22.11.22

 COIMBRA, A SAÚDE E A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

Carlos Costa Almeida

Coimbra é uma cidade universitária há mais de sete séculos, com uma marcada importância da Saúde na sua actividade, e que ainda há uns anos era tão grande que lhe chamaram “capital da saúde”.  A esse nível era dotada de dois dos Hospitais Gerais Centrais de Portugal, o Hospital da Universidade (HUC) e o Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), referência cada um em várias áreas da Medicina e da Cirurgia, e, por isso, atraindo a Coimbra profissionais de saúde, doentes, professores, investigadores, estudantes. E foi desta cidade, com esse peso e esse reconhecimento na Saúde nacional, que dois homens conduziram directamente a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS): o Dr. António Arnaud e o Professor Mário Mendes.

Mas Coimbra não conseguiu manter a riqueza que tinha. Desconsiderada por governantes, aquelas duas instituições coimbrãs sofreram um rude golpe quando foi resolvido que iriam desaparecer, engolidas por uma fusão num chamado “centro hospitalar”… mas dum hospital só! E assim surgiu o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), o qual, na prática, mais não passou a ser que o antigo HUC, mas sozinho, sem a presença na cidade do outro, o Hospital dos Covões, parte fulcral do extinto CHC. Esse, progressivamente eliminado como Hospital, desactivado enquanto tal passo a passo, desaproveitada e destruída a sua capacidade instalada, foi transformado numa espécie de nada, que é o que é uma estrutura que vai servindo de muleta ao outro Hospital que, assoberbado com muito mais trabalho e utentes do que tinha, se esforça com dificuldade por cumprir a obrigação que era de dois hospitais centrais públicos. E, por isso, as dificuldades redobradas, o desencanto, os atrasos, as listas de espera, as esperas e as falhas na Urgência, os exames, as consultas e as cirurgias realizados quando podem ser e fora do Hospital… E “inaugurações” nos Covões do que já lá funcionava há muitos anos mais não é que sinal de encerramento dessa actividade no HUC! Quer dizer, redução dos serviços públicos em matéria de cuidados de saúde hospitalares oferecidos aos utentes de Coimbra e da Região Centro.

Essa progressiva desactivação do polo de saúde do Hospital dos Covões, na margem oposta à do HUC, fora do centro da cidade, com espaço para crescer e acessos fáceis, fez concentrar a Saúde no polo HUC, ele próprio também perto doutro Hospital, esse especializado, o IPO. E assim se concentrou tudo em Celas, no meio de Coimbra, com as dificuldades acrescidas de acesso e de estacionamento que se reconhecem há muito tempo. Com o ainda maior agravamento pela projectada construção duma maternidade em cima do espaço esgotado do HUC! Em vez de se manter o que Bissaya Barreto tinha concebido, e conseguido, para a cidade, isto é, dois polos de saúde, um em cada margem, um deles na periferia, que é por onde as cidades crescem, fez-se convergir tudo para um ponto central e sem capacidade de expansão. Como se a real e canhestra intenção fosse atrofiar o que durante anos notabilizou Coimbra no plano nacional, com reconhecimento internacional: a sua actividade em Saúde.

E é o que temos. Mas em 2020, face a esta evolução desastrosa dos cuidados de saúde hospitalares da cidade, surgiu uma Petição “Pela devolução da autonomia ao Hospital dos Covões como Hospital Geral Central - Porque o acesso de todos à saúde em Coimbra e na Região Centro é um direito e um dever”, dirigida à Assembleia da República, que a recebeu. Foi discutida e avaliada pela Comissão Parlamentar de Saúde, para o que foram ouvidos dois dos peticionários (por duas vezes), os três presidentes do conselho de administração do CHUC desde a sua criação em 2012, a presidente da ARS Centro e os dois últimos ministros da saúde. Foi depois elaborado pelo relator dessa Comissão um relatório, aprovado por unanimidade, dando razão total ao peticionado, relatório esse que foi apresentado publicamente no jardim do Hospital dos Covões, porque a sua apresentação no auditório do Hospital foi negada pelo actual conselho de administração do CHUC.

E ficou-se à espera da sua apresentação e votação em plenário da Assembleia da República. Que vai finalmente ter lugar no dia 30 de Novembro de 2022. Dois anos e meio depois.

Veremos o que a Assembleia da República, agora com uma maioria absoluta dum partido, pensa e decide sobre a Saúde em Coimbra. Quando é cada vez mais evidente que o caminho certo da Saúde em Coimbra e na Região Centro é o contrário do que foi tomado, e é o que a Petição a votar solicita, AUTONOMIA PARA O HOSPITAL DOS COVÕES COMO HOSPITAL GERAL CENTRAL, porque o acesso de todos à saúde em Coimbra e na Região Centro é um direito e um dever:

“Desde a criação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) pela junção do Centro Hospitalar de Coimbra (onde se engloba o Hospital dos Covões) com o Hospital da Universidade de Coimbra (HUC), que se tem assistido não a uma fusão mas a uma destruição de um hospital central. Sem qualquer razão assistencial, social, urbanística, científica, ou outra razão aceitável, o Hospital dos Covões tem sido progressivamente desprovido de recursos humanos e recursos materiais, despido de serviços médicos, reduzindo significativamente a capacidade de prestar cuidados de saúde com a qualidade que habituou a população. A centralização de cuidados e serviços médicos não foi solução, apenas trouxe dificuldade no acesso (listas de espera enormes), o “amontoar” de doentes num só hospital sem aparente capacidade de resposta, a redução da qualidade e um risco acrescido para os doentes e profissionais.

Se o Hospital dos Covões já tivesse sido encerrado, o colapso da saúde em Coimbra teria sido muito maior do que foi nesta era COVID. Sim, foi o Hospital dos Covões o epicentro do combate à pandemia em Coimbra. É preciso aprender com os erros de gestão em saúde do passado, para que o presente não se repita no futuro.

É imperativo reverter a "pseudo" fusão do Hospital dos Covões com o HUC, restabelecendo a autonomia e a capacidade que estava há anos instalada naquele hospital central e que resolvia todos os problemas de saúde da população que a ele recorria. Os trabalhadores do Hospital dos Covões estão tristes, desmotivados e revoltados pelo reiterado assédio moral a uma instituição com 47 anos de existência, que é acarinhada por profissionais e doentes. Insistir na continuação desta fusão é continuar a insistir na negligencia de gestão em saúde que se assiste em Coimbra há anos, e num crime contra o direito constitucional do acesso a cuidados de saúde. É um dever do poder político assegurar que todos os portugueses tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade e atempados num serviço público. Um Hospital dos Covões a funcionar em pleno é essencial para se cumprir esse dever, continuar a destruí-lo é um crime que lesa a pátria.

Por tudo isto e muito mais: Dizemos SIM ao Hospital dos Covões!”

21.8.18

MEDICINA E CIÊNCIA

É conhecido o aforismo segundo o qual um médico tem de estudar toda a vida. E isso é inegável, pela parte científica da profissão. O que ontem era verdade, hoje pode não ser, e amanhã ser de modo totalmente diferente, com repercussões decisivas obrigatórias na nossa prática médica, na maneira de estudar e tratar os nossos doentes. Há que manter o passo com essa evolução da ciência, e para isso há que estar muito atentos a ela, e estudar, e ler, e ver, muito, com método, como obrigação, com o desígnio profissional de aperfeiçoamento, de aprender o mais possível para benefício dos doentes que a nós recorrem.

E isto não é retórica, como alguns - poucos, espero - parece pensarem, ao considerarem totalmente ultrapassado o médico “dedicar a vida à medicina”, ainda por cima num mundo com tantos mais atractivos à mão de semear e sem terem nada que ver com o nosso trabalho. E não se trata de “a medicina ser um sacerdócio”, que é óbvio que não é, no sentido de se cuidar dos doentes benemeritamente e por razões morais. Pelo contrário, a Medicina é uma profissão, e em qualquer uma só se pode ser realmente bom se nos dedicarmos a ela de alma e coração, ou de corpo e alma. Que outra coisa, afinal, faziam os supercampeões olímpicos de natação Mark Spitz e Michael Phelps quando treinavam sete horas por dia, ou fazem e faziam os grandes futebolistas como Ronaldo, Eusébio, Pelé, e tantos outros dos melhores, sempre os primeiros a chegar aos treinos e os últimos a sair? Em todas as profissões – porque é de profissões que estamos a falar – há com certeza os que têm individualmente mais jeito, ou mais capacidade, que outros, mas isso não impede que não tenham todos de se esforçar e aprender. Ninguém nasce ensinado, embora alguns possam aprender e evoluir mais depressa que os seus colegas, e haja sempre profissionais mais capazes que outros; o que não pode haver é maus profissionais. E não em Medicina por maioria de razão, já que lidamos com a vida dos nossos semelhantes.

