24.1.09

VAMOS ÀS CARREIRAS – II

Ouvimos há dias na televisão uma enfermeira portuguesa das que mudaram o seu local de trabalho para o Reino Unido dizer que o tinha feito não principalmente pelo dinheiro mas sobretudo pela “possibilidade de progredir na carreira”. Reconfortante, ouvir isto. As carreiras profissionais não são apenas uma obrigatoriedade incómoda de concursos trabalhosos que filtram e dificultam a progressão profissional; ou uma maneira de ir periodicamente aumentando de ordenado; são acima de tudo um estímulo para quem quer aperfeiçoar-se e ser cada vez mais capaz, com esse aperfeiçoamento reconhecido e premiado.
A progressão profissional enquadrada numa carreira faz-se por patamares, correspondentes a capacidades e experiência adquiridas pelo exercício profissional e reconhecidas pelos pares mediante análise criteriosa do trabalho realizado e dos conhecimentos evidenciados. Quer dizer, o reconhecimento da evolução e do valor demonstrados pelo profissional é da responsabilidade de quem tem condições também profissionais para o fazer. Quem avalia e classifica tem obrigatoriamente de ter sido já avaliado antes, de ter dado provas cabais e igualmente reconhecidas das suas competências no grau ou categoria para que agora é avaliador. É esta progressão estruturada, apoiada, de acumulação de conhecimentos, experiência e trabalho realizado condicionando mais autonomia, mais liberdade, mais autoridade mas também mais responsabilidade, que basicamente constitui as carreiras. Pelo menos as carreiras médicas que defendemos, que no nosso país existiram por três dezenas de anos e cuja falta se começa rapidamente a sentir.
É despiciendo voltar a falar da importância dessas carreiras na evolução altamente positiva que a saúde e a medicina portuguesas tiveram nos anos em que elas realmente existiram. Sobretudo no que aos hospitais diz respeito – e por eles eu falo - em que elas permitiram a consecução de um facto notável: a homogeneização por todo o território nacional da qualidade e das condições de trabalho, estas como incentivo profissional maior. Fazendo só por si com que médicos altamente preparados e de grande capacidade intelectual e técnica se permitissem sair dos três grandes centros de referência existentes até então e espalhar-se por todo o país. Numa descentralização que os que não percebem do assunto teimam em forçar, seja por uma obrigatoriedade de capatazes seja pelos chamados estímulos financeiros. Os médicos sempre foram mal pagos no Estado, mas era aí que ainda iam tendo mais condições para exercer a profissão que os entusiasma, para se realizarem profissionalmente, para subirem degraus de diferenciação, de responsabilidade, