28.12.10

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS HOSPITAIS DE COIMBRA

Surgiu uma alínea à última hora no orçamento de Estado para 2011 sobre a criação dum novo centro hospitalar em Coimbra (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra), fundindo um hospital e dois centros hospitalares já existentes. E mais não se disse, deixando espaço para algumas reflexões, sobre o que existe e irá deixar de existir.
Coimbra é sem dúvida, no momento, uma referência na Saúde do nosso país, e isso deve-se não só à sua Faculdade de Medicina e às outras Escolas de algum modo ligadas à Saúde, mas também à existência de dois hospitais centrais e dois hospitais especializados, dois deles organizados em centros hospitalares, o Centro Hospitalar de Coimbra EPE (CHC) e o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra (CHPC). É esta concentração de meios que torna a nossa cidade o destino para muitos doentes, como para muitos profissionais que querem cá vir aprender e praticar, para depois levarem os conhecimentos aqui adquiridos para as suas terras, juntamente com uma ligação perene a esta cidade.
Poder-se-á dizer que Coimbra não tem população nem dimensão enquanto cidade para tantos meios de saúde, mas é precisamente isso que a transforma num centro de referência nessa área. O mesmo se passa com muitos grandes hospitais de renome mundial, localizados em cidades pequenas e com uma dimensão que excede larguissimamente as necessidades puramente locais. Na verdade, essas cidades vivem basicamente desses hospitais: só são conhecidas por albergarem a sua existência e a das escolas, laboratórios, institutos, residências, que os rodeiam, e a elas afluem doentes e profissionais de saúde de todo o mundo, dinamizando drasticamente a sua economia.
Os dois hospitais centrais, polivalentes, de Coimbra drenam, como fim de linha, toda a zona centro, cada um com uma área específica, e qualquer um deles é, além disso, procurado por doentes oriundos de todo o país. Em Inglaterra entende-se que deve haver um hospital central por cada milhão de habitantes (isto num país onde os doentes são primariamente vistos pelo seu médico e só excepcionalmente são dirigidos ao hospital, ao contrário do que se passa entre nós). A zona centro de Portugal tem dois milhões e oitocentos mil habitantes, portanto deveria ter três hospitais centrais. Mas por que razão devem estar dois sediados em Coimbra? Em primeiro lugar porque já cá estão, há 37 anos, a trabalhar em pleno e reconhecidos por todos. Depois, porque é muito vantajoso estarem concentrados numa cidade em redor da sua Faculdade de Medicina e das outras Escolas e de Institutos de Investigação, com que podem e devem colaborar, isto numa zona geográfica que tem pouco mais de 200 quilómetros. Seria profundamente errado dispersar estas instituições por várias cidades, destruindo o centro de referência que agora existe, sobretudo quando alguém defende, pelo contrário, a concentração de todos os nossos hospitais num único. Mais uma vez no meio é que está a virtude, como diz o povo.
E o povo também diz “grande nau, grande tormenta”, e acrescenta que “muita gente junta não se salva”. Que é o que se vai obter com a fusão anunciada. Inscrita num orçamento profundamente restritivo, só se pode compreender que vise o não gastar dinheiro. Reduzindo três hospitais a um, será falacioso dizer-se que é para aumentar a acessibilidade dos doentes: ela irá necessariamente reduzir-se, com aumento do número de doentes à espera de tratamento, acumulando-se em listas de espera cada vez maiores. Desse modo se pode poupar na Saúde, realmente, mas não é aceitável poupar não tratando doentes. A não ser assim, há que ter em conta o futuro, pois depois de desmantelados e fundidos os três hospitais não será fácil nem rápido recuperarem-se, sem deixar muitos doentes, de Coimbra, da zona centro e do país, de fora e à espera durante muito tempo.
Além de que a diversidade entre eles, e alguma competitividade existente, é fonte de progresso e de maior oferta para os doentes, ao invés do que se obtém com o monolitismo resultante do monopólio de pessoas e serviços.
Um aspecto positivo nessa reunião de hospitais seria a possibilidade de maior colaboração no ensino e na investigação do que aquela que já há. Seria útil poderem estar unidos pelo Serviço Nacional de Saúde, a que todos pertencem, e pela Faculdade de Medicina, como um centro hospitalar e universitário, tal como foi baptizado antes de existir. Mas fica-se com todas as dúvidas sobre esse possível aspecto, ao saber-se que a Faculdade de Medicina teve conhecimento da decisão como toda a gente mais, pela comunicação social.
Resta, portanto, a poupança pura e simples. Com as consequências já apontadas, mas sem ser evidente que se consiga poupar, feitas as contas à despesa enorme para fundir as três instituições, com tantas particularidades individuais de difícil compatibilização, num gigantesco hospital de difícil gestão e rentabilização, como já não há no mundo. E com o custo imenso de destruir o que levou dezenas de anos a construir. O hospital onde trabalho (CHC, Hospital dos Covões), sei eu que precisa é de mais tempo operatório e de consulta para dar vazão aos doentes que a ele acorrem, e acredito que nos HUC seja igual; mas mesmo que não fosse, quem se lembraria, perante um restaurante cheio e com gente à espera, fechá-lo só porque ao lado há um maior às moscas?! E acho que nem é esse o caso, repito. Os hospitais não se fazem dum momento para o outro, levam muitos anos a constituir-se, e por isso não se devem desfazer de ânimo leve, só por razões de última hora dum orçamento geral. É muito grande a responsabilidade de quem o fizer, e por muitos anos.
A redução de três hospitais de Coimbra (HUC, CHC, CHPC) para um (CHUC) visa com certeza a redução da despesa com a Saúde. Com custos facilmente previsíveis para a Saúde e para a cidade, e sem ser certo que se obtenha redução de despesa, antes pelo contrário. Aliás, à semelhança do que tem acontecido nos últimos anos com as medidas tomadas pelo governo nesta área. Dois mil milhões de euros de prejuízo acumulado depois, há que encarar este facto de frente. E fazê-lo encarar, procurando mudar o caminho seguido. Invertê-lo mesmo, antes que seja tarde demais.
Carlos Costa Almeida, in Diário de Coimbra e Diário As Beiras, 28/12/2010