Como dizia um conhecido empresário de muito sucesso no nosso país, o êxito resulta de 10% de inspiração e 90% de transpiração…  Na profissão médica não é diferente, nos seus dois componentes, arte e ciência. Aprende-se, treina-se, pratica-se, desenvolve-se. Uns com mais facilidade, outros com menos, mas sempre com um desejo constante de aperfeiçoamento, de melhores resultados, muitos dedicando-lhe a sua vida profissional, e tirando dela muito prazer, de dever cumprido, de realização pessoal, procurando ser os melhores possível. Mas há alguns outros, no entanto, que se contentam com a mediania, ou nem isso, limitando-se a não ser maus, porque nesta profissão a incompetência não pode ser permitida, e tem de ser impedida, e mesmo penalizada. No dizer de Sir William Osler, “It is astonishing with how little reading a doctor can practice medicine, but it is not astonishing how badly he may do it”.

Seja como for, e enquanto profissão, portanto fonte de rendimento, quanto melhor se for nela, mais se ganhará. Mesmo com as excepções que sempre confirmam a regra, não há como pensar doutro modo: os melhores ganharão mais. Com um senão importante: nesta profissão quem ganha mais também trabalha mais, ou tem essa possibilidade, ao contrário dos menos procurados. Se não se quiser ganhar a vida assim, há outras profissões…

No que respeita ao contacto com os doentes, a mente humana, e a sua psicologia, têm-se mantido inalteradas, o que faz com que observações nessa área feitas há milhares de anos colham perfeitamente no momento actual. Já as sociedades, evoluíram, modificaram-se, a noção do que nelas é normal foi-se alterando, e por isso a realidade de cada época vai sendo diferente, o que tem de ser tomado em conta pelo médico frente aos pacientes, sem dúvida. Tem de se manter o passo também do ponto de vista sociológico, se quisermos estabelecer empatia com cada doente.

Mas os conhecimentos científicos é que mudam mais, e temos de lhes procurar activamente as mudanças. Para isso é fundamental adquirir primeiro uma forte base de conhecimentos médicos, que constituam uma boa cultura médica que enforme o nosso saber profissional, e sobre ela irmos então desenvolvendo mais umas áreas que outras, sem deixar de lado as ligações existentes, permitindo avançar mais longe em cada uma delas e no todo. Porque conhecer muito bem uma área, mas totalmente desenquadrada do resto do complexo, é limitativo e condena a repetir-se o mesmo sem conseguir grande progresso, por falta de inputs e skills obtidos fora da área monótona e exaustivamente repetida. Sendo certo, também, no entanto, que a repetição melhora o desempenho do acto repetido.

O que caracteriza a ciência é a incerteza. Não há verdades científicas imutáveis; há é verdades científicas que não mudaram, ainda. E o progresso vai-se fazendo, com avanços e recuos, observação, registo, investigação. Há que ter um conhecimento científico sólido, sobre o qual se vão inscrevendo, de espírito aberto mas crítico, as mudanças. Se normas são para cumprir, enquanto não houver outras, guidelines são apenas isso, linhas de orientação, e resoluções por consenso estão longe de ser lei, significam apenas que num grupo específico ninguém votou contra elas. Perigosos são os que não sabem o básico e embandeiram em arco com “descobertas” desencantadas num artigo ocasional, ou afirmações definitivas de grupos sem confirmação científica, e que querem de imediato aplicar na prática, e mais, invectivam, como atrasados e ignorantes, os que, cautelosamente e porque têm substrato no assunto, têm dúvidas em o fazer.

E terminemos com este último aspecto, o da agressividade interpares na medicina e na ciência. É um fenómeno que parece estar a aumentar, e que interessa reconhecer e tentar perceber para se poder combater, por profundamente negativo. Dum artigo apresentado no blog Surgical Thoughts (*), a agressividade entre médicos “…em alguns casos é uma forma de defesa pela ignorância quanto ao caso em concreto, o não saber o que fazer, e por isso não se querer comprometer a expressar uma opinião que ficará registada para todo o sempre.” E afirma-se: “A rudeza e agressividade gratuitas entre colegas não são de modo algum passíveis de justificação. A meu ver, são muitas vezes sintoma de ignorância e incapacidade profissionais, sem no entanto esquecer que o cansaço, excesso de trabalho e burnout têm uma forte influência nesse comportamento, que em nada beneficia o doente e o profissional.”

Um aspecto particular dessa agressividade e má criação, e decorrente do desenvolvimento das redes sociais, é a discussão nestas de situações médicas que não se encontram perfeitamente definidas do ponto de vista científico ou social, e por isso sujeitas a opiniões pessoais. Ocasionalmente, em vez de se fazer a discussão tranquila do assunto em causa, com apresentação e discussão de argumentos do ponto de vista médico, cada um invocando os que considere relevantes e procurando rebater os dos outros, formam-se uma espécie de clubes de opinião, em que surgem colegas que perdem, mesmo que momentaneamente, o tino, acusando e insultando do ponto de vista pessoal os que se lhes opõem, atribuindo-lhes ignorância, falhas de carácter ou interesses particulares maquiavélicos ou mesquinhos, isto porque se atreveram a não comungar da sua opinião, assim transformada em verdadeira crença sobre um assunto que devia ser apenas e só técnico. É uma situação que por vezes assume o carácter de verdadeiro bullying contra quem unicamente deseja expressar e trocar impressões de carácter médico com colegas, e que tende a obstaculizar o uso dum meio que poderia ser muito útil para o efeito. E que, fora dessas situações, é mesmo.

Carlos Costa Almeida

In Número 23, Newsletter da Cirurgia C, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC

*http://carloscostaalmeida.wixsite.com/surgicalthoughts/single-post/2018/03/28/Agressividade-entre-m%C3%A9dicos-Um-fen%C3%B3meno-internacional

11.8.18

A EMPATIA NÃO DEVE SER UMA

PALAVRA VÃ

Uma familiar dum paciente nosso escreveu no Livro de Reclamações do nosso Hospital um texto agradecido e elogioso acerca do nosso Serviço, de que destaco o fragmento que se segue.  “No momento de dor perante morte anunciada de um ente querido, é importantíssimo, para o alívio do sofrimento da família, existir momento de diálogo com os profissionais mais presentes junto do doente (enfermeiros). Sem dúvida estes devem marcar a diferença no cuidar, quando acolhem e escutam preocupações da família. Hoje, olhando para trás, relembro as palavras destes profissionais e sinto necessidade de pedir à administração deste hospital que reforce estes profissionais de saúde, de modo a que disponham de tempo para cuidar do doente, ou seja, para não haver falta de cuidados e conforto a este por falta de pessoal e ao mesmo tempo para a família a nível de “apoio” numa fase de tão elevado sofrimento para todos”.  É de empatia que aqui se fala.

Empatia é a capacidade de se entender a emoção dos outros, de compreendermos os seus sentimentos em cada altura, procurando nós experimentá-los de forma objectiva e racional como se estivéssemos na mesma situação vivenciada por eles. É compartilhar a dor psicológica dos outros, é saber ouvi-los sem julgar, sentindo-nos no seu lugar e transmitindo-lhes essa sensação. A empatia assim estabelecida ajuda a compreender melhor o seu comportamento e motivações em determinadas circunstâncias, e a forma como tomam decisões. E orientar a terapêutica de acordo com isso. E leva à confiança do doente no seu médico, sentimento que contribui seguramente para se conseguirem melhores resultados.  Isto não por razões estritamente psicológicas, no sentido de imateriais, ou morais, porque o “humanismo é bom”, mas por razões bioquímicas, muitas delas ainda não estudadas e que apenas se entrevêem, através do que podemos globalmente chamar endorfinas, e que aumentarão a capacidade de resistência do organismo à doença, levando com mais facilidade à sua recuperação face à agressão patológica sofrida.

Já em artigo anterior nesta Newsletter foi abordada a empatia como parte integrante da relação médico-doente. Esta é uma relação profissional, e assim se deve manter, porque é a relação entre um profissional e o objecto do seu trabalho: o doente.  O médico deve tratar os seus doentes da melhor maneira possível, com toda a sua capacidade, recorrendo a tudo o que aprendeu e sabe fazer, sempre com o maior empenho e aplicação, fazendo o máximo por eles, embora, naturalmente, possa ser limitado pelas condições que lhe fornecem no seu local de trabalho, ou pela falta delas. Na sua actuação deve manter a cabeça fria, usar toda a objectividade, seguindo a táctica que achar melhor e empregando a técnica mais adequada, sem permitir que a sua possível afectividade pelo doente lhe tolha isso tudo. O médico não deve tratar pacientes por quem tenha sentimentos profundos, sejam positivos, sejam negativos, e se o  fizer terá de redobrar de cuidados, para não os prejudicar.

