3.5.09

PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADO

A saúde da população portuguesa é uma preocupação que a nossa Constituição consagra como devendo ser do próprio Estado. E assim tem sido. Mas de há uns dois anos para cá essa preocupação parece ter começado a ser pesada demais para quem nos governa, e daí procurarem aligeirá-la. Uma maneira de o fazer seria deixar de fornecer todos os cuidados de saúde necessários; outra, seria começar a cobrar pelo que constitucionalmente deveria ser tendencialmente gratuito. Optou-se, para já, pela segunda hipótese, pretendendo-se, declaradamente, que ela leve também, insensivelmente, à primeira, ao afastar dos hospitais alguns doentes que têm de poupar todos os tostões que ganham, mesmo que isso os prive de assistência médica de que necessitariam. Para além disso, lembrou-se o governo de dividir com entidades privadas os cuidados que tem de prestar, nas tão propaladas parcerias público-privado.
Quando se fala em cuidados de saúde nacionais de cariz universal e responsabilidade estatal, isso inclui necessariamente a preocupação com a sua qualidade, até porque a saúde e a educação são a base de qualquer sociedade evoluída actual, e que queira continuar a conviver com algumas das sociedades mais evoluídas do nosso planeta. E nesse aspecto não basta controlar e avaliar a qualidade, há que contribuir para ela de maneira activa e decisiva, envolvendo-se o Estado na formação de base e contínua dos seus agentes. Antes de mais dos principais de entre eles, daqueles à volta de quem tudo gira e deve girar em termos de saúde: os médicos.
E também assim tem sido, conseguindo-se com a estruturação que existia, das carreiras médicas estatais, a formação contínua e a sua avaliação, ao mesmo tempo e com a mesma despesa, para além da colocação dos mais capazes, com mais e melhores provas dadas, nos lugares de mais responsabilidade e com maior poder de intervenção e decisão. Foi uma hierarquização pela competência, a muito baixo custo, que passou o teste do tempo (trinta anos de óptimos resultados, com o mais baixo preço per capita na União Europeia e um lugar entre os melhores).
Mas por alguma razão, ainda não propriamente muito clara, resolveu-se mudar tudo. A explicação dada foi a de poupar dinheiro. Isso incluía gastar menos, globalmente, ou o governo pagar menos. É nesta última parte que se vieram inserir as parcerias público-privado. A ideia geral é esta: os cuidados de saúde, obrigação do Estado, são prestados com o governo a fornecer directamente uma parte e encarregando uma instituição privada de fornecer os restantes, pagando-lhos ou permitindo-lhe que os cobre dos doentes, directamente ou através de alguma outra entidade para a qual eles contribuam.
O objectivo-base do Estado nesta matéria deve ser assegurar os cuidados de saúde aos seus cidadãos, enquanto que o objectivo-base das instituições privadas que se envolvem na saúde é, e legitimamente, o lucro. É possível concatenar estas duas atitudes? É, mas com muito cuidado. O problema principal surge quando o Estado, dividido em múltiplas empresas hospitalares praticamente entregues a si próprias (ou a quem o governo as entregou), passa a ter também como objectivo o lucro. Ou, dito de outra maneira, passa a condicionar a sua actividade clínica basicamente pelos números da sua contabilidade. Neste contexto, quando numa parceria destas se anuncia que ambos ganham, alguém provavelmente ficará a perder.
Até agora o que se tem visto é a despesa dos hospitais EPE a aumentar catastroficamente. Se o principal motivo para a mudança era poupar dinheiro, falhanço total. E o resto? A qualidade da saúde, o seu desenvolvimento sustentado e estruturado, a eficácia e eficiência dos Serviços, a formação médica, a avaliação desta?... Por aí abaixo. Ao mesmo tempo que os cuidados que os hospitais-empresa prestam por si são mais e mais limitados, os seus quadros médicos são cada vez mais reduzidos. Socorrem-se de maneira crescente de serviços médicos externos, num regime de prestação de serviços que tem tudo da mercenarização, em parcerias com empresas que negoceiam preços e pagam aos seus funcionários conforme lhes apetece. Não há continuidade na acção médica, quando os “fornecedores” fazem saltar os “prestadores” de hospital em hospital, de banco em banco, pagos à hora muito acima do que ganhariam se trabalhassem permanentemente numa instituição hospitalar. E quais os ganhos das duas empresas em parceria? Há médicos à hora que num dia de banco num hospital ganham tanto como ganhariam num mês se pertencessem ao quadro do mesmo hospital. É um negócio, e legítimo. Um mau negócio para quem paga num dia o que levaria um mês a gastar. Independentemente do que conste nas parcelas do Deve e Haver – preocupação dos contabilistas -, o resultado final é que conta, no que toca aos custos da nossa Saúde. E estes é que deveriam ser a preocupação dos gestores pagos pelo Estado.
Em áreas mais vastas e complexas de parcerias público-privado não nos vamos pronunciar de momento, mas todos conhecemos exemplos muito mal sucedidos e outros aparentemente com melhores resultados. Aparentemente, digo, porque há aspectos – de formação, de evolução nos conhecimentos médicos, de transmissão desses conhecimentos – que não são despiciendos mas não estão a ser considerados em momento algum. Se calhar irão ser considerados tarde demais.
Parcerias público-privado em saúde: possíveis, com certeza, eficazes, talvez, se com cuidado e nas condições desejáveis para quem gere os dinheiros públicos e, principalmente, para quem fornece esse dinheiro: nós todos. Parcerias que tenham sempre o objectivo de servir melhor os cidadãos com menor gasto. Mas sem se focalizarem exclusivamente no aspecto financeiro – tendência inevitável se os dois parceiros tiverem como objectivo o lucro. Exemplo disso é a recente legislação sobre o enriquecimento ilícito, que não foi criminalizado mas é taxado com 60% de imposto. Quer dizer, permite-se que se roube, e continue a roubar, e uma parte é para o Estado. Uma autêntica parceria público-privado em que ambos os parceiros lucram. Mas alguém perde. Com certeza não é uma parceria deste género que se deseja para a Saúde.
Carlos Costa Almeida in TM