1.12.10

A SAÚDE E O ALENTEJANO – ou uma história em dois capítulos

Capítulo I – A Saúde

Com o Serviço Nacional de Saúde e os Hospitais como eles eram há 6 ou 7 anos, e as Carreiras Médicas, Portugal estava colocado em 12º lugar no Mundo em termos de cuidados de saúde, 6º na Europa, país pobre ombreando com os ricos nesse aspecto. E gastando muito menos do que eles, 10% do PIB mas com a menor despesa per capita de todos os países da comunidade europeia.
Nesse contexto tínhamos uma medicina estruturada, com uma hierarquia técnica hospitalar bem estabelecida, base duma formação pós-graduada e contínua estimulada e continuamente avaliada, que levou a que médicos de reconhecida capacidade e ambição profissional se decidissem a deixar os grandes centros e os grandes hospitais para se dirigirem ao interior do país e nele produzirem todo o trabalho de que eram capazes. Bons hospitais, centrais e periféricos, com profissionais satisfeitos por lhes ser reconhecido o mérito profissional objectivado pelo trabalho produzido e as provas prestadas, escalonados pela competência demonstrada, assegurando nessas condições a gestão clínica dos seus Hospitais, Serviços e Unidades.
Nessa organização hospitalar assentava grandemente o próprio SNS, e ela permitia a prática, sustentada porque transmitida com naturalidade de geração médica em geração médica, duma medicina de qualidade, e que por isso mesmo ia saindo ao mais baixo custo.
“Esse” Serviço Nacional de Saúde foi sem dúvida a maior e melhor realização estatal e social do Portugal pós-25 de Abril, e colocou a Saúde fora da lista dos grandes problemas do País durante 3 décadas, com reconhecimento internacional desse facto, como aquelas classificações cabalmente demonstravam em 2002.
Mas de repente apareceu alguém clamando que não havia sustentabilidade financeira para esse modelo, que era preciso por isso modificar toda a estrutura hospitalar, vigiar o desperdício dos médicos, controlar a despesa que faziam. A gestão clínica feita era despesista, havia que a administrar do ponto de vista económico-financeiro, os médicos não tinham preparação para tal, daí os gastos, que nessa altura passaram a ser considerados insustentáveis.
A gestão administrativa tomou então conta dos hospitais, arredando do seu caminho a gestão clínica. Os médicos só não foram postos totalmente fora porque sempre faziam falta para o trabalho que justifica a existência dos hospitais. Mas a maneira encontrada de os afastar foi a sua desierarquização, foi o retirar dos lugares de responsabilidade e gestão os que a eles tinha chegado por capacidade demonstrada e provas dadas, e substitui-los por outros. Por muitos que nunca nos seus momentos de maior euforia haviam sonhado sequer em serem-lhes atribuídas funções de liderança e direcção. Que decisões, estratégias, opções se poderiam depois esperar? As melhores?! Muitos dos mais capazes e experientes ficaram saturados com isto, foram empurrados assim para a reforma antecipada ou para instituições privadas, ao mesmo tempo que apareciam nos hospitais-empresa contratos milionários – com as respectivas reformas mais tarde – sem qualquer razão aparente a não ser a arbitrariedade e o oportunismo.
As Carreiras Médicas foram feitas desaparecer, ficou um amontoado de médicos, donde são escolhidos os que chefiam e dirigem por critérios que não têm em muitos casos objectivamente nada a ver com a sua preparação, experiência ou conhecimentos, mas donde avulta a sua capacidade para concordar com o que lhes digam para concordar.
A desierarquização hospitalar chega a atingir foros de ridícula, e a ser motivo de riso amargo, quando se nomeiam directores ou chefes de equipa aqueles a quem ninguém se lembrará de recorrer em caso de complicações ou dificuldades. Mas sobretudo deixou de haver qualquer estruturação credível, no presente ou que se perspective no futuro, que garanta a qualidade, a formação profissional e a progressão de cada médico desde esse ponto de vista dentro destes hospitais EPE (que continuam a ser estatais). O que não tarda afectará também, inexoravelmente, a qualidade e o futuro dos internatos médicos.
Contrataram-se mãos-cheias de administradores e administradores-like, que gastaram balúrdios em gadgets administrativos e informáticos, desviando recursos que poderiam naturalmente ser usados na actividade clínica. Fecharam-se urgências, centros de saúde, centros de atendimento permanente, maternidades, hospitais, serviços hospitalares. Puseram-se os doentes a andar de ambulância dum lado para o outro. Fundiram-se hospitais, que é uma outra forma, disfarçada, de fechar alguns, reduzindo-se com isso o número de médicos, de enfermeiros e de doentes, mas criando necessidade de mais administradores, para encher essas novas enormes instituições hospitalares.
Portugal classificado em 27º na Saúde da Europa comunitária, e a descer. Depois de trinta e cinco anos, manifestações nas ruas de cidadãos descontentes, preocupados e temerosos pela sua saúde e dos seus filhos.
E o aspecto financeiro? Depois disto tudo, como está o aspecto financeiro do Serviço Nacional de Saúde? Com um prejuízo enorme e que não pára de crescer. Um défice que começa a ser paralisante de todo o sistema, levando a medidas restritivas e de poupança cada vez mais marcadas, isto apesar de quase 50% dos cuidados de saúde no nosso país já se calcular que sejam prestados agora por instituições privadas, que se multiplicam como cogumelos num terreno húmido. A par da falência técnica de muitos dos hospitais EPE, grandes responsáveis pelo descalabro das finanças da Saúde. E onde se reduzem equipas médicas abaixo do que é considerado aceitável em termos de segurança profissional e dos doentes, e da formação médica; onde começa a faltar material clínico e meios de diagnóstico e tratamento; onde se fecharam consultas e se dificulta o acesso aos doentes, empurrando-os duns hospitais para os outros, em nome duma apregoada rentabilização que soa fortemente a restrição, com acumulação de serviços cada vez mais longe dos pacientes. A que se junta a descomparticipação total em muitos medicamentos e a tentativa de obrigatoriedade de prescrever apenas os mais baratos, retirando aos médicos e aos doentes a possibilidade de escolha por outro critério.
Enfim, tudo o que sugere a real falta de sustentabilidade financeira do SNS. Que não é consequência do défice financeiro nacional, antes veio contribuir largamente para ele.