Significa isto que não é um dever ter simpatia pelos doentes e seus familiares. Nem poderia ser assim, porque desse modo só iriam ser tratados adequadamente aqueles que nos fossem simpáticos! E sendo os doentes – tal como os profissionais de saúde, aliás – uma amostragem da população geral, há-os de todos os tipos, uns dignos de simpatia, outros antes pelo contrário. E todos devem ser tratados da melhor maneira possível. Não se fale, pois, de simpatia ou antipatia na relação entre médicos e doentes, ou cuidadores e cuidados, mas sim de empatia.

O esforço pessoal e activo para estabelecer empatia com quem é tratado tem de fazer parte integrante do profissionalismo de quem trata, e ela deve ser treinada, e mantida, e depois aperfeiçoada ao logo da vida profissional. Neste aspecto, é crucial que quem trata doentes tenha em conta as suas emoções, bem como dos que lhes são queridos e os acompanham de perto nessa hora de preocupação e sofrimento, as compreendam, as sintam, comunguem com elas, embora, e isto é fundamental, sem se consumirem nelas. É muito importante que os pacientes e seus familiares sintam essa compreensão e essa sintonia, e que existe preocupação e vontade de ajudar, e que tudo isso seja feito sem se perder o sangue frio e, para tal,  o distanciamento afectivo necessário.

Estabelecer empatia com o doente implica conversar com ele, ouvi-lo, questioná-lo, olhá-lo nos olhos, mostrar-lhe que estamos ali, diante dele, a procurar entendê-lo e ajudá-lo. Mais, que o vamos ajudar e acompanhar no esforço que vai ter de fazer até ficar curado. E é importante tentar perceber os seus receios  e procurar fazê-los desaparecer ou atenuar, não dando falsas esperanças mas nunca as tirando por completo. A empatia com o doente é, na verdade, uma arte, fácil e intuitiva para alguns, mais complexa para outros, mas todos a devem procurar atingir e melhorar. Porque ela é fundamental quando se lida com pessoas, neste caso pessoas doentes, e com estas a parte científica e tecnológica da medicina, só por si, é pouco.

É claro que para se estabelecer empatia é preciso um contacto pessoal suficientemente estreito, e prolongado, e isso num hospital implica estar o tempo necessário na enfermaria, junto dos doentes e dos seus familiares. E que cada doente possa identificar, dentre o conjunto dos médicos do Serviço, o ou os que são “os seus” médicos, que com ele lidam diariamente na sua doença e no seu internamento, a quem apresentam em primeira mão as suas queixas, e a quem os familiares se podem mais directamente dirigir. Por maioria de razão, é com os enfermeiros que o contacto é mais constante, pois são eles quem está presente a todas as horas na enfermaria. Por isso a função dos enfermeiros é muito importante na relação empática com os pacientes internados. E é a este propósito, aliás, que é o texto escrito nas Reclamações do Hospital, e que serve de mote a este editorial. Texto elogioso e agradecido, sim, mas que, lucidamente, exorta o Conselho de Administração a tomar pró-activamente as medidas necessárias para se poderem manter as condições para os doentes serem tratados da melhor maneira possível, incluindo no aspecto de que aqui estamos a  falar.

É preciso que o número de profissionais seja o necessário, e que, no caso dos enfermeiros, permita que a equipa que contacta com cada doente seja consistentemente a mesma, não sendo obrigada a mudar diariamente e assim impedir aquelas longas conversas que a autora do texto refere,  com os doentes e ouvindo e acolhendo as preocupações da família.  E essa acção dos enfermeiros, muito para lá do seu trabalho puramente técnico, mas incluída no seu conteúdo profissional, tem um alcance que vai muito além da parte humanitária que é elogiada naquela “reclamação”: ela, na verdade, deve preparar os doentes para o que lhe vai acontecer no hospital e logo após a alta, e desse modo contribui, e dum modo hoje considerado quase decisivo, para uma melhor evolução durante o internamento e um mais rápido restabelecimento após sair. Aliás, é um dos pilares a não esquecer na ERAS (enhanced recovery after surgery). A qual alguns conselhos de administração aplaudem com entusiasmo, pensando nos possíveis internamentos mais curtos, mas nada fazem na realidade para implementar!

Em suma, tudo a propósito de empatia, e do modo como neste Serviço ela se consegue estabelecer com os doentes, pesem embora as condições para isso cada vez mais difíceis criadas entre nós. Todos os doentes são importantes, naturalmente, mas é bom que possamos transmitir a cada um e à sua família que, se não é o único que temos para cuidar, é com certeza o que nos monopoliza o esforço e a preocupação profissional. E, com ele, todos e cada um dos outros. E saber que não acontece neste Serviço o que sei que aconteceu noutro, em que, face à preocupação insistente e angustiada do marido duma doente mal, ainda por cima agravada por uma pneumonia nosocomial nesse seu internamento, o director, enfadado, lhe disse: “Sabe, esta doente para si é a sua esposa, mas para nós é apenas mais um número... E temos muitos!”. Porque não, porque empatia não é isso.

Carlos Costa Almeida

In Newsletter da Cirurgia C, Número 22, Julho 2018, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC


