendimento aos doentes. Sem que tenha com isso conseguido travar o crescimento das despesas, eventualmente pela sobrecarga administrativa e burocrática que essas mesmas medidas acarretaram.
Aguardemos o que o Ministério da Saúde vai fazer. Seja o que for, o que conta é o resultado, e haverá sempre que o comparar com o que temos actualmente, sobretudo na assistência aos doentes, a qual é directamente resultante das condições de trabalho e da formação contínua dos médicos deste país. Que há que preservar, a bem do que é inestimável em qualquer povo: a saúde. Se o ministério tiver como desiderato final e único reduzir os gastos com a saúde, deverá ter como objectivo a Libéria, com gastos na Saúde de 4,7% do PIB e 17 dólares por cabeça. Saúde mais barata não há. Será que a vamos atingir?... (Pub. Diário de Notícias, 24/8/06)

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