Capítulo II – O alentejano

Um alentejano chegou a casa ao fim da tarde e não encontrou a mulher. A casa estava toda desarrumada e por limpar, os filhos choravam com fome. Procurou comida para lhes dar, e para ele próprio, não havia nada preparado e a despensa estava vazia. Quis mudar a fralda ao filho mais novo, não havia fraldas, procurou uma camisa lavada para si próprio, estavam todas para lavar.
Durante duas horas esperou, tentando acalmar os filhos e o estômago, sem o conseguir, ansioso e preocupado. Finalmente a mulher chegou.
- Mulher, onde é que estiveste? A casa desarranjada, nada para comer, os filhos a chorar, um suplício, onde é que foste?! – perguntou-lhe ele com ansiedade.
- Homem, fui ao cabeleireiro, precisava de ir ao cabeleireiro sem falta.
- Mas pra quê? Pra que é que foste ao cabeleireiro? – interrogou o marido sofredor.
- Ora, pra ficar bonita, pois então!
- Mas então por que é que não ficaste?!...

C M Costa Almeida



7.11.10

Um problema financeiro, agora sim, e não só

Há cinco anos atrás Portugal tinha uma medicina estruturada, com uma hierarquia técnica hospitalar bem estabelecida pelas Carreiras Médicas, base duma formação pós-graduada e contínua estimulada e continuamente avaliada, que levou a que médicos de reconhecida capacidade e ambição profissional se decidissem a deixar os grandes centros e os grandes hospitais para se dirigirem ao interior do país e nele produzirem todo o trabalho de que eram capazes. Bons hospitais, centrais e periféricos, com profissionais satisfeitos por lhes ser reconhecido o mérito profissional objectivado pelo trabalho produzido e as provas prestadas, escalonados pela competência demonstrada, assegurando nessas condições a gestão clínica dos seus Hospitais, Serviços e Unidades.
Nessa organização hospitalar assentava grandemente o Serviço Nacional de Saúde, e ela permitia a prática, sustentada porque transmitida com naturalidade de geração médica em geração médica, duma medicina de qualidade, e que por isso mesmo ia saindo ao mais baixo custo.
Qualidade a baixo custo, é disso que se tratava. Portugal estava colocado em 12º lugar no Mundo em termos de cuidados de saúde, 6º na Europa, país pobre ombreando com os ricos nesse aspecto. E gastando muito menos do que eles, com a menor despesa per capita de todos os países da comunidade europeia. Foi “esse” SNS que colocou a Saúde fora da lista dos grandes problemas do País durante 3 décadas, com reconhecimento internacional desse facto, como aquelas classificações cabalmente demonstravam em 2002.
Mas de repente apareceu alguém clamando que não havia sustentabilidade financeira para esse modelo, que era preciso por isso modificar toda a estrutura hospitalar, vigiar o desperdício dos médicos, controlar a despesa que faziam. A gestão clínica feita era despesista, havia que a administrar do ponto de vista económico-financeiro, os médicos não tinham preparação para tal, daí os gastos, que nessa altura passaram a ser considerados insustentáveis.
A gestão administrativa tomou então conta dos hospitais, arredando do seu caminho a gestão clínica. Os médicos só não foram postos totalmente fora porque sempre faziam falta para o trabalho que justifica a existência dos hospitais. Mas a maneira encontrada de os afastar foi a sua desierarquização, foi o retirar dos lugares de responsabilidade e gestão os que a eles tinha chegado por capacidade demonstrada e provas dadas, e substitui-los por outros. Por muitos que nunca nos seus momentos de maior euforia haviam sonhado sequer em serem-lhes atribuídas funções de liderança e direcção. Que decisões, estratégias, opções se poderiam depois esperar? As melhores?! Muitos dos mais capazes e experientes ficaram saturados com isto, foram empurrados assim para a reforma antecipada ou para instituições privadas, ao mesmo tempo que apareciam nos hospitais-empresa contratos milionários – com as respectivas reformas mais tarde – sem qualquer razão aparente a não ser a arbitrariedade e o oportunismo.
As Carreiras Médicas foram feitas desaparecer, ficou um amontoado de médicos, donde são escolhidos os que chefiam e dirigem por critérios que não têm em muitos casos objectivamente nada a ver com a sua preparação, experiência ou conhecimentos, mas donde avulta a sua capacidade para concordar com o que lhes digam para concordar.