8.7.18

A  EUTANÁSIA

Recentemente no nosso país recrudesceram as conversas e as discussões sobre a eutanásia, e houve inclusivamente uma votação no Parlamento com ela relacionada. Os cidadãos não se devem alhear do assunto, e por maioria de razão os médicos, que não podem mesmo ignorá-lo, já que ele os envolve directamente e por definição. Mas é evidente que há antes de mais que saber, com rigor, do que se trata e sobre o que se opina e eventualmente decide.
A palavra eutanásia deriva dum vocábulo grego composto por “eu” (bom) e “thanatos” (morte), e lireralmente significava “boa morte”, no sentido duma morte tranquila, sem sofrimento. Não tinha, pois, a conotação polémica, e até ominosa, que hoje se lhe atribui. Conta-se que o imperador romano Augusto, sempre que lhe diziam que um conhecido havia morrido serenamente, exclamava “Que os deuses me concedam uma eutanásia assim!”. No nosso tempo, o termo corresponde a ajudar um doente a terminar a vida, para aliviá-lo de dor e sofrimento insuportáveis. Na verdade, essa ajuda pode significar, realmente, pôr termo à vida do doente. Ou, sem medo das palavras (que não se deve ter), matá-lo. Vejamos como e em que condições.
Sendo o objectivo genérico da medicina “prolongar e vida e evitar a morte”, terminar a vida não poderia deixar de suscitar uma série de acaloradas discussões no âmbito ético, religioso, médico e jurídico. Alguns entendem-na como um acto de misericórdia do médico, dentro das suas funções de cuidar dos doentes, fazendo com que os que não podem ser salvos possam morrer “bem”, sem a indignidade dum sofrimento atroz, destruidor em vida da sua personalidade; outros consideram que é uma perversão dos seus objectivos, mesmo uma inversão, tal como na obra de François Truffaut, Fahreneit 451, grau de destruição, em que os bombeiros se transformaram nos que ateavam programada e profissionalmente os fogos…
Antes de continuar, tenhamos noção de alguns procedimentos relacionados directamente com a ideia de eutanásia. Distanásia, por oposição, significa “má morte”, e em medicina entende-se como o adiamento da morte de um doente que se encontra em fase terminal, sem esperança de cura e em sofrimento, condicionando-lhe uma morte lenta e dolorosa, com o recurso a tratamentos médicos considerados desproporcionados. Com o mesmo significado é também  usada a expressão "obstinação terapêutica". Ortotanásia, em alternativa às duas, é a morte natural, no momento certo. Não confundir eutanásia com suicídio assistido, no qual o médico fornece ao paciente os meios necessários para pôr termo à própria vida, desde que se verifiquem da parte do doente os pressupostos de incurabilidade, grande sofrimento e desejo, por isso, de morrer.
Eutanásia é o acto intencional de proporcionar a alguém uma morte rápida e indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável e que provoca um grande sofrimento. Pode ser classificada em voluntária e involuntária. Na eutanásia voluntária é a própria pessoa doente que, de forma consciente e dentro dos parâmetros necessários, pede para ser morto. Na eutanásia involuntária a pessoa encontra-se incapaz de expressar o desejo de morrer e essa decisão é tomada por outrem, geralmente cumprindo o desejo anteriormente expresso pelo próprio nesse sentido. A eutanásia pode também ser classificada em activa e passiva. A eutanásia activa é o acto de intervir de forma directa e deliberada para terminar a vida do doente, a eutanásia passiva consiste em não realizar, ou interromper, o tratamento necessário à sua sobrevivência. Esta última poderia eventualmente confundir-se com não praticar distanásia, mas a diferença é que o tratamento abandonado poderia ser eficaz na doença em causa, enquanto na segunda se procura apenas arrastar a vida sem outro objectivo.
A eutanásia, onde é permitida por lei, deve ser levada a cabo por médicos, ou sob a sua supervisão, já que é realizada por motivos clínicos. Os mais comuns, da parte de doentes terminais, são a dor intensa e insuportável, a dispneia marcada e angustiante, a paralisia extensa. Também têm sido apontados a incontinência, a disfagia, náuseas e vómitos, que provocam uma redução significativa da qualidade de vida do doente e uma depressão profunda. Outro motivo psicológico reside no medo de perder o controlo do corpo, a dignidade e a independência. A verdade é que uma depressão psíquica conduz caracteristicamente ao suicídio e, na impossibilidade deste, poderá justificar o pedido de suicídio assistido ou de eutanásia voluntária; o que não significa que, melhorando um pouco, e uma vez passado o período depressivo, o doente não possa deixar de querer morrer.
A eutanásia está no centro de um intenso debate público com diversas considerações de ordem religiosa, ética e médica, que têm origem em diferentes perspectivas sobre o significado e valor da vida humana. Entre os argumentos a favor da prática da eutanásia estão a alegação de que as pessoas têm o direito a tomar decisões sobre o seu corpo e escolher como e quando querem morrer, e que o direito à morte faz parte dos Direitos Humanos (entretanto, se um qualquer indivíduo se tentar suicidar procurar-se-á impedi-lo, e se tentar várias vezes poderá ser proposto para tratamento psiquiátrico). Entre os argumentos contra, estão razões que se prendem com a vontade de Deus, ou falta de respeito pela inviolabilidade da vida, e pelo seu valor, ou considerações éticas sobre a função do médico, que é tratar e não matar. Um óbice mais técnico é o de a permissão da eutanásia voluntária, caso se aceite do ponto de vista moral, poder acabar por levar a casos de eutanásia involuntária, para reduzir custos com a saúde ou ter mais camas vagas (como na Alemanha na segunda guerra mundial, para acomodar o excesso de feridos que vinham da frente de batalha), ou encobrir homicídios. ou colaborar numa eliminação sistemática de todos aqueles que as autoridades julgarem incómodos ou prejudiciais para a sociedade ou para a “raça” (eutanásia eugénica, voltando ao exemplo da  Alemanha nazi, em que a prática, estabelecida legalmente e com suporte médico, sem ser nos campos de concentração, foi de “terminar vidas que não valia a pena serem vividas”). Paralelamente, invoca-se que a existência de cuidados paliativos de qualidade retirará a indicação clínica para eutanásia ou para suicídio assistido, insistindo nessa antinomia.
Na maior parte dos países não existe legislação específica a permitir a eutanásia, pelo que terminar a vida dum doente que sofre, tal como fornecer-lhe os meios para o suicídio, é homicídio, punível com pena de prisão, embora frequentemente mitigada por ser um “homicídio piedoso”. Está, no entanto, dentro da lei o médico decidir não prolongar a vida em casos de sofrimento extremo, e administrar sedativos mesmo que isso diminua a esperança de vida do doente. Na Europa, apenas Bélgica, Luxemburgo e Holanda autorizam a eutanásia activa e o suicídio medicamente assistido, dentro de regras clínicas estabelecidas, sendo a Holanda o primeiro dos três a torná-los legais (2001). Na Suíça, a eutanásia não está legalizada mas o suicídio medicamente assistido sim, e do mesmo modo no Canadá e em cinco estados dos 52 dos Estados Unidos da América. Do resto do mundo, apenas a Colômbia autoriza a eutanásia voluntária activa e o suicídio assistido. A eutanásia involuntária é ilegal em todos os países e geralmente considerada homicídio. Mesmo nos países em que a eutanásia voluntária é legal, esta continua a ser considerada homicídio se não estiverem cumpridas a condições previstas na lei. No entanto, da Holanda chegam relatórios mencionando, para além de suicídios assistidos e eutanásias a pedido, doentes mortos sem terem expresso desejo disso, no momento ou previamente (por testamento vital, por exemplo), e mesmo sem o seu conhecimento ou das respectivas famílias, embora, naturalmente, sempre alegando-se razões médicas.
É, quanto a mim, nestas últimas circunstâncias, e naquelas mais antigas, que residem as maiores dúvidas na legalização do suicídio medicamente assistido, embora com regras muito estritas e que o tornem capaz de ser moralmente aceite. É que elas mostram ser possível o que é chamado “slippery slope”, isto é, de um procedimento muito restrito se ir deslizando para um maior alargamento das indicações, primeiro presumindo o desejo não expresso, depois resolvendo mesmo sem essa presunção, e aí por diante, eventualmente misturando as razões iniciais com fins diferentes, como seja de os médicos decidirem se doentes têm ou não vidas que mereçam a pena ser vividas, ou se as camas que ocupam não seriam mais necessárias para outros. Não seria nada inusitado e que não se possa prever, porque já aconteceu.
Em Portugal, foi recentemente posta à votação parlamentar a despenalização do suicídio medicamente assistido, tendo sido recusada. Embora, pessoalmente, não tenha uma ideia definitiva sobre o assunto,  face a todos os argumentos num sentido e noutro, não creio que se possa considerar moralmente inaceitável, e por isso forçosamente ilegal, o proporcionar a morte a um doente terminal, sem esperança de cura, em sofrimento intenso sem possibilidade de ser controlado significativamente, desde que ele o pretenda expressa e conscientemente. É, na realidade, um acto médico de misericórdia, embora também compreenda que para alguns de nós possa ferir o fim último da nossa profissão. Por isso, ele não poderá nunca passar a ser parte integrante e obrigatória do conteúdo funcional de cada médico. Mas trata-se de ajudar um doente a atravessar com alguma serenidade um momento tão dramático da vida como é a morte, depois dum período prolongado de grande sofrimento, já sem esperança. Fala-se do direito a morrer com dignidade, embora este, ao fim e ao cabo, não seja um direito individual  absoluto, já que é necessário que outros reconheçam ter as condições médicas exigidas para lhe ser concedido. Será, para quem o aceite, muito importante ter a certeza inquestionável de estarem reunidos esses pressupostos clínicos necessários, para além da vontade inequívoca, consciente, informada e esclarecida do interessado, e de esta não resultar, por exemplo, dum estado depressivo ocasional.
Como comentário final a este assunto, não posso deixar de referir situações intimamente relacionadas com ele e que são muito mais frequentes do que aquelas em que um doente possa desejar que lhe seja proporcionada a morte. Refiro-me a quando um doente de avançada idade necessita de cuidados mais diferenciados e, portanto, mais dispendiosos, ou mais consumidores de tempo e de recursos, e tal lhe é recusado. Como exemplo, um doente muito idoso que é operado de urgência, e que na sequência disso teria necessidade de cuidados intensivos, e a respectiva Unidade se recusa a recebê-lo, afirmando que “não vale a pena investir” naquele doente, por causa da idade; nessa impossibilidade, o paciente fica no recobro do bloco operatório, ou na enfermaria, onde eventualmente vem a recuperar, e tem alta, bem, de regresso aos seus entes queridos, que o esperam com ansiedade e amor… sem nunca sequer imaginarem que houve alguém no hospital que decidiu que “não valia a pena” tratá-lo...  É que não se trata de não intervir num doente com grande probabilidade de morrer nessa intervenção, e maior de sobreviver se não for intervencionado: aí a preocupação é pela vida do doente. Ou de recusar fazer um tratamento que não tem qualquer possibilidade de resultar, num doente sem esperança de se salvar: aqui seria distanásia, e essa já se sabe que se deve evitar. Não, é alguém que decide se o doente “tem uma vida que vale a pena viver” ou não; e, pela abstenção terapêutica, a maior parte das vezes não vive mesmo, o que poderia não acontecer se tivesse sido tratado… Claro que situação diferente ainda é se não houver vaga de internamento, ou houver mais do que um candidato para uma só vaga: aqui terá de se fazer um escalonamento da gravidade das situações clínicas em apreço, e dos próprios doentes, idade e vitalidade incluídas. Nessa altura, por muito que custe, por vezes terá de se escolher um em detrimento de outro; a obrigação do médico em todas as situações é fazer por cada doente o melhor possível, mas dentro das condições de que disponha no local onde trabalha. Agora, simplesmente desistir dum doente porque é muito velho, ou porque pode vir a ficar internado muito tempo, e isso “não vale a pena”, soa a eutanásia involuntária, e essa é proibida em todo o lado. E, afinal, são situações dessas que fazem temer o tal “slippery slope”, referido atrás, e a que eventualmente o suicídio assistido poderia vir abrir a porta…
Carlos Costa Almeida
In Newsletter da Cirurgia C, Número 21, Junho 2018
Director do Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC

