7.11.10

Um problema financeiro, agora sim, e não só

Há cinco anos atrás Portugal tinha uma medicina estruturada, com uma hierarquia técnica hospitalar bem estabelecida pelas Carreiras Médicas, base duma formação pós-graduada e contínua estimulada e continuamente avaliada, que levou a que médicos de reconhecida capacidade e ambição profissional se decidissem a deixar os grandes centros e os grandes hospitais para se dirigirem ao interior do país e nele produzirem todo o trabalho de que eram capazes. Bons hospitais, centrais e periféricos, com profissionais satisfeitos por lhes ser reconhecido o mérito profissional objectivado pelo trabalho produzido e as provas prestadas, escalonados pela competência demonstrada, assegurando nessas condições a gestão clínica dos seus Hospitais, Serviços e Unidades.
Nessa organização hospitalar assentava grandemente o Serviço Nacional de Saúde, e ela permitia a prática, sustentada porque transmitida com naturalidade de geração médica em geração médica, duma medicina de qualidade, e que por isso mesmo ia saindo ao mais baixo custo.
Qualidade a baixo custo, é disso que se tratava. Portugal estava colocado em 12º lugar no Mundo em termos de cuidados de saúde, 6º na Europa, país pobre ombreando com os ricos nesse aspecto. E gastando muito menos do que eles, com a menor despesa per capita de todos os países da comunidade europeia. Foi “esse” SNS que colocou a Saúde fora da lista dos grandes problemas do País durante 3 décadas, com reconhecimento internacional desse facto, como aquelas classificações cabalmente demonstravam em 2002.
Mas de repente apareceu alguém clamando que não havia sustentabilidade financeira para esse modelo, que era preciso por isso modificar toda a estrutura hospitalar, vigiar o desperdício dos médicos, controlar a despesa que faziam. A gestão clínica feita era despesista, havia que a administrar do ponto de vista económico-financeiro, os médicos não tinham preparação para tal, daí os gastos, que nessa altura passaram a ser considerados insustentáveis.
A gestão administrativa tomou então conta dos hospitais, arredando do seu caminho a gestão clínica. Os médicos só não foram postos totalmente fora porque sempre faziam falta para o trabalho que justifica a existência dos hospitais. Mas a maneira encontrada de os afastar foi a sua desierarquização, foi o retirar dos lugares de responsabilidade e gestão os que a eles tinha chegado por capacidade demonstrada e provas dadas, e substitui-los por outros. Por muitos que nunca nos seus momentos de maior euforia haviam sonhado sequer em serem-lhes atribuídas funções de liderança e direcção. Que decisões, estratégias, opções se poderiam depois esperar? As melhores?! Muitos dos mais capazes e experientes ficaram saturados com isto, foram empurrados assim para a reforma antecipada ou para instituições privadas, ao mesmo tempo que apareciam nos hospitais-empresa contratos milionários – com as respectivas reformas mais tarde – sem qualquer razão aparente a não ser a arbitrariedade e o oportunismo.
As Carreiras Médicas foram feitas desaparecer, ficou um amontoado de médicos, donde são escolhidos os que chefiam e dirigem por critérios que não têm em muitos casos objectivamente nada a ver com a sua preparação, experiência ou conhecimentos, mas donde avulta a sua capacidade para concordar com o que lhes digam para concordar.
A desierarquização hospitalar chega a atingir foros de ridícula, e a ser motivo de riso amargo, quando se nomeiam directores ou chefes de equipa aqueles a quem ninguém se lembrará de recorrer em caso de complicações ou dificuldades. Mas sobretudo deixou de haver qualquer estruturação credível, no presente ou que se perspective no futuro, que garanta a qualidade, a formação profissional e a progressão de cada médico desde esse ponto de vista dentro destes hospitais EPE (que continuam a ser estatais). O que não tarda afectará também, inexoravelmente, a qualidade e o futuro dos internatos médicos.
Contrataram-se mãos-cheias de administradores e administradores-like, que gastaram balúrdios em gadgets administrativos e informáticos, desviando recursos que, sendo o dinheiro pouco, deveriam naturalmente ser usados na actividade clínica. Fecharam-se urgências, centros de saúde, centros de atendimento permanente, maternidades, hospitais, serviços hospitalares. Puseram-se os doentes a andar de ambulância dum lado para o outro. Fundiram-se hospitais, que é uma outra forma, disfarçada, de fechar alguns, reduzindo-se com isso o número de médicos, de enfermeiros e de doentes, mas criando necessidade de mais administradores, para encher essas novas enormes e perras instituições hospitalares (que já não se usam, aliás, em parte nenhuma do mundo evoluído).
Portugal caiu para 27º em termos de Saúde na Europa comunitária, sobretudo pela crescente dificuldade que os cidadãos têm de aceder aos cuidados e, pouco a pouco, de os pagar. Nos Estados Unidos da América foi feito um esforço semelhante: quanto mais dificuldade for posta no acesso dos doentes ao médico, seja por taxas moderadoras, seja pela distância, seja pelas listas de espera criadas pela concentração de meios técnicos de diagnóstico e de tratamento em exclusivo nalguns locais, menos se gasta com a Saúde, porque menos doentes globalmente se irão tratar. Os nossos doentes começam a sentir isso, e depois de 35 anos vão surgindo um pouco por todo o lado manifestações nas ruas de cidadãos descontentes, preocupados e temerosos pela sua saúde e dos seus filhos.
E o aspecto financeiro? Depois disto tudo, como está o aspecto financeiro do Serviço Nacional de Saúde? Com um prejuízo enorme e que não pára de crescer, nuns galopantes 40% ao ano. Um défice que começa a ser paralisante de todo o sistema, levando a medidas restritivas e de poupança cada vez mais marcadas, apesar de quase 50% dos cuidados de saúde no nosso país já se calcular que sejam prestados agora por instituições privadas, que se multiplicam como cogumelos num terreno húmido. A par da falência técnica de muitos dos hospitais EPE, grandes responsáveis pelo descalabro das finanças da Saúde. E onde se reduzem equipas médicas abaixo do que é considerado aceitável em termos de segurança profissional e dos doentes, e da formação médica; onde começa a faltar material clínico e meios de diagnóstico e tratamento; onde se fecharam consultas e se dificulta o acesso aos doentes, empurrando-os duns hospitais para os outros, em nome duma apregoada rentabilização que soa fortemente a restrição, com acumulação de serviços cada vez mais longe dos pacientes. A que se junta a descomparticipação total em muitos medicamentos e a tentativa de obrigatoriedade de prescrever apenas os mais baratos, retirando aos médicos e aos doentes a possibilidade de escolha por outro critério.
Enfim, tudo o que sugere uma real falta de sustentabilidade financeira do SNS, agora sim. Que não é consequência do défice financeiro nacional, antes veio contribuir largamente para ele.
Os números que citamos são oficiais, não há como fugir deles, há é que perceber que algo correu mal e parar para pensar. Não fugir para a frente, com medidas que se começam a revelar pouco menos que desesperadas. Até porque o que realmente é insustentável é a situação criada nos Hospitais, sem hierarquização técnica credível, vivendo do que resta da que houve durante 35 anos. O dinheiro em falta ainda se pode ir pedindo emprestado a juros, mas a formação de médicos hospitalares competentes leva muito tempo e tem que assentar numa estrutura interna estável e capaz. Que agora está em vias de extinção. E depois?
C. Costa Almeida


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