A desierarquização hospitalar chega a atingir foros de ridícula, e a ser motivo de riso amargo, quando se nomeiam directores ou chefes de equipa aqueles a quem ninguém se lembrará de recorrer em caso de complicações ou dificuldades. Mas sobretudo deixou de haver qualquer estruturação credível, no presente ou que se perspective no futuro, que garanta a qualidade, a formação profissional e a progressão de cada médico desde esse ponto de vista dentro destes hospitais EPE (que continuam a ser estatais). O que não tarda afectará também, inexoravelmente, a qualidade e o futuro dos internatos médicos.
Contrataram-se mãos-cheias de administradores e administradores-like, que gastaram balúrdios em gadgets administrativos e informáticos, desviando recursos que, sendo o dinheiro pouco, deveriam naturalmente ser usados na actividade clínica. Fecharam-se urgências, centros de saúde, centros de atendimento permanente, maternidades, hospitais, serviços hospitalares. Puseram-se os doentes a andar de ambulância dum lado para o outro. Fundiram-se hospitais, que é uma outra forma, disfarçada, de fechar alguns, reduzindo-se com isso o número de médicos, de enfermeiros e de doentes, mas criando necessidade de mais administradores, para encher essas novas enormes e perras instituições hospitalares (que já não se usam, aliás, em parte nenhuma do mundo evoluído).
Portugal caiu para 27º em termos de Saúde na Europa comunitária, sobretudo pela crescente dificuldade que os cidadãos têm de aceder aos cuidados e, pouco a pouco, de os pagar. Nos Estados Unidos da América foi feito um esforço semelhante: quanto mais dificuldade for posta no acesso dos doentes ao médico, seja por taxas moderadoras, seja pela distância, seja pelas listas de espera criadas pela concentração de meios técnicos de diagnóstico e de tratamento em exclusivo nalguns locais, menos se gasta com a Saúde, porque menos doentes globalmente se irão tratar. Os nossos doentes começam a sentir isso, e depois de 35 anos vão surgindo um pouco por todo o lado manifestações nas ruas de cidadãos descontentes, preocupados e temerosos pela sua saúde e dos seus filhos.
E o aspecto financeiro? Depois disto tudo, como está o aspecto financeiro do Serviço Nacional de Saúde? Com um prejuízo enorme e que não pára de crescer, nuns galopantes 40% ao ano. Um défice que começa a ser paralisante de todo o sistema, levando a medidas restritivas e de poupança cada vez mais marcadas, apesar de quase 50% dos cuidados de saúde no nosso país já se calcular que sejam prestados agora por instituições privadas, que se multiplicam como cogumelos num terreno húmido. A par da falência técnica de muitos dos hospitais EPE, grandes responsáveis pelo descalabro das finanças da Saúde. E onde se reduzem equipas médicas abaixo do que é considerado aceitável em termos de segurança profissional e dos doentes, e da formação médica; onde começa a faltar material clínico e meios de diagnóstico e tratamento; onde se fecharam consultas e se dificulta o acesso aos doentes, empurrando-os duns hospitais para os outros, em nome duma apregoada rentabilização que soa fortemente a restrição, com acumulação de serviços cada vez mais longe dos pacientes. A que se junta a descomparticipação total em muitos medicamentos e a tentativa de obrigatoriedade de prescrever apenas os mais baratos, retirando aos médicos e aos doentes a possibilidade de escolha por outro critério.
Enfim, tudo o que sugere uma real falta de sustentabilidade financeira do SNS, agora sim. Que não é consequência do défice financeiro nacional, antes veio contribuir largamente para ele.
Os números que citamos são oficiais, não há como fugir deles, há é que perceber que algo correu mal e parar para pensar. Não fugir para a frente, com medidas que se começam a revelar pouco menos que desesperadas. Até porque o que realmente é insustentável é a situação criada nos Hospitais, sem hierarquização técnica credível, vivendo do que resta da que houve durante 35 anos. O dinheiro em falta ainda se pode ir pedindo emprestado a juros, mas a formação de médicos hospitalares competentes leva muito tempo e tem que assentar numa estrutura interna estável e capaz. Que agora está em vias de extinção. E depois?
C. Costa Almeida