1.6.18

O TRAUMA, A RAÇA E O SNS
No início deste mês de Maio recebi da Biblioteca do nosso Hospital, como é habitual periodicamente, uma lista de trabalhos publicados nas revistas médicas que continuam a ser assinadas e que nos possam interessar, segundo a nossa área de trabalho. É seguramente uma iniciativa muito meritória e importante de quem lá trabalha, a Lúcia Paiva, e que cumpre realçar, com vénia.
Uma das sugestões era Universal Insurance and an Equal Access Healthcare System Eliminate Disparities for Black Patients after Traumatic  Injury,1 de Muhammad Ali Chaudhary et al., do Center for Surgery and Public Health, do Brigham and Women's Hospital, um dos hospitais  da Harvard Medical School, em Boston, Estados Unidos da América, publicado em Abril de 2018 na revista americana Surgery. O título chamou-me a atenção, ao introduzir no tratamento do trauma dois factores não médicos, o tipo de seguro e o acesso ao sistema de saúde, e um terceiro, a raça, em princípio sem relação fisiopatológica conhecida com lesões traumáticas. Os autores, reconhecendo diferenças e desigualdades no tratamento do trauma no seu país, com pior tratamento e piores resultados em pacientes pertencendo a minorias étnicas, quiseram verificar se essas desigualdades e diferenças eram amenizadas caso os traumatizados dessas minorias tivessem acesso a um seguro de saúde igual aos da maioria.
Assim, consideraram dois grupos de doentes, uns brancos, outros negros, vítimas de traumatismo, num total de 87.112, tratados num espaço de tempo de oito anos, e todos beneficiários do mesmo seguro, com as mesmas regalias. Os doentes incluídos no estudo foram avaliados segundo o mecanismo e intensidade do trauma, as lesões sofridas, as comorbilidades presentes, o tipo de cuidados no local e à entrada, e vários factores demográficos.  A raça foi considerada como a grande variável preditora dos resultados, aos 30 e 90 dias após alta, fazendo-se, portanto, nesse aspecto, a comparação entre brancos e negros. Não foram encontradas diferenças significativas entre os dois grupos no que respeita a mortalidade, morbilidade pós-traumática, reinternamentos e reabilitação. Concluíram os autores que um seguro de saúde igual podia diminuir ou mesmo fazer desaparecer as desigualdades historicamente verificadas naquele país, e afectando negativamente a minoria negra quando traumatizada.
Apesar do resultado positivo do estudo, no sentido de não haver repercussão da etnia nos resultados do tratamento, o artigo chocou-me por essa hipótese ter sido posta. Por isso fui ler mais sobre o assunto.
Em 2007, Shahid Shafi et al., da Universidade do Texas, em Dallas, escreveram Ethnic Disparities Exist in Trauma Care,2 focando os doentes que sofreram traumatismo cranioencefálico (TCE) e tiveram reabilitação depois, para evitar ou minimizar as sequelas. Segundo os autores, é conhecida nos EUA a diferença de acesso aos cuidados de saúde consoante a etnia ou raça em diversas patologias, e eles quiseram estudar o que se passava naquela situação. Consideraram retrospectivamente, segundo a sua etnia, três grupos de pacientes (brancos não hispânicos, hispânicos e afromericanos) que sofreram traumatismo cranioencefálico grave com necessidade de reabilitação. Na análise dos grupos foram tomadas em consideração várias variáveis (idade, género, índice de gravidade geral do trauma e índice de gravidade do TCE, lesões associadas, tipo de seguro de saúde), e nesses aspectos os três grupos foram considerados equivalentes. Assim, a única diferença que justificou os hispânicos e os negros serem postos significativamente menos em programa de reabilitação foi a sua etnia.
Sobre o mesmo tópico, e também em 2007, Wehman et al., do Departamento de Medicina Física e Reabilitação da Virginia Commonwealth University, em Richmond, em Helping Persons With Traumatic Brain Injury of Minority Origin: Improve Career and Employment Outcomes,3 descobriram que no seu país pessoas das minorias étnicas apresentam mais sequelas pós-trauma cranioencefálico, o que lhes condiciona as carreiras profissionais e o acesso ao emprego. E à mesma conclusão chegaram Anthony Asemota et al., da Johns Hopkins School of Medicine, de Baltimore, em 2013, em Race and Insurance Disparities in Discharge to Rehabilitation for Patients with Traumatic Brain Injury,4 juntando à raça o seguro de saúde como factores negativos no acesso à reabilitação necessária após traumatismo cranioencefálico e, portanto, levando à existência de mais sequelas. E do mesmo modo McQuistion et al, da Division of Trauma and Acute Care Surgery, University of Wisconsin School of Medicine, em 2016, constataram em Insurance status and race affect treatment and outcome of traumatic brain injury,5 com base em dados do National Trauma Data Bank americano, que a raça ou etnia e o seguro de saúde influenciam o tempo de internamento, os tratamentos feitos, a mortalidade e o seguimento pós-alta.
Já Ashley Meagher et al., no Estado de North Carolina, em Racial and ethnic disparities in discharge to rehabilitation following traumatic brain injury,6 em 2015, reconhecendo a desigualdade das minorias hispânica e afroamericana no acesso ao serviço de reabilitação em internamento após TCE, por comparação com a maioria caucasiana, identificaram, para além disso, uma dificuldade maior dessas minorias no acesso a cuidados mais elevados de reabilitação após alta, mas não relacionada com o tipo de seguro de saúde. Para aqueles autores, o factor decisivo é apenas pertencer àquelas minorias ou à maioria étnica.
Em Racial Differences in Employment Outcome After Traumatic Brain Injury at 1, 2, and 5 Years Postinjury,7 em 2009, Kelli Gary et al., também da Virginia Commonwealth University, afirmam que os doentes que sofreram TCE grave apresentam com frequência, pelas consequências físicas, cognitivas e emocionais desse trauma, dificuldades na sua reintegração na sociedade e na manutenção ou obtenção de emprego. Neste último aspecto, para além da reabilitação, também contarão algumas condições pré-trauma, como o nível de instrução e o tipo de emprego, mas, mais uma vez, o pertencer a uma raça minoritária naquele país (neste estudo, ser negro) revelou-se como um factor importante para os doentes não obterem um emprego estável após o traumatismo e o seu tratamento.
Em resumo, a etnia ou raça parecem ser na verdade um factor determinante no acesso aos cuidados de saúde e nos resultados do tratamento do trauma nos EUA, com repercussão negativa nas minorias, nomeadamente nos hispânicos e negros, por comparação com a maioria caucasiana. Apresenta-se como uma realidade, sejam quais forem os aspectos particulares que a expliquem, com menção específica ao tipo de seguro de saúde de que uns e outros podem dispor.  E leva-nos de imediato a pensar na nossa realidade nacional, em que os doentes são tratados no Serviço Nacional de Saúde (SNS) todos da mesma maneira, sem importar a raça, a origem, as posses económicas, a profissão, o nível social. Com um acesso universal, e com todos os meios disponíveis à disposição de todos por igual. Seguramente um avanço enorme em termos sociais, até diria em termos civilizacionais. E compreendemos mais facilmente por que razão ele, como sistema de saúde, está tão bem cotado a nível internacional, apesar das dificuldades actuais – e crescentes, deve dizer-se -  em termos de recursos humanos, tecnológicos e de investimento, os últimos justificando largamente os outros.
De realçar, também, nos artigos citados, a preocupação dos seus autores, oriundos de hospitais de referência nos EUA, em avaliar o tratamento dos doentes traumatizados e as suas consequências, identificando factores que os podem influenciar negativamente. Todos terminam os seus trabalhos, aliás, dizendo que é necessário corrigir o que está mal. Um desses factores, que alguns relacionam com a raça ou etnia dos pacientes, é o seguro de saúde, ou a falta dele, e aquilo que ele oferece a cada indivíduo segurado. Num momento em que em Portugal os seguros de saúde aumentam rapidamente, compensando, e presumivelmente aliviando, o SNS, seria importante avaliar em que extensão é que cada um dos existentes pode contribuir para o tratamento dos traumatizados e a sua reabilitação, poupando o SNS a esse trabalho. Ou se, pelo contrário, alguns deles levam os doentes a ter de recorrer ao sistema público, por falta da cobertura necessária ou porque alguns, ou muitos, cidadãos – eventualmente com preferência por alguma raça ou etnia - não têm possibilidades de a eles recorrer. É uma avaliação que deverá ser feita, como os americanos fizeram, com intuito de melhoria, se quisermos manter o nosso sistema de saúde, enquanto tal, à frente, e bem à frente, do deles.
Carlos Costa Almeida
In Número 20 da Newsletter da Cirurgia C, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)
Referências
1 - Chaudhary MA, Sharma M, Scully RE, Sturgeon DJ, Koehlmoos T, Haider AH, Schoenfeld AJ. Universal insurance and an equal access healthcare system eliminate disparities for Black patients after traumatic injury. Surgery. 2018 Apr;163(4):651-656
2 - Shafi S, de la Plata CM, Diaz-Arrastia R, Bransky A, Frankel H, Elliott AC, Parks J, Gentilello LM. Ethnic disparities exist in trauma care. J Trauma. 2007 Nov;63(5):1138-42
3 - Wehman P, Targett P, Yasuda S, McManus S, Briel L. Helping persons with traumatic brain injury of minority origin: improve career and employment outcomes. J Head Trauma Rehabil. 2007 Mar-Apr; 22(2): 95-104
4 - Asemota AO, George BP, Cumpsty-Fowler CJ, Haider AH, Schneider EB. Race and insurance disparities in discharge to rehabilitation for patients with traumatic brain injury. J Neurotrauma. 2013 Dec 15;30(24):2057-65
5 - McQuistion K, Zens T, Jung HS, Beems M, Leverson G, Liepert A, Scarborough J, Agarwal S. Insurance status and race affect treatment and outcome of traumatic brain injury. J Surg Res. 2016 Oct;205(2):261-271
6 - Meagher AD, Beadles CA, Doorey J, Charles AG. Racial and ethnic disparities in discharge to rehabilitation following traumatic brain injury. J Neurosurg. 2015 Mar;122(3):595-601
7 - Gary KW, Arango-Lasprilla JC, Ketchum JM, Kreutzer JS, Copolillo A, Novack TA, Jha A. Racial differences in employment outcome after traumatic brain injury at 1, 2, and 5 years postinjury. Arch Phys Med Rehabil. 2009 Oct;90(10):1699-707


