8.2.09

POR AMOR DE DEUS!

Conheci até há muito poucos anos um grande número de colegas que foram obrigados a reformar-se por terem atingido o limite de idade e que o fizeram a contra gosto e com muita pena, deles e de quem com eles trabalhava. E sempre achei que nesses casos, em que a idade não tirou a capacidade para trabalhar e os conhecimentos e experiência acumulados e exercitados são uma enorme mais-valia para as instituições de saúde e para os seus profissionais mais jovens e para os doentes, deveria haver mecanismos legais que permitissem e até incentivassem uma forma de se usufruir deles durante mais algum tempo.
Mas, ultimamente, temos cronicamente vindo a assistir a uma enorme vaga de pedidos de reforma antecipada, de colegas na casa dos cinquenta ou nos primeiros sessentas, sem quaisquer problemas de saúde que o justifiquem. Quer dizer, no momento actual os médicos não chegam ao limite de idade para o seu trabalho hospitalar, saem antes, e existem várias causas para tal, todas de aparecimento muito recente.
Desde logo pelo receio, aparentemente fundado e propalado pelo próprio governo, de que se se reformarem mais tarde poderão ter uma redução significativa na sua pensão de reforma. Quer dizer, foi na verdade anunciado que quem trabalhar mais tempo virá a ter uma reforma mais baixa. Há, portanto, que deixar rapidamente de trabalhar para se ter uma pensão maior do que a daqueles que se mantêm a trabalhar mais tempo. Meu Deus, que situação extraordinária esta a que se chegou, não é verdade?!
E o mais extraordinário é que todos parecemos aceitar isto calmamente, resignadamente, como algo indiscutível e sem apelo. Nem o facto de há 30 anos se ter estabelecido um contrato com o patrão Estado com um conjunto de pressupostos – entre eles os respeitantes às condições de reforma – parece ter qualquer importância. Alteram-se esses pressupostos nem sequer a meio, mas mesmo no fim, e a nossa Constituição, afinal, permite-o. Bem, deve permitir, não vejo quem de direito manifestar-se contra…
Portanto, os médicos reformam-se mais cedo para conseguirem uma reforma maior do que se continuarem a trabalhar. Mas outro problema é que, reformando-se por querer, o fazem a contra gosto, o fazem aborrecidos, fartos, desmotivados em relação ao que foi a sua actividade profissional apaixonante, a medicina hospitalar. E esta é, talvez, a maior razão para o seu afastamento prematuro.
A passagem dos hospitais a entidades empresariais fez, indirectamente, soçobrar a gestão clínica dos mesmos, engolida e substituída pela gestão administrativa. Estes hospitais, apodados de empresas, esperar-se-ia que tivessem um funcionamento mais simples, com uma administração mais ágil. Mas não, adquiriram uma máquina administrativa pesada, burocratizada, cara, para cujo funcionamento requerem a contratação de milhentos administradores, cuja actividade interfere, perturba e em muitos casos dificulta a actividade clínica. Esta, a cargo fundamentalmente dos médicos, deixou de ser o centro do hospital, e justificação da sua própria existência, para passar a ser uma espécie de pretexto para existir quem administre. O resultado de tal coisa tem sido decepcionante, não só financeiramente mas em especial para quem tem de lidar com os doentes, as doenças e o seu tratamento, isto é, o pessoal clínico, médicos à cabeça. O modo mais eficaz e eficiente - e, portanto, mais barato - de um hospital desempenhar as suas funções é praticando a melhor medicina, e isso é da responsabilidade do corpo médico, e deve por eles ser regido. Nunca por quem tem funções contabilísticas e de criar as condições para se poder exercer uma gestão clínica adequada.
Não admira, pois, que os médicos tenham começado a sair, desmotivados e desencantados, de instituições pelas quais antes se batiam. Mas a desestruturação introduzida nos hospitais não se ficou por aqui. Em muitos deles instituiu-se intencionalmente uma desierarquização, com substituição nas chefias técnicas intermédias, departamentos, serviços e outras unidades, dos médicos mais graduados, mais diferenciados e, em muitos casos, líderes de opinião dentro das instituições, por outros, menos diferenciados e com menos provas dadas (ou sem provas dadas), que a administração “achou” terem melhores condições para os cargos. Como se compreende, muitos daqueles colegas preteridos e afastados optaram por abandonar quem os tratou dessa maneira e sair, passando a trabalhar para quem lhes reconhece os méritos profissionais e humanos, ou por conta própria.
Globalmente é este o quadro que levou à actual sangria dos hospitais de muitos dos seus melhores e mais experientes profissionais médicos. Foram levados a sair, e saíram para continuar a trabalhar.
Compreende-se que se reconheça agora que fazem falta, e que a própria ministra da Saúde venha fazer um apelo para que voltem a trabalhar nos hospitais EPE. Mas por amor de Deus, então por que os levaram a sair?! Não lhes criaram condições para ficar, e agora querem que voltem?!
Se calhar alguns não se importarão de voltar, provavelmente não para o hospital de onde saíram mas para outro. Como mercenários, pagos à peça ou à hora, sem estarem verdadeiramente entrosados na equipa do hospital, sem terem por isso de se preocupar com a gestão clínica ou com os erros cometidos nesse aspecto; a meio gás, portanto, ou menos, apesar de no fim ganharem mais (ou muito mais) do Estado do que ganhavam antes de se reformarem. A um esvaimento de funções importantes, do ponto de vista assistencial, científico, de formação pós-graduada, de gestão, corresponderam afinal maiores custos.
É preocupante, isto, e mais preocupante se pensarmos que as administrações de alguns hospitais se calha estão contentes com a situação. Que é equivalente, aliás, a outra que consiste em concederem licença sem vencimento a alguns médicos da sua confiança e logo de seguida contratarem-nos para as mesmas funções que tinham, mas pagos principescamente. Pode parecer esquisito - para dizer o menos – e ficar carissimo ao erário público, mas ao menos permite colocar esses gastos numa rubrica contabilística diferente da dos vencimentos, como por exemplo na mesma das couves e feijão comprados no mercado para fazer sopa. Quem apreciar as contas dessas empresas-hospital sempre poderá concluir apenas que os doentes, lá, comem muita sopa… E esta, hein?! Por amor de Deus!
C Costa Almeida in TM

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