16.6.10

DESPERDÍCIOS

Ouve-se dizer que na Saúde há 15 a 20 % de desperdício. Não sei como chegaram a esse número, e queira Deus que ele não se venha a revelar como outros que por aí circularam como verdadeiros e absolutos, que até levaram a decisões políticas, tais como o número de médicos no País e o número de habitantes por médico, e que afinal parece que não eram bem assim… Mas também não interessa muito. Em Portugal não interessa todo aquele rigor matemático que, aliás, habitualmente se começa logo por pôr em causa (saber de experiência feito…), como eu próprio agora fiz. Acredito que haja desperdício, pronto.
Mas de que desperdício estamos a falar? Os americanos são conhecidos por fazerem contas: calcularam eles que 40% do orçamento da Saúde nos EUA vai unicamente para o sector administrativo e não para tratar doentes. E que esse gasto financeiro se traduz sobretudo em tentar impedir os médicos de gastarem dinheiro com os doentes. Nos Estados Unidos da América; e em Portugal ?
Sendo desejável que os médicos gastem com os doentes apenas o que for necessário e não mais nem menos, não parece que seja o pessoal administrativo que pode conseguir esse objectivo. Por isso na América se considera aquela sobrecarga financeira como um desperdício.
Em Portugal, os hospitais passaram a estar sob a tutela da gestão administrativa, sobrepondo-se esta em absoluto à clínica. Foram, por isso, invadidos por multidões de administradores e administradores-like, o que, obviamente, veio onerar significativamente o seu funcionamento, não só pelos vencimentos-base e horas extraordinárias destes (o que não será despiciendo), mas também por toda a sua actividade. Como a função do hospital continua a ser tratar doentes, tudo o que for para além disso poderá ser considerado um desperdício em época de aperto financeiro. A poupar, que se poupe no farelo, deixando ficar a farinha.
Em França, na primeira linha de reacção às dificuldades económicas do momento estiveram cortes em pessoal administrativo nos hospitais. Em médicos e enfermeiros não se mexeu.
A modificação introduzida na gestão hospitalar teve como objectivo declarado a redução dos custos com a Saúde, que na altura se considerava estarem a tornar-se incomportáveis. Pois bem, ao fim de alguns anos da nova gestão, com aumentos de prejuízo de 40% ao ano, com 39 milhões de euros de despesa a mais do previsto só no primeiro trimestre deste ano, como a poderemos classificar? Só duma maneira: fracasso.
Fracasso económico, com certeza. Mas mais do que isso, e pior do que isso: fracasso no funcionamento dos hospitais sob vários aspectos, em que avulta a incapacidade de gestão da qualidade clínica, do seu fomento concertado e sustentado e a sua avaliação contínua.
E este é o fracasso maior, sem dúvida. E que ocasiona, e vai ocasionar, mais desperdício. Porque a medicina mais barata é a boa medicina, e essa só se consegue com bons médicos, não com vigilantes administrativos. Não se consegue recusando adquirir os melhores medicamentos porque são caros, nem impedindo os médicos ou os enfermeiros de trabalhar porque não se lhes quer pagar trabalho extraordinário, ou desperdiçando balúrdios na instalação de métodos electrónicos de registo de assiduidade (porque o papel é antigo, e os administrativos modernos fazem tudo no computador, sem papel), que vai acima de tudo limitar a actividade clínica a um espaço temporal. Bom, se calhar um objectivo colateral será precisamente este: menos trabalho médico, menos despesa com doentes…
A desestruturação que a implementação da nova era de gestão produziu nos hospitais, juntamente com a saída em massa dos mais velhos e mais graduados, perturbou seriamente o seu funcionamento clínico, e a formação contínua dos profissionais médicos, sem estarem instalados, ou sequer previstos, mecanismos intra-hospitalares que possam a breve trecho recuperar o equilíbrio perdido. Nesse aspecto, a situação configura muito um beco sem saída.
Médicos contratados (às vezes a peso de ouro) à peça, à hora, ao banco, ao serviço, à função, não são com certeza garantia de qualidade, se não forçosamente individual, seguramente institucional. Medicina, por isso, baseada em maior número de exames auxiliares de diagnóstico, muitos deles repetidos inutilmente, maior permanência dos doentes no hospital à espera duma solução, passando de médico para médico, quando nem a triagem inicial para a especialidade adequada é muitas vezes correctamente feita. Quer dizer, muito maior despesa. Desperdício em relação ao que poderia, e deveria, ser. E já foi.
Toda a modificação que levou a isto teve autores. Não são muitos, são apenas alguns, sempre os mesmos, e são eles os verdadeiros responsáveis por grande parte destes desperdícios. Alguns deles continuam a falar, a tentar explicar o que correu mal, a culpa não foi deles, a culpa é de todos os outros. E então aparecem as inevitáveis soluções das outras empresas “à portuguesa”: quando a empresa está mal despedem-se empregados, deixa de se pagar o ordenado aos outros e limitam-se-lhes as horas de trabalho (para reduzir horas extraordinárias), não se compra matéria prima para poupar dinheiro, fecham-se instalações, aliena-se património da empresa… e, finalmente, abre-se a falência que desse modo se tornou inevitável.
Encerram-se centros de saúde, urgências, serviços hospitalares, consultas, hospitais, limita-se o trabalho extraordinário e de prevenção, dificulta-se o tratamento de algumas patologias, reduz-se o tratamento doutras a poucos centros, eliminando todos os outros, mandam-se doentes para Espanha. E os verdadeiros problemas, que foram criados e que levaram a esta despesa imensa com resultados de tal modo problemáticos e sem futuro, ficam por discutir. Porque quem os criou, ou apoiou a sua criação, continua a falar e a ser ouvido. Isso é que se calhar é outro desperdício. Será altura de quem de direito reconhecer o que foi mal feito e partir para outra, com outros projectos e outros intervenientes, deixando de ouvir uns e passando a ouvir outros, sobretudo os que de há muito vêm apontando o que agora se tornou por demais evidente.
C. Costa Almeida, in Semana Médica