22.5.18

ANTÓNIO ARNAUT

Habituei-me a ouvir o seu nome desde o começo da minha carreira como especialista, desde o início do Serviço Nacional de Saúde e ao longo dos anos que ele tem. Mas uma coisa é ouvir falar do ministro que criou as bases para revolucionar a assistência médica no país, ou do político defensor das suas causas e do que na sua óptica considerava justo e mais adequado à sociedade que ele procurava moldar, ou do advogado eloquente, ou do poeta que ele era, outra foi conhecê-lo pessoalmente. Conversar com ele, ser comensal à mesma mesa, trocarmos ideias, sobre grandes e pequenas coisas, ao longo de viagens em conjunto, participar em debates em que ele também participava, ter a honra de o ver apresentar um livro escrito por mim, sobre, naturalmente, a Saúde, o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras Médicas, um assunto que desde cedo, e acidentalmente, o tomou na sua vida política activa e que, mesmo depois dela, nunca mais abandonou.

Foi ao conviver com ele, ao tê-lo como amigo, que pude testemunhar os seus modos afáveis, mesmo para aqueles com quem não concordava, mas mantendo a segurança das suas ideias, sem fazer cedências, nem sequer de circunstância, àquilo em que acreditava e por que se batia com denodo e persistência. A sua simplicidade de modos e de estar, mas que prendia todos os que com ele falavam ou apenas o ouviam. O seu espírito de humor arguto, a atenção que prestava a tudo o que o rodeava. A sua confiança no que sabia, sem deixar de aprender e sem perder a capacidade de se surpreender e entusiasmar com o que de novo lhe aparecia. A sua vontade de melhorar constantemente. A sua alegria de viver e de ter vivido, contagiante.

Foi um privilégio conhecê-lo. Para além da obra a que deu origem, para além daquilo que neste pais representou, para além daquilo que realizou. É, sem dúvida, daquelas pessoas que gostaríamos sempre de encontrar outra vez.

Carlos Costa Almeida
Presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar

30.3.18



Consentimento informado, livre e esclarecido. O que significa? O que se pretende com ele, como se deve obter?

