16.6.10

SÓ POR BRINCADEIRA

O prejuízo com a Saúde EPE já é gigantesco, e a aumentar a uns vertiginosos 40% ao ano, segundo dados oficiais.
É um facto incontornável e preocupante, com certeza. Mas eis senão quando, face a esse descalabro financeiro, a Senhora Ministra da Saúde vem dizer que já estão a ser tomadas as medidas correctoras: que já foram dadas indicações aos hospitais para reduzirem as horas extraordinárias. E esta, hein?!... Só por brincadeira!
Então a culpa, afinal, é de quem trabalha, e sobretudo de quem trabalha fora de horas, e para além do que devia trabalhar! Porque a noção de horas extraordinárias é essa, e quem as ganha é porque trabalhou para além do tempo a que contratualmente estava obrigado. Os médicos ganharam porque viram doentes, porque os estudaram, os trataram, enfim, desempenharam o papel que é a razão de ser dos hospitais. Mesmo dos hospitais-empresa. E agora a culpa do prejuízo imenso dessas “empresas” é deles, por trabalharem! Só por brincadeira mesmo.
Mas, se virmos bem, não se descortina razão por que as empresas-hospital haveriam de ser excepção na empresarialização típica da nossa terra. Quer dizer, os maus resultados da gestão nunca são culpa de quem geriu, são sempre externos à administração, sempre culpa da crise, dos mercados, dos trabalhadores, seja do que for. Isto se as coisas correrem mal, porque se tudo correr bem, ou menos mal, é evidente que há motivo para bónus aos administradores. Quando o prejuízo é grande, e mantido, e faz agigantar a sombra da falência, então começa-se invariavelmente por “emagrecer” a empresa despedindo funcionários, deixa-se de lhes pagar ordenado, diminui-se a despesa que fazem reduzindo a sua actividade produtiva… É o costume entre nós e, se o resultado for também o habitual, isso não vai impedir a falência. A não ser que o Estado intervenha com algum subsídio, ou com a nacionalização…
Mas concentremo-nos na Saúde, que é o nosso negócio. A reforma introduzida na gestão dos hospitais, centrando-a no sector administrativo e dando a este a primazia absoluta, teve como justificação a necessidade de se reduzirem drasticamente os custos do SNS, com vista à sua sustentabilidade financeira. É evidente que só uma palavra traduz o resultado obtido: fracasso.
E fracasso tanto maior porque à despesa, crescente de ano para ano, se juntou a destruição duma estrutura intra-hospitalar que era fulcral na formação contínua e na avaliação dessa formação, que estimulava os melhores a mostrar que o eram e os outros a procurar sê-lo, e que era um poderoso atractivo para a vida hospitalar. Desestruturados os hospitais do ponto de vista clínico, com hierarquizações de ocasião, com a gestão clínica subalternizada, compreende-se que a boa medicina – aquela que fica barata e é eficaz – lá seja praticada apenas ocasionalmente. E isso sai caro.
Desaparecida a atracção duma carreira hospitalar, as contratações são feitas por quem dá mais, a termo indefinido ou à peça, à hora, ao dia, ao banco ou ao mês, sem controlo de qualidade, tratadas directamente com os interessados ou através de agências de emprego cujo interesse é, naturalmente, o lucro. Isto encarece o produto utilizado, que começa a não ter selo de garantia, vindo das mais variadas proveniências, nacionais e estrangeiras.
Uma antiga ministra da Saúde socialista diz que a empresarialização dos hospitais não teve por objectivo baixar os custos, que já se previa que desse modo subiriam, mas sim tornar as contas da Saúde sustentáveis no papel, desorçamentando contabilisticamente muitas das despesas. Ora toda esta multidão de contratos profissionais de ocasião, uns renováveis automaticamente, outros renegociados de vez em quando, que acarretam no seu conjunto muito maior despesa, têm a virtude de não se enquadrar obrigatoriamente na rubrica dos vencimentos, e isso é importante para os administrativos. Para poderem apresentar as variações que acharem melhor nos relatórios de gestão intercalares e finais, nos balancetes e gráficos, nisso tudo. Mas que sai caro, sai.
Horas extraordinárias são, pois, uma preocupação do passado. Façam-se contratualizações específicas, comprando mais uns serviços médicos, enquadrados entre rabanetes e couves de Bruxelas para a cozinha, e a coisa reduz-se logo.
Os americanos constataram que 40% do dinheiro gasto na Saúde é para os administrativos, não para os doentes e para quem trata deles. Nós por cá não sabemos ao certo, mas vemos a imensidade de administradores que inundou os nossos hospitais, toda a burocracia crescente que suporta e caracteriza essa classe, dominante na vida hospitalar, o balúrdio que se gasta, por exemplo, no sistema electrónico de controlo de assiduidade dos médicos (originalidade que não conheço em nenhum hospital de nenhum país da Europa Comunitária), com o trabalho e despesa que dá a permanente justificação das desconformidades dos que ainda insistem em querer tratar doentes sem se preocuparem com horários, e imaginamos uma percentagem ainda maior.
A despesa nos hospitais não pára de crescer, e só por brincadeira é que as horas extraordinárias que ainda se pagam desempenham aí algum papel. Mas pior do que isso é o vazio de organização estrutural dos hospitais EPE em termos de formação e de avaliação do seu resultado. Os internatos vão-se mantendo, mas estão dependentes da qualidade dos formadores, de momento ainda assegurada pela vis a tergo das carreiras médicas extintas (restam uns concursos residuais, sem repercussão nos próprios hospitais e na sua actividade), mas em perigo iminente dado o esvaziamento dos hospitais públicos em termos de médicos com provas dadas e qualidade assegurada. Qual a avaliação de qualidade no futuro? Este é que é o grande problema, maior ainda que o económico-financeiro.
Carreiras médicas não podem coexistir com gestão EPE, isso é claro. Mas temos de saber quem faz o quê, e com que qualidade. Este ponto fulcral parece o verdadeiro beco sem saída desta nova gestão. Que se preocupa mais com horas extraordinárias, com a maneira de não as pagar ou de as escamotear, e muito menos com a qualidade presente e, sobretudo, futura. E isto não é brincadeira.
Os lugares directivos podem ser de nomeação política, mas a qualidade não se conquista por decreto. Serviços idóneos para formação pós-graduada, centros de referência para algumas patologias, centros de elevada diferenciação, tudo está dependente da definição de qualidade. E como é esta avaliada e, mais importante ainda, obtida, sem uma estruturação definida para a atingir, como acontece agora? Será que se pretende que o “achismo” aqui triunfe também? Haverá quem anseie por isso, mas seria enganarmo-nos a nós próprios, enquanto médicos e enquanto doentes que podemos ser todos. Iremos simplesmente estabelecer que quem sabe fazer uma só coisa e a faz à exaustão é que é forçosamente bom? Ainda por cima numa situação empresarial que aconselha à flexibilização dentro dos empregos, à versatilidade dos trabalhadores, numa adaptação a funções variadas de modo a tornarem-se mais rentáveis? Ou será que iremos ter de, finalmente, avaliar os resultados de todos? E teremos para tal engenho e arte, e dinheiro? A verdade é que algo terá de ser feito.
É um futuro incerto o que nos espera, neste tempo de fim de época civilizacional que vivemos. Na Saúde quis-se mudar o que durante dezenas de anos funcionou bem; agora há que encarar a situação e encontrar uma nova solução, assumindo o que foi mal feito. Sem brincadeiras.
C. Costa Almeida, in Rev Port Cirurgia

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