SÓ POR BRINCADEIRA

O prejuízo com a Saúde EPE já é gigantesco, e a aumentar a uns vertiginosos 40% ao ano, segundo dados oficiais.
É um facto incontornável e preocupante, com certeza. Mas eis senão quando, face a esse descalabro financeiro, a Senhora Ministra da Saúde vem dizer que já estão a ser tomadas as medidas correctoras: que já foram dadas indicações aos hospitais para reduzirem as horas extraordinárias. E esta, hein?!... Só por brincadeira!
Então a culpa, afinal, é de quem trabalha, e sobretudo de quem trabalha fora de horas, e para além do que devia trabalhar! Porque a noção de horas extraordinárias é essa, e quem as ganha é porque trabalhou para além do tempo a que contratualmente estava obrigado. Os médicos ganharam porque viram doentes, porque os estudaram, os trataram, enfim, desempenharam o papel que é a razão de ser dos hospitais. Mesmo dos hospitais-empresa. E agora a culpa do prejuízo imenso dessas “empresas” é deles, por trabalharem! Só por brincadeira mesmo.
Mas, se virmos bem, não se descortina razão por que as empresas-hospital haveriam de ser excepção na empresarialização típica da nossa terra. Quer dizer, os maus resultados da gestão nunca são culpa de quem geriu, são sempre externos à administração, sempre culpa da crise, dos mercados, dos trabalhadores, seja do que for. Isto se as coisas correrem mal, porque se tudo correr bem, ou menos mal, é evidente que há motivo para bónus aos administradores. Quando o prejuízo é grande, e mantido, e faz agigantar a sombra da falência, então começa-se invariavelmente por “emagrecer” a empresa despedindo funcionários, deixa-se de lhes pagar ordenado, diminui-se a despesa que fazem reduzindo a sua actividade produtiva… É o costume entre nós e, se o resultado for também o habitual, isso não vai impedir a falência. A não ser que o Estado intervenha com algum subsídio, ou com a nacionalização…
Mas concentremo-nos na Saúde, que é o nosso negócio. A reforma introduzida na gestão dos hospitais, centrando-a no sector administrativo e dando a este a primazia absoluta, teve como justificação a necessidade de se reduzirem drasticamente os custos do SNS, com vista à sua sustentabilidade financeira. É evidente que só uma palavra traduz o resultado obtido: fracasso.
E fracasso tanto maior porque à despesa, crescente de ano para ano, se juntou a destruição duma estrutura intra-hospitalar que era fulcral na formação contínua e na avaliação dessa formação, que estimulava os melhores a mostrar que o eram e os outros a procurar sê-lo, e que era um poderoso atractivo para a vida hospitalar. Desestruturados os hospitais do ponto de vista clínico, com hierarquizações de ocasião, com a gestão clínica subalternizada, compreende-se que a boa medicina – aquela que fica barata e é eficaz – lá seja praticada apenas ocasionalmente. E isso sai caro.
Desaparecida a atracção duma carreira hospitalar, as contratações são feitas por quem dá mais, a termo indefinido ou à peça, à hora, ao dia, ao banco ou ao mês, sem controlo de qualidade, tratadas directamente com os interessados ou através de agências de emprego cujo interesse é, naturalmente, o lucro. Isto encarece o produto utilizado, que começa a não ter selo de garantia, vindo das mais variadas proveniências, nacionais e estrangeiras.
Uma antiga ministra da Saúde socialista diz que a empresarialização dos hospitais não teve por objectivo baixar os custos, que já se previa que desse modo subiriam, mas sim tornar as contas da Saúde sustentáveis no papel, desorçamentando contabilisticamente muitas das despesas. Ora toda esta multidão de contratos profissionais de ocasião, uns renováveis automaticamente, outros renegociados de vez em quando, que acarretam no seu conjunto muito maior despesa, têm a virtude de não se enquadrar obrigatoriamente na rubrica dos vencimentos, e isso é importante para os administrativos. Para poderem apresentar as variações que acharem melhor nos relatórios de gestão intercalares e finais, nos balancetes e gráficos, nisso tudo. Mas que sai caro, sai.
Horas extraordinárias são, pois, uma preocupação do passado. Façam-se contratualizações específicas, comprando mais uns serviços médicos, enquadrados entre rabanetes e couves de Bruxelas para a cozinha, e a coisa reduz-se logo.
Os americanos constataram que 40% do dinheiro gasto na Saúde é para os administrativos, não para os doentes e para quem trata deles. Nós por cá não sabemos ao certo, mas vemos a imensidade de administradores que inundou os nossos hospitais, toda a burocracia crescente que suporta e caracteriza essa classe, dominante na vida hospitalar, o balúrdio que se gasta, por exemplo, no sistema electrónico de controlo de assiduidade dos médicos (originalidade que não conheço em nenhum hospital de nenhum país da Europa Comunitária), com o trabalho e despesa que dá a permanente justificação das desconformidades dos que ainda insistem em querer tratar doentes sem se preocuparem com horários, e imaginamos uma percentagem ainda maior.
A despesa nos hospitais não pára de crescer, e só por brincadeira é que as horas extraordinárias que ainda se pagam desempenham aí algum papel. Mas pior do que isso é o vazio de organização estrutural dos hospitais EPE em termos de formação e de avaliação do seu resultado. Os internatos vão-se mantendo, mas estão dependentes da qualidade dos formadores, de momento ainda assegurada pela vis a tergo das carreiras médicas extintas (restam uns concursos residuais, sem repercussão nos próprios hospitais e na sua actividade), mas em perigo iminente dado o esvaziamento dos hospitais públicos em termos de médicos com provas dadas e qualidade assegurada. Qual a avaliação de qualidade no futuro? Este é que é o grande problema, maior ainda que o económico-financeiro.
Carreiras médicas não podem coexistir com gestão EPE, isso é claro. Mas temos de saber quem faz o quê, e com que qualidade. Este ponto fulcral parece o verdadeiro beco sem saída desta nova gestão. Que se preocupa mais com horas extraordinárias, com a maneira de não as pagar ou de as escamotear, e muito menos com a qualidade presente e, sobretudo, futura. E isto não é brincadeira.
Os lugares directivos podem ser de nomeação política, mas a qualidade não se conquista por decreto. Serviços idóneos para formação pós-graduada, centros de referência para algumas patologias, centros de elevada diferenciação, tudo está dependente da definição de qualidade. E como é esta avaliada e, mais importante ainda, obtida, sem uma estruturação definida para a atingir, como acontece agora? Será que se pretende que o “achismo” aqui triunfe também? Haverá quem anseie por isso, mas seria enganarmo-nos a nós próprios, enquanto médicos e enquanto doentes que podemos ser todos. Iremos simplesmente estabelecer que quem sabe fazer uma só coisa e a faz à exaustão é que é forçosamente bom? Ainda por cima numa situação empresarial que aconselha à flexibilização dentro dos empregos, à versatilidade dos trabalhadores, numa adaptação a funções variadas de modo a tornarem-se mais rentáveis? Ou será que iremos ter de, finalmente, avaliar os resultados de todos? E teremos para tal engenho e arte, e dinheiro? A verdade é que algo terá de ser feito.
É um futuro incerto o que nos espera, neste tempo de fim de época civilizacional que vivemos. Na Saúde quis-se mudar o que durante dezenas de anos funcionou bem; agora há que encarar a situação e encontrar uma nova solução, assumindo o que foi mal feito. Sem brincadeiras.
C. Costa Almeida, in Rev Port Cirurgia