Pode-se dizer que foi Hipócrates quem tornou a medicina numa profissão como hoje a entendemos, e que a Escola Hipocrática de Medicina criou as regras da relação médico--doente que perduraram durante 23 séculos, e que só muito recentemente sofreram alguma modificação. Na sua sequência, a prática médica baseia-se nos princípios da beneficência e da não-maleficência, e, nesse sentido, logo no Juramento de Hipócrates se afirma que o médico deve tratar os doentes e se deve abster de lhes fazer mal, afirmando o mesmo autor, noutra obra, que a função principal do médico para com o doente “é fazer-lhe bem e não lhe fazer mal”. Será curioso notar que a expressão em latim primum non nocere (em primeiro lugar não causar dano), que traduz exactamente isso, dando primazia ao não fazer mal, não foi usada por aquele médico grego mas sim criada muito tempo depois, alegadamente por Thomas Sydenham, no século XVII, quando o latim era a língua intelectual, acabando por ficar registada como uma parte fulcral do que se pretende transmitir com aquele Juramento. Com um significado muito amplo em medicina e em cirurgia, aquela frase constitui em si mesma um axioma absolutamente central em farmacologia clínica, relembrando todas as interacções e efeitos secundários dos medicamentos, embora cada vez mais se possam encontrar situações clínicas em que a sua acuidade pode ser discutível. 
Na época de Hipócrates, e durante séculos a seguir, a relação médico-doente assentava num verdadeiro paternalismo médico, devendo este comportar-se para com o doente como um pai para um filho. Tudo o que fizesse era para bem dele, mesmo que eventualmente não parecesse. Nesta óptica, o médico tinha o dever de proteger esse filho, fazendo-lhe o bem e poupando-o ao mal, prescrevendo o tratamento adequado, e responsabilizando-se por isso. Quanto ao doente, restava-lhe o papel de fazer o que lhe era dito por quem sabia e queria o seu bem – tal como os filhos em relação aos pais. A preocupação e a responsabilidade pelo que acontecesse ao doente eram apenas e totalmente do médico. Em textos atribuídos a Hipócrates, recomendava-se mesmo que o médico escondesse tudo o que pudesse do doente, para não o preocupar e para lhe dar descanso de espírito, desviando a sua atenção daquilo que lhe estava a fazer e das complicações possíveis, omitindo até o diagnóstico que lhe reservava.
Embora haja quem afirme que o exercício da medicina não terá sido tão autoritário como algumas passagens hipocráticas fazem crer (a não ser, porventura, na Idade Média, quando a prática clínica esteve confiada aos monges, habituados a uma organização severa e ao dogma nas próprias relações humanas), o facto é que ninguém contesta que só muito recentemente se estabeleceu a necessidade de obter um consentimento informado e prévio, como forma de respeito por um verdadeiro e próprio direito do paciente a saber e consentir. Numa perspectiva actual, os valores pessoais do doente, enquanto sujeito inserido numa determinada cultura que lhe é própria, merecem a devida atenção, em respeito pelo seu direito à autodeterminação. E esse respeito veio alterar a sua postura no seio da relação clínica, passando de uma completa dependência para uma participação activa. O respeito pela dignidade da pessoa humana significa, acima de tudo, a promoção da sua capacidade para pensar, decidir e agir, o que implica e pressupõe um conhecimento esclarecido do diagnóstico, dos riscos e passos do tratamento ou intervenção (sem prejuízo do privilégio terapêutico, que adiante se refere), assim como eventuais alternativas terapêuticas. Em última instância, a decisão sempre é do paciente, que exprimirá a sua vontade, aceitando ou não a estratégia terapêutica proposta, até ao momento da sua execução.
A doutrina do consentimento informado, livre e esclarecido é relativamente nova na medicina. Atribui-se-lhe o início nos Estados Unidos da América, em 1928, quando um Tribunal deliberou: “...todos os seres humanos maiores de idade e com saúde mental (competentes) têm o direito a determinar o que deverá ser feito com o próprio corpo; e um cirurgião que realize uma operação sem o consentimento do paciente comete uma violação, estando por isso sujeito à exigência de responsabilidade”. No rescaldo de experimentações humanas degradantes e criminosas realizadas durante a Segunda Guerra Mundial, surgem o Código de Nuremberga, em 1947, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, onde se refere a necessidade de consentimento voluntário após informação correcta que permita decidir. A Declaração de Helsínquia, sobre investigação com humanos, redigida pela Associação Médica Mundial em 1964, fala de consentimento informado, e, de acordo com a Declaração de Lisboa, pela mesma Associação, em 1981, “o paciente tem o direito de consentir ou recusar tratamento na base de esclarecimento adequado.” A importância de uma participação activa do paciente na relação clínica, no âmbito da necessidade da sua livre vontade para qualquer intervenção médica, foi registada na Recomendação proposta pelo Grupo de Trabalho da Região Europeia da Organização Mundial de Saúde (O.M.S.), em 1985. E também na Convenção de Bioética do Conselho da Europa (1996) se afirmou claramente que “uma intervenção no campo da saúde só deverá ser efectuada após a pessoa o permitir, dando para tal o seu consentimento livre e informado.” Do ponto de vista judicial, o Código Penal português prevê o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, ou seja, sem o consentimento informado e esclarecido do paciente, fundando-se este no direito à integridade física e moral do indivíduo.
O consentimento insere-se na moderna relação médico-doente, em que o segundo deixa de seguir cegamente o primeiro, antes passa a ter o direito de partilhar das suas decisões no que lhe dizem respeito. Poder-se-ia considerar que isso vem aliviar a pressão sobre o médico, ao não decidir só por si, mas a verdade é que a responsabilidade técnica continua a ser sua: o doente apenas consente. Pode exercer uma preferência, mas sobre o que lhe é sugerido pelo médico, este de acordo com o que sabe, a sua experiência e o que a evidência médica do momento mostra que é bom. Pretende-se que o paciente, para poder escolher, seja perfeitamente esclarecido sobre o assunto em questão, mas não se espera com certeza que um leigo na matéria possa decidir tecnicamente, ou contribuir para essa decisão, por mais que se lhe explique! A escolha, ou aceitação, pelo paciente do que lhe é proposto será sempre com base em parâmetros próprios, de carácter social, ou psicológico, ou emocionais, mesmo que a informação que lhe foi prestada o tenha deixado, na sua opinião, secundada pela do médico, esclarecido. É isso o consentimento informado e esclarecido. A orientação técnica e as suas consequências continuam a ser responsabilidade do médico.
Há um número significativo de pacientes que renunciam à informação, pelo menos muito detalhada, sobre a sua doença e respectivo tratamento, e consentem nele entregando-se nas mãos profissionais do “seu” médico, dentro da lógica do velho “paternalismo”. O médico deve respeitar essa preferência do doente, não o atormentando com pormenores indesejados – razão por que era assim feito na velha medicina hipocrática. Quanto aos outros, os que querem participar na escolha, devem ser informados da melhor maneira possível de modo a poderem ficar esclarecidos das suas dúvidas. E assim poderem consentir, sem se sentirem coagidos ou direccionados: isto é, livremente. Destes, naqueles em que o conhecimento da verdade nua e crua sobre a sua patologia e o seu futuro enquanto doentes os possa afectar seriamente na sua evolução clínica, de modo justificadamente expectável, aceita-se serem também poupados a um esclarecimento cabal. É o chamado privilégio terapêutico. Para além desta situação, outras razões podem permitir o não esclarecimento: os casos de tratamentos de rotina, em que não se vislumbra risco ou dificuldade que force a uma informação detalhada ao doente para que este possa decidir, e os estádios terminais, na medida em que habitualmente determinam o que alguns apelidam de perda de autonomia, justificando formas mais suaves de esclarecimento, ou mesmo a sua omissão.
Duma maneira geral é, pois, fundamental que o doente consinta, ou escolha, depois de esclarecido. Mas a mesma informação pode não ser eficaz em todos os doentes, quer dizer, alguns podem não ficar esclarecidos apesar dela. Há, pois, que procurar a informação, e o modo de a transmitir, mais adequados ao esclarecimento de cada um. Chama-se a isso informação eficaz. Que tem forçosamente de passar por um diálogo entre o médico e o doente, através do qual se perceba no final que este ficou esclarecido. Por mais documentos escritos que sejam entregues ao paciente, e que ele assine, poderá sempre mais tarde argumentar que não lhe foram adequadamente explicados, ou que os percebeu mal. É da comunicação, do colóquio singular, entre o médico e o doente que sai mais eficazmente a informação necessária, que o médico pode adaptar ao doente que tem na sua frente, em contacto consigo, usando inclusivamente, para isso, a empatia profissional que deverá estabelecer com ele.
Que médico deve obter o consentimento informado, esclarecido e livre do doente? O que lhe possa explicar com detalhe o que lhe vai ser feito, e como, as alternativas, as dificuldades a vencer, as complicações possíveis, o que fazer para as evitar e resolver, que resultados esperar. Sem hesitações, com conhecimento de causa, sem dúvidas, de modo a poder tirar todas as que o doente apresente.
E isso legalmente é quanto basta. O facto de o consentimento ter sido obtido por escrito não significa forçosamente que o doente tenha sido adequadamente informado e esclarecido, ou que tenha consentido livremente e não tenha sido induzido a tal. Por isso a nossa Lei não exige um consentimento escrito, e a Entidade Reguladora da Saúde também não, apenas fala em “preferencialmente escrito”. Já a Direcção Geral de Saúde, através da Norma respectiva, impõe um documento escrito. É uma regra administrativa a cumprir nos hospitais, naturalmente, mas que não deve de maneira nenhuma implicar um aligeirar no esforço para que o consentimento do paciente seja colhido por quem o deva colher, isto é, tenha as condições necessárias para  o informar eficazmente, e por isso tal consentimento seja dado de modo informado e esclarecido e se possa dizer livre, tal como atrás ficou dito. Porque, se não tiver sido assim, a simples existência dum papel assinado não terá qualquer peso legal e ético em termos de responsabilidade médica. Antes demonstrará, em si mesma, uma falha do médico na obtenção do consentimento por parte do doente para a intervenção ou tratamento em causa.
Carlos Costa Almeida
In Newsletter do Serviço de Cirurgia C, Número 18, Março 2018, Hospital Geral (Covões), CHUC

4.2.18


E um dia vieram os médicos
ou
O Serviço Médico à Periferia em 1975
Carlos Costa Almeida

