1.12.10

A SAÚDE E O ALENTEJANO – ou uma história em dois capítulos

Capítulo I – A Saúde

Com o Serviço Nacional de Saúde e os Hospitais como eles eram há 6 ou 7 anos, e as Carreiras Médicas, Portugal estava colocado em 12º lugar no Mundo em termos de cuidados de saúde, 6º na Europa, país pobre ombreando com os ricos nesse aspecto. E gastando muito menos do que eles, 10% do PIB mas com a menor despesa per capita de todos os países da comunidade europeia.
Nesse contexto tínhamos uma medicina estruturada, com uma hierarquia técnica hospitalar bem estabelecida, base duma formação pós-graduada e contínua estimulada e continuamente avaliada, que levou a que médicos de reconhecida capacidade e ambição profissional se decidissem a deixar os grandes centros e os grandes hospitais para se dirigirem ao interior do país e nele produzirem todo o trabalho de que eram capazes. Bons hospitais, centrais e periféricos, com profissionais satisfeitos por lhes ser reconhecido o mérito profissional objectivado pelo trabalho produzido e as provas prestadas, escalonados pela competência demonstrada, assegurando nessas condições a gestão clínica dos seus Hospitais, Serviços e Unidades.
Nessa organização hospitalar assentava grandemente o próprio SNS, e ela permitia a prática, sustentada porque transmitida com naturalidade de geração médica em geração médica, duma medicina de qualidade, e que por isso mesmo ia saindo ao mais baixo custo.
“Esse” Serviço Nacional de Saúde foi sem dúvida a maior e melhor realização estatal e social do Portugal pós-25 de Abril, e colocou a Saúde fora da lista dos grandes problemas do País durante 3 décadas, com reconhecimento internacional desse facto, como aquelas classificações cabalmente demonstravam em 2002.
Mas de repente apareceu alguém clamando que não havia sustentabilidade financeira para esse modelo, que era preciso por isso modificar toda a estrutura hospitalar, vigiar o desperdício dos médicos, controlar a despesa que faziam. A gestão clínica feita era despesista, havia que a administrar do ponto de vista económico-financeiro, os médicos não tinham preparação para tal, daí os gastos, que nessa altura passaram a ser considerados insustentáveis.
A gestão administrativa tomou então conta dos hospitais, arredando do seu caminho a gestão clínica. Os médicos só não foram postos totalmente fora porque sempre faziam falta para o trabalho que justifica a existência dos hospitais. Mas a maneira encontrada de os afastar foi a sua desierarquização, foi o retirar dos lugares de responsabilidade e gestão os que a eles tinha chegado por capacidade demonstrada e provas dadas, e substitui-los por outros. Por muitos que nunca nos seus momentos de maior euforia haviam sonhado sequer em serem-lhes atribuídas funções de liderança e direcção. Que decisões, estratégias, opções se poderiam depois esperar? As melhores?! Muitos dos mais capazes e experientes ficaram saturados com isto, foram empurrados assim para a reforma antecipada ou para instituições privadas, ao mesmo tempo que apareciam nos hospitais-empresa contratos milionários – com as respectivas reformas mais tarde – sem qualquer razão aparente a não ser a arbitrariedade e o oportunismo.
As Carreiras Médicas foram feitas desaparecer, ficou um amontoado de médicos, donde são escolhidos os que chefiam e dirigem por critérios que não têm em muitos casos objectivamente nada a ver com a sua preparação, experiência ou conhecimentos, mas donde avulta a sua capacidade para concordar com o que lhes digam para concordar.
A desierarquização hospitalar chega a atingir foros de ridícula, e a ser motivo de riso amargo, quando se nomeiam directores ou chefes de equipa aqueles a quem ninguém se lembrará de recorrer em caso de complicações ou dificuldades. Mas sobretudo deixou de haver qualquer estruturação credível, no presente ou que se perspective no futuro, que garanta a qualidade, a formação profissional e a progressão de cada médico desde esse ponto de vista dentro destes hospitais EPE (que continuam a ser estatais). O que não tarda afectará também, inexoravelmente, a qualidade e o futuro dos internatos médicos.
Contrataram-se mãos-cheias de administradores e administradores-like, que gastaram balúrdios em gadgets administrativos e informáticos, desviando recursos que poderiam naturalmente ser usados na actividade clínica. Fecharam-se urgências, centros de saúde, centros de atendimento permanente, maternidades, hospitais, serviços hospitalares. Puseram-se os doentes a andar de ambulância dum lado para o outro. Fundiram-se hospitais, que é uma outra forma, disfarçada, de fechar alguns, reduzindo-se com isso o número de médicos, de enfermeiros e de doentes, mas criando necessidade de mais administradores, para encher essas novas enormes instituições hospitalares.
Portugal classificado em 27º na Saúde da Europa comunitária, e a descer. Depois de trinta e cinco anos, manifestações nas ruas de cidadãos descontentes, preocupados e temerosos pela sua saúde e dos seus filhos.
E o aspecto financeiro? Depois disto tudo, como está o aspecto financeiro do Serviço Nacional de Saúde? Com um prejuízo enorme e que não pára de crescer. Um défice que começa a ser paralisante de todo o sistema, levando a medidas restritivas e de poupança cada vez mais marcadas, isto apesar de quase 50% dos cuidados de saúde no nosso país já se calcular que sejam prestados agora por instituições privadas, que se multiplicam como cogumelos num terreno húmido. A par da falência técnica de muitos dos hospitais EPE, grandes responsáveis pelo descalabro das finanças da Saúde. E onde se reduzem equipas médicas abaixo do que é considerado aceitável em termos de segurança profissional e dos doentes, e da formação médica; onde começa a faltar material clínico e meios de diagnóstico e tratamento; onde se fecharam consultas e se dificulta o acesso aos doentes, empurrando-os duns hospitais para os outros, em nome duma apregoada rentabilização que soa fortemente a restrição, com acumulação de serviços cada vez mais longe dos pacientes. A que se junta a descomparticipação total em muitos medicamentos e a tentativa de obrigatoriedade de prescrever apenas os mais baratos, retirando aos médicos e aos doentes a possibilidade de escolha por outro critério.
Enfim, tudo o que sugere a real falta de sustentabilidade financeira do SNS. Que não é consequência do défice financeiro nacional, antes veio contribuir largamente para ele.

Capítulo II – O alentejano

Um alentejano chegou a casa ao fim da tarde e não encontrou a mulher. A casa estava toda desarrumada e por limpar, os filhos choravam com fome. Procurou comida para lhes dar, e para ele próprio, não havia nada preparado e a despensa estava vazia. Quis mudar a fralda ao filho mais novo, não havia fraldas, procurou uma camisa lavada para si próprio, estavam todas para lavar.
Durante duas horas esperou, tentando acalmar os filhos e o estômago, sem o conseguir, ansioso e preocupado. Finalmente a mulher chegou.
- Mulher, onde é que estiveste? A casa desarranjada, nada para comer, os filhos a chorar, um suplício, onde é que foste?! – perguntou-lhe ele com ansiedade.
- Homem, fui ao cabeleireiro, precisava de ir ao cabeleireiro sem falta.
- Mas pra quê? Pra que é que foste ao cabeleireiro? – interrogou o marido sofredor.
- Ora, pra ficar bonita, pois então!
- Mas então por que é que não ficaste?!...

C M Costa Almeida



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