21.5.10

DESFAÇATEZ

Políticos, sucateiros, juízes, magistrados, banqueiros, gestores, a cada passo aparecem nas bocas do mundo e nas páginas dos jornais como suspeitos de algum modo de corrupção. É de tal maneira que já se começa a falar duma sul-americanização nacional nesse campo (se é que aquela zona do mundo tem realmente proveito nessa área, para além da fama).
A ideia duma corrupção latente instalou-se, parece encontrarem-se sinais dela a cada momento, muito fumo deixando entrever fogo aqui e acolá. São cronicamente políticos, associados ou não a sucateiros, juízes e magistrados, gestores de empresas públicas e de bancos, quem tem estado em evidência nesta matéria, nos vários casos expostos ou aventados pela comunicação social. Pois bem, entendeu a Assembleia da República, e bem (depois, aliás, duma primeira tentativa nesse sentido gorada há anos, com afastamento até do seu principal proponente), criar um pacote legislativo anti-corrupção. Medida de topo programada para esse pacote, e largamente anunciada nas primeiras páginas dos jornais e noticiários: separar a medicina pública da privada. E esta, hein?! É preciso desfaçatez!
Fala-se de políticos que traficam influências a troco de alegadas vantagens materiais. De construções e autorizações estatais e municipais de legalidade pelo menos discutível e pouco clara. Do que se passa nos tribunais e na instrução dos processos. E no modo inacreditável como alguns advogados sofrem na própria pele a sua aplicação com sucesso na defesa dos interesses dos seus clientes, o que pode limitar severamente o exercício da advocacia e o direito à defesa dos cidadãos, face aos tribunais. Nas falências de bancos pagas pelo Estado, com milhões a flutuar off-shore, e os pequenos depositantes a lastimar-se da perda das suas poupanças. De negociatas e mais negociatas envolvendo detentores de cargos públicos. De situações que não configuram propriamente corrupção mas que são gritantes, como a de gestores públicos a receber milhões como bónus por terem cumprido aquilo a que se tinham proposto (em vez de serem afastados se não o cumprissem). Ou de apelidados “gestores” nomeados pelo poder político para conselhos de administração, pagos principescamente, apenas para lá estar. Etc., etc. É voz corrente. Tema de conversa diária. É altura de se fazer alguma coisa. E vai-se fazer: separar a medicina pública da privada…
As alterações introduzidas na gestão da Saúde nos últimos anos criaram tantos problemas, alguns deles têm ficado tão caro ao país e comprometido tanto o futuro, que o que menos precisamos agora é que se venha sobrecarregar tudo isso com a ideia de corrupção. Isto é, que a Saúde está a funcionar mal e a esvaziar o erário público, sem qualquer mais-valia, por uma suposta corrupção! Haja Deus!
Não só é, intencionalmente ou não, desviar a atenção dos verdadeiros problemas, quer da corrupção generalizada quer da má gestão da Saúde, como é profundamente injusto. Para com uma área que, com toda a desestruturação que sofreu e que não se dá mostras de vontade, ou capacidade, de corrigir, e pese embora o plano inclinado em que foi colocada e que cegamente se mantém, continua a desempenhar as suas funções melhor do que a maioria do resto das actividades a cargo do Estado. E em que os seus gestores nomeados, independentemente da sua competência ou falta dela, ou dos resultados que obtenham, não recebem milhões de euros de bónus! Basta-lhes permanecer nos lugares quer cumpram os objectivos quer não.
A relação entre medicina pública e privada é um tema abordado recorrentemente, até porque poderá ser sempre encarado sob diversos prismas, alguns totalmente antagónicos. A verdade é que, ao permitir conjugar as duas coisas, se tem conseguido ter médicos de elevadíssima diferenciação e qualidade a trabalhar nos hospitais públicos ganhando cerca de 2000 euros por mês (19 euros à hora). E é com isso que se reformam, menos os descontos, depois duma vida de trabalho. E falamos dos médicos no topo da sua carreira, que outros que não tenham obtido essas vagas, mas de idêntica qualidade, nem isso ganham.
Os médicos sempre aceitaram receber uma miséria do Estado por terem a possibilidade de trabalhar mais, fora, complementando assim, com trabalho, o exíguo salário estatal. Podem ganhar muito se trabalharem muito. E falamos de técnicos altamente especializados, com exigência duma preparação contínua e sujeita a um escrutínio constante. A maior vantagem que têm em continuar a trabalhar em hospitais públicos é, precisamente, pelo seu desejo de aperfeiçoamento, de trocarem impressões entre eles, de pertencerem a uma equipa diferenciada, e assim poderem obter maior satisfação profissional. Quem não entenda isso, quem tenha um espírito de funcionário manga de alpaca, dificilmente compreende por que razão um técnico desses se contenta com aquelas migalhas ao fim do mês... E não perceberá também que, sendo a formação médica pós-graduada feita sobretudo no público e exercida em todos os tipos de instituições de saúde, a comunhão e a translocação de conhecimentos e experiências entre as duas áreas, pública e privada, é sem dúvida benéfica para todas as classes de doentes, e para a medicina em geral.
Recorrentemente também, fala-se de promiscuidade entre público e privado. Mas é curioso se se falar disso agora, com a gestão empresarializada declaradamente a apostar em contratar privados para trabalhar nos hospitais públicos ou desempenhar funções que a estes pertenceriam, reduzindo os seus próprios meios. Aí, a promiscuidade passa por ceder ao lucro de particulares aquilo que poderia, e deveria, ser feito por instituições estatais não lucrativas. Isto para além das chamadas parcerias público-privado: quer-se uma promiscuidade mais declarada? Dirão que se houver regras rígidas e claras não há problema: concordo, mas para o exercício da medicina também, por que não? Com as vantagens atrás apontadas.
Até porque não se demonstrou de modo nenhum que da exclusividade médica criada a troco de maior pagamento tenha resultado algo de positivo. Nunca foi mostrado que quem trabalha só no hospital, sem acesso aos doentes fora dele, o faça de maneira mais empenhada e mais produtiva que quem trabalha dentro e fora. Tal situação criou foi uma medicina a dois pagamentos, não a duas velocidades. Com os inconvenientes e as injustiças conhecidos, já meio esquecidos mas sempre latentes e fracturantes, sobretudo ao aproximar-se a reforma.
Ainda recorrentemente, temos dito que os erros cometidos devem ser identificados e tem de haver a coragem para os corrigir na sua origem. Procurar justificações paralelas, à boleia de acidentes de percurso que nem tenham até nada que ver com a Saúde, é uma pura fuga para a frente, acelerando a descida pelo plano inclinado. Se neste momento se insistir na separação entre público e privado, ir-se-á aumentar a sangria do público, com saída de muitos dos mais experientes que por lá ainda se vão mantendo. Ou então o Estado terá de passar a pagar directamente em competição com o privado, já que a possibilidade de ascensão no hospital dentro duma carreira médica (poderoso factor de atracção hospitalar) desapareceu nos hospitais EPE.
Mas e se o objectivo for, precisamente, esvaziar ainda mais de médicos os hospitais públicos? Para fazer contrato com os privados. Essa não será com certeza a melhor maneira de manter a qualidade mínima do SNS, nem de lhe reduzir o prejuízo imenso e a aumentar a cada ano que passa. Nem se coaduna com o facto de se andarem a importar médicos por grosso para o público, dos países mais inesperados.
C. Costa Almeida, in Tempo Medicina

