27.2.07

2006 – UM ANO PREOCUPANTE PARA A SAÚDE

2006 foi um ano preocupante no nosso país, em variadíssimos aspectos mas sobretudo na saúde. Nesta matéria o governo mostrou uma vontade obsessiva de poupar dinheiro, reduzindo, aglutinando, encerrando, extinguindo, e nessa onda foram urgências, serviços, instituições, chegando ao ponto de se enviarem pacientes para receber cuidados de saúde do outro lado da fronteira, numa antevisão duma grande Ibéria com gestão em Madrid e ministro da Saúde espanhol. Numa sucessão de medidas, umas tomadas outras apenas anunciadas, mas que pareceram desgarradas, sem delas se perceber uma nova ordem estruturada, a imagem que esteve sempre latente foi de “destruição”. O objectivo parece ser não só o diminuir despesas a todo o custo, mas também alijar responsabilidades e compromissos para o sector privado, propriamente dito ou criado artificialmente pelo próprio Estado – empresas com dinheiros públicos geridas como se privadas fossem, só que sem o risco de falirem realmente. Se isso acontecer, voltam a ser públicas, ouve-se dizer.
O sector privado da saúde aproveitou a abertura, e a grande possibilidade de negócio - negada em larga medida durante 25 anos por um serviço nacional de saúde com resultados dos melhores do mundo - e os hospitais privados multiplicam-se. O governo parece querer entregar a saúde - ou uma parte dela - aos cuidados e iniciativa de privados, mas que parte será que estes querem dela?! E quantos médicos do público se deslocarão em definitivo para o privado, levados até pela legislação recente sobre incompatibilidades? Haverá médicos em número suficiente para suportar isto?
A verdade é que o modelo de saúde nacional é da responsabilidade dos políticos, avaliados e sufragados pelos eleitores; o necessário é que, a querer-se mudar um modelo existente, se defina outro e este seja seguido. E que esse modelo funcione pelo menos tão bem como o anterior. Ora, de momento as medidas tomadas e as anunciadas não deixam entrever modelo nenhum. Uma delas, as taxas de utilização para os doentes internados ou operados, não tem é em conta que a nossa Constituição considera o acesso aos cuidados de saúde tendencialmente gratuito, e portanto esses cuidados não poderão passar a ser co-financiados pelos doentes. O ministro também afirmava isso antes de o ser, e parece continuar a pensá-lo quando considera essa taxa não como um co-financiamento mas sim como um estímulo para o médico dar alta aos doentes mais depressa. Isto seria uma ingerência administrativa inadmissível na relação médico-doente, e por esse motivo a Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar solicitou a fiscalização da constitucionalidade de tal medida.
Modificou-se o estatuto de gestão das instituições de saúde públicas, empresarializando-as, e assim se deu, voluntária ou involuntariamente, uma machadada que pode ser fatal nas carreiras médicas, com todas as consequências negativas a médio e longo prazo que se podem prever. E o que é dramático é que dessa nova forma de gestão não resultaram os benefícios financeiros esperados, seja porque não é adequada, seja simplesmente por má gestão dos nomeados para tal ou pelos gastos administrativos galopantes. Sobretudo na informática, onde se vê gastar muitos milhões, em aplicações perfeitamente não prioritárias, quando se clama constantemente para que os médicos gastem menos ainda com os doentes.
As carreiras médicas foram desde sempre a espinha dorsal do SNS, e não se vê como possam sobreviver no actual quadro. A falta de hierarquização pela qualidade e pelas provas dadas abre as portas às arbitrariedades e ao compadrio, com nomeações porque se acha que o perfil deve ser o deste ou daquele, e quem acha é quem ocupa lugares directivos porque alguém, eventualmente nomeado da mesma maneira, também achou que sim. A regulamentação foi substituída pelo “achismo”.
Uma consequência das carreiras médicas foi a homogeneização na formação médica pós-graduada, com disseminação por todo o país de profissionais competentes, desde as cidades maiores às mais pequenas, e daí resultou em grande medida o índice de cobertura sanitária invejável em termos mundiais dum país pequeno e pobre como o nosso. Mas, na ânsia de poupar mais, quer-se agora concentrar de novo, limitar os meios e a formação aos centros maiores, levando com certeza à acumulação de profissionais nesses centros, e que os doentes se desloquem até eles – ao fim e ao cabo aquilo que se procurou combater nos últimos 25 anos.
Um exemplo disso é o desígnio anunciado de limitar os hospitais que ficam sem urgência a consultas externas feitas por “médicos vindos de hospitais mais fortes” - palavras do senhor ministro - e a cirurgia minimamente invasiva - mau uso por certo para “pequena cirurgia” ou “cirurgia de pequena monta”, já que aquela exige pelo contrário mais meios e mais formação. Em suma, são recriados os velhos hospitais da misericórdia, mas agora eventualmente a cargo das autarquias, onde os doentes podem ficar e ser visitados de vez em quando pelo especialista, se houver dinheiro para lhe pagar. A juntar, nesta remodelação em curso, aos médicos de saúde pública transformados numa espécie de fiscais sanitários municipais.
É a obsessão economicista na saúde, o mote da política do governo nessa área, com a excepção informática já citada e que continua a levar muitíssimos euros para fora do ministério. Reduzir o número de instituições, concentrar serviços, obrigar os doentes a deslocar-se aos centros maiores - já que aqueles chamados “hospitais de proximidade”, da maneira como estão a ser delineados de pouco mais servirão que para lhes dar uma palmadinha de conforto nas costas. Tudo serve para dificultar e diminuir o acesso dos utentes do sistema nacional de saúde aos cuidados de saúde que ele existe para prestar, sabendo-se que são sobretudo os doentes que produzem os gastos.
Mas essa obsessão ministerial atingiu a vertigem ao revogar um seu próprio decreto em que reconhecia o direito dos médicos não em exclusividade a receberem o pagamento das suas horas extraordinárias pelo valor unitário pago aos em exclusividade, na base de trabalho igual salário igual dentro da mesma diferenciação profissional. O governo reconheceu o princípio, legislou nesse sentido, depois deu o dito por não dito. E fê-lo declaradamente apenas para poupar dinheiro, chegando ao ponto de contabilizar o que ia ganhar, afinal por não pagar o que é devido a quem trabalha. Esta é uma situação extraordinária, a mais preocupante de todas neste ano que passou. Uma questão de princípio foi esmagada, e mais, posteriormente negociada, em termos de mais ou menos euros. Quando numa sociedade se começa a achar natural que o que interessa são os fins, negociando-se os princípios, é de esperar que estejamos no princípio do seu fim.
Pub. Tempo Medicina, 15/1/2007

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