Quis o acaso que eu integrasse o curso de Medicina que começou o Serviço Médico à Periferia, em 1975. Fiz parte nessa altura da chamada Comissão Nacional de Policlínicos, com representantes do Norte, Centro e Sul, que foi quem discutiu com o governo a ida dos jovens médicos para a periferia, e por isso posso falar na primeira pessoa do que aconteceu, e com conhecimento directo de causa.
O nosso contacto com o Ministério da Saúde era através da então existente Direcção Geral dos Hospitais, e logo nos apercebemos que da parte deles não havia uma ideia precisa do que esse “serviço” deveria ser, de modo que tudo ficou em grande medida entregue a nós próprios, e à nossa iniciativa e capacidade de organização, em cada Região e depois em cada grupo formado. Esses grupos constituíram-se ah hoc, por amizades, simpatias, maior convivência habitual, idiossincrasias, credos políticos, etc. A sua distribuição pelas várias localizações foi sorteada, depois dos locais terem sido escolhidos por uma comissão designada para o efeito em cada Região.
Tínhamos feito o internato geral, na altura composto de um ano de prática clínica (findo o qual nos inscrevíamos na Ordem dos Médicos) e catorze meses de internato de policlínica, e aguardávamos o início do internato complementar, pelo qual tiraríamos uma especialidade hospitalar (os cuidados de saúde primários como especialidade ainda não existiam). E foi nesse interregno que se veio instalar a possibilidade de irmos fazer um serviço médico na periferia, fora dos grandes centros e dos hospitais estatais então existentes, um pouco à semelhança das chamadas “campanhas de dinamização cultural” dos militares. Recorde-se que estávamos ainda num período de agitação revolucionária pós-Abril de 1974, com o chamado Movimento das Forças Armadas (MFA, motor do golpe revolucionário) empenhado em dinamizar e modificar o interior recôndito do país, dentro do entendimento político dominante.
Alguns colegas queriam decididamente ir, por razões políticas, animados de espírito revolucionário. E outros não queriam ir, também por razões políticas, de sinal contrário. Mas a grande maioria queria realmente colaborar em algo que ajudasse a dinamizar o país, a torná-lo melhor, convictos de que se estava a viver uma mudança. Só que daí a saírem da sua rotina, do seu conforto, faltava um bom bocado, em que um certo egoísmo, ou egocentrismo, marcava posição… E, sobretudo, viam com preocupação interromper a sua carreira, ainda mal começada, que ao tempo se resumia à via hospitalar ou à académica, ou ambas.
A minha postura pessoal dalguma rejeição assentava, para além da carreira, no facto de achar – e a lógica, apesar de tudo o que depois se passou, continua a parecer-me presente – que seria apenas populismo enviar médicos inexperientes para zonas sem cuidados médicos organizados, em vez de criar verdadeiros hospitais periféricos, povoando-os com especialistas, e só depois lá colocar médicos em fase de aprendizagem. A isso se juntava o facto de, como a grande maioria dos colegas de Coimbra, já ter perdido um ano seis anos antes, aquando da greve estudantil de 1969. Achava, portanto, que se anunciava simplesmente outro ano de atraso!
Tudo foi discutido em reuniões gerais de médicos, cujas conclusões, votadas na assembleia, eram transmitidas ao Director Geral dos Hospitais pelos respectivos elementos da Comissão (concordassem ou não individualmente com elas…). Acabou por ser decidida a nossa ida, com o nosso acordo, e o que vou descrever diz respeito à Região Centro, uma vez que não houve disposições ministeriais que dessem uma forma e um conteúdo definidos ao trabalho a executar, e que permitissem avaliá-lo depois.
A escolha dos locais recaiu sobre as zonas “piores”, quer dizer, aquelas com maiores carências, e com mais dificuldades sanitárias, onde se pressupunha mais necessária a presença de médicos. Isto é, para além de periferia, escolhemos a extrema periferia. Não pelas vilas onde sediámos as equipas, mas pelo território envolvente e que seria o objectivo principal da nossa acção. Esse era o nosso projecto. À minha equipa, constituída por cinco rapazes e uma rapariga, calhou Castro Daire, terra onde, como diz o outro, fomos muito felizes, e fizemos amigos, entre eles os três médicos locais, os Drs. Zeca, Jorge e Júlio, agora já falecidos, e dos quais guardamos as melhores recordações pessoais. Ofereceram-nos mesmo um jantar festivo de despedida, nas termas do Carvalhal.
Ficámos a viver numa velha casa parcamente mobilada (se é que se pode dizer assim…), perto do Hospital da Misericórdia, o qual tinha ao lado o posto clínico das Caixas de Previdência, onde os médicos locais, com os quais não mantivemos contacto profissional, faziam umas consultas, para além de ocasionalmente internarem uns doentes no hospital. Aqui encontrámos um grupo de militares da dinamização cultural do MFA a pernoitar, os quais, elucidados por nós que precisaríamos das camas do hospital para deitar doentes, foram aboletar-se na prisão do Tribunal, felizmente na altura sem “hóspedes”. Brincávamos então entre nós dizendo que tínhamos começado por meter o MFA na cadeia!
Organizámos duas enfermarias, homens e mulheres, num total de 27 camas, com pessoal auxiliar da Misericórdia e quatro enfermeiros, uma da Misericórdia e mais três do “posto das Caixas”. Estes vieram voluntariamente trabalhar connosco, também eles entusiasmados com a novidade e com a obra que poderíamos todos juntos fazer, percebendo que seria muito mais do que tinham sido até aí chamados a fazer. Estabelecemos as consultas externas, diárias e com horário fixo, e as urgências, de 24 horas, todos os dias, incluindo fins de semana, sempre com médico e enfermeiro em presença física. Recebíamos doentes agudos e crónicos, e traumatizados de todos os tipos, enviando para Viseu só os que não conseguíamos estudar ou tratar em condições. Desbridamento de feridas, pensos, suturas, talas, gessos, passaram a ser a nossa rotina, com doentes internados pelos mais variados motivos, com visita médica diária e cuidados sempre que necessários. O nosso maior receio no início eram os partos, porque só um de nós queria ir – e foi – para Obstetrícia; por isso pedimos ao Director da Maternidade Bissaya Barreto, Dr. Vicente Souto, que nos desse umas lições eminentemente práticas, e tudo correu bem igualmente nessa matéria.
Pela relação de amizade que estabelecemos com outro jovem, o responsável administrativo do posto, conseguimos, mercê também do momento de agitação que se vivia no país, que o que fosse feito aos doentes beneficiários das Caixas de Previdência que vinham ao hospital, por doença natural ou por acidente, fosse imediatamente pago à Misericórdia, mas movimentando nós o dinheiro respectivo. Desse modo pudemos aplicá-lo no próprio hospital, em camas, janelas, cozinha, material de consumo e outro, mobiliário vário, medicamentos. Neste último campo usávamos muitas amostras, mas tudo o resto que fazíamos a esses doentes era pago, e dava para os que não pagavam nada. E o afluxo de pacientes foi crescendo de dia para dia. Depois do dinheiro que aplicámos no edifício e no seu recheio e gastámos com os doentes, deixámos 200 mil escudos na conta do hospital quando viemos embora!
Mas o objectivo principal era a extrema periferia, e por isso abrimos seis postos de consulta, um para cada um de nós, onde íamos uma vez por semana, excepto quando nevava de modo a interromper o caminho para lá, o que no meu posto de Monteiras aconteceu uma meia dúzia de vezes. No fim de semana ficava apenas um de serviço no hospital, e esse folgava na semana seguinte em Coimbra. No entanto, o “seu” posto não ficava sem consulta, e era um dos colegas que o ia sempre substituir. E também fazíamos visitas ao domicílio, às vezes num jeep com um dos militares do grupo lá destacado, um tenente veterinário que foi o único com quem convivemos e que se tornou nosso amigo. Tendo vivido toda a vida em ambiente citadino, foi para mim um choque encontrar pessoas para quem a falta de médico era apenas um pequeno pormenor, já que não tinham electricidade, água canalizada, sanitários, estradas asfaltadas. Foi para mim uma experiência marcante visitar essas pessoas como médico, ir às suas casas, comer com elas do que tinham (pão, chouriço, presunto, queijo, vinho, uma bela sopa cozinhada num pote de ferro na lareira…), numa mesa de madeira à luz dum candeeiro de petróleo, e que me ofereciam com gentileza, não como paga de nada mas em sinal de agradecimento pela minha presença ali com eles.
Alguma dessa gente esquecida esteve internada no hospital, e muitos outros foram vistos em consulta perto de suas casas. Foi um país a acordar para outro, e este a perceber que afinal queriam que ele vivesse. E a nossa ida contribuiu para estabelecer esse contacto, e dar esse sinal, ao mesmo tempo que estabelecemos uma rede de cuidados que mais tarde evoluiria para os cuidados de saúde primários. Pondo a funcionar também um hospital público, com atendimento contínuo de proximidade, resolvendo os problemas da maior parte dos que nos procuravam, localmente, com uma grande comodidade para eles e um enorme ganho de tempo, e desviando doentes de hospitais maiores e com mais recursos, que seriam excessivos. Foi sem dúvida nenhuma o primeiro passo para um Serviço Nacional de Saúde, que viria a ser criado no papel quatro anos depois e aperfeiçoado daí em diante.
Ao contrário do que eu pensava, foi possível fazer o caminho inverso, começar com pouco e ir progredindo, de baixo para cima, seguindo o modelo criado empiricamente. É que eu não contava com duas coisas: o estado paupérrimo em termos de cuidados de saúde básicos nos territórios do interior, em necessidade absoluta de ajuda, por um lado, e, por outro, o espírito entusiástico e empreendedor da juventude destacada durante alguns anos para fazer aquele serviço. Foi esse entusiasmo que nos manteve unidos, sem controlo ou vigilância de ninguém, empenhados afinal  em fazer aquilo que todos gostávamos de fazer: ser médicos. O trabalho de enfermaria, as consultas, os procedimentos na urgência, as visitas domiciliárias, faziam parte desse trabalho, a que não éramos realmente obrigados mas que víamos bem ser muito necessário por parte de quem nos rodeava. Foi muito gratificante sentir essa necessidade e sermos capazes de nos organizar de modo a satisfazê-la, da melhor maneira que nos foi possível. E foi sem dúvida um privilégio ter podido viver esse tempo, de aventura, ilusão e realização, em que crescemos como médicos e como pessoas. Às vezes perguntam-me se seria bom haver outra vez serviço médico à periferia, e eu respondo: “Não, já não faz falta. Agora o que é preciso é que o Serviço Nacional de Saúde continue, sem perder o entusiasmo que já teve...”.
In Número 16 da Newsletter da Cirurgia C, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões), CHUC