12.1.10

OUVINDO

Ouvimos a Senhora Ministra da Saúde dizer que tem ouvido as “organizações mais representativas da classe médica” nalgumas das decisões tomadas. Ficámos contentes, é importante que quem tem de decidir queira e saiba ouvir aqueles que conhecem o assunto em causa, sobretudo os que nele trabalham diariamente há muitos anos, que o vivem por dentro no seu dia a dia, que dele fazem parte integrante e incontornável. No caso da Saúde, os Médicos, sem dúvida.
Mas ficámos baralhados com o superlativo usado. É claro que não poderá falar com todos os colegas – sendo médica – e tenha por isso de recorrer às organizações representativas da classe para recolher uma opinião que traduza a da maioria, mas quais são “as mais representativas”? A Ordem deverá ser uma delas, com certeza, mas uma dúvida nos atormenta: seria? Pelo que tem vindo a lume, não temos a certeza. Mas admitamos que sim, pelo menos em parte das decisões.
Uma coisa são as organizações que por lei têm de ser ouvidas, outra as organizações que existem e que representam o sentir da classe e traduzem as suas opiniões. E que por isso devem ser ouvidas também. Interessante, esta subtil diferença semântica na nossa língua entre “ter de” e “dever”.
“Mais representativas” porquê? Por lei? Por maior número de associados? Pela melhor qualidade intelectual ou técnica dos seus associados, ou porque estes têm mais conhecimentos e maior vivência profissional? Porque lidam com mais doentes e conhecem melhor os problemas intrínsecos dos hospitais? Porquê?
Sem discutir que os que tenham de ser ouvidos o sejam, a verdade é que surpreende, por exemplo, que em assuntos envolvendo as carreiras médicas hospitalares a Associação, precisamente, dos Médicos de Carreira Hospitalar não seja tida nem achada. Quer dizer, não tenha sido ouvida, apesar de compreender vários milhares de associados e se focar sobretudo na área em discussão. E seja, sem dúvida, a “organização representativa da classe” que mais se tem batido pelas carreiras médicas hospitalares, postas em perigo de extinção. Preocupação vivida e traduzida intensamente por nós e que, finalmente, foi corporizada agora por um ministro da saúde, médico (por acaso… ou talvez não).
A verdade é que a Ministra da Saúde ouve quem quiser. Temos de aceitar isso. Tem essa prerrogativa, como também tem a responsabilidade de decidir e pelo que for decidido. Neste aspecto, quando muito, poderá invocar solidariamente a daqueles que ouviu.
Ouvimos a Senhora Ministra reconhecer que os hospitais-empresas têm vindo a ser abandonados pelos médicos mais velhos e experientes, com as consequências negativas que daí advêm para a formação dos mais jovens. E que é preciso fazer alguma coisa para suster e, se possível, reverter essa situação. Nós já há muito que vimos sistematicamente dizendo o mesmo, com o acordo de quase todos os colegas e sem, aparentemente, sermos ouvidos pelos decisores políticos.
Mas esta realidade teve uma origem, não surgiu do nada, e isso também nós temos vindo a dizer. Ela derivou das alterações administrativas que geraram os hospitais EPE, e sobretudo da maneira como foram aplicadas no terreno: levaram a uma desierarquização hospitalar generalizada e sistemática, com a desestruturação dos Serviços, e foram estas que “empurraram” os mais graduados para fora desses hospitais públicos.
Não foram só “mais velhos e experientes” que saíram: foram formadores. Já era de prever, e dissemo-lo repetidamente. Ter os mais graduados e competentes a trabalhar chefiados pelos outros, não tem futuro; e foi ao que levou o ignorar as carreiras médicas dentro dos hospitais.
Na verdade os hospitais EPE, na exacta medida em que foram planeados e estão a ser geridos, são incompatíveis com as carreiras médicas hospitalares. Como o Ministério da Saúde parece ter percebido agora que essas carreiras são uma mais-valia, criou umas novas, mas fora dos hospitais, é claro. Só podia ser. Foi uma maneira de ter as duas coisas: umas carreiras médicas, exteriores aos hospitais e que dão uns diplomas, e os hospitais-empresas, onde esses diplomas terão a repercussão que as respectivas administra-ções quiserem. E nas quotas que entenderem. Preenchidas pelos mesmos critérios com que agora preenchem tudo: político-administrativos. Que é o que na realidade torna carreiras e hospitais EPE verdadeiramente incompatíveis.
Mas há uma tentativa de coarctar, pelo menos quantitativamente, a discricionariedade das administrações EPE: o contrato colectivo de trabalho, negociado pelos sindicatos, como é natural, e só válido para quem neles estiver inscrito. A interface legal entre as novas carreiras hospitalares e os hospitais parece, assim, vir a ser esse acordo, o que levanta desde logo algumas dúvidas. Para entrar nas carreiras médicas tem de se estar inscrito num sindicato? Quer dizer, para ocupar uma categoria num hospital tem de se estar incluído no contrato colectivo de trabalho? E quem tiver um contrato individual? E quem tiver um contrato colectivo e depois sair do sindicato que o subscreveu? A carreira médica hospitalar implica pagar para a Ordem e pagar para um sindicato?
Todos estes problemas – de que se fala aqui muito superficialmente porque não se sabe na realidade o que está a ser discutido, e entre quem – só surgiram porque houve uma mudança administrativa que não os previu. Se tivessem sido atempadamente previstos, teriam levado por certo a uma reforma administrativa que não esta que foi feita, nem da forma como o foi. Antes dela não havia problemas significativos ou insolúveis na estruturação clínica dos hospitais, na progressão por conhecimentos, experiência e provas dadas, nas chefias qualificadas, na formação pós-graduada, na qualidade da medicina praticada, e eles surgiram. Há que combater a causa, não tentar atamancar as consequências, no que é apenas uma fuga para a frente. Para tentar manter, afinal, uma mudança que este ano deu mil e quinhentos milhões de euros de prejuízo, mais 30% ainda que no ano passado… E insiste-se!
Os próprios administradores estão, agora, preocupados. Pelo desastre financeiro, e porque eventualmente começaram a perceber que os médicos têm um papel capital também nos resultados económico-financeiros das instituições. É que é a boa medicina que fica mais barata, os bons resultados clínicos pagam. Pagam directamente, para além de deixarem os “clientes” satisfeitos e os profissionais mais realizados e com mais entusiasmo para trabalharem mais e melhor no seu hospital.
Por isso apostar-se – como temos ouvido dizer – na quantidade dos médicos existentes, sem se assegurar a qualidade da sua formação, pode ser mais um erro trágico, com maus resultados e de muito difícil correcção, mesmo a longo prazo. Aumentar o número para, pelas leis do mercado, diminuir o pagamento a cada um, é um cálculo primário, só possível para quem não quiser ouvir que um número excessivo de médicos, muitos deles formados à pressa (pode-se dizer doutra maneira, com os novos cursos de medicina que se anunciam?...), conduzirá forçosamente a muitos mal preparados, com as consequências negativas previsíveis para a saúde nacional e para o seu custo, este a aumentar com a qualidade daquela a baixar. Agravando mais ainda o que já acontece agora, aliás.
Carlos Costa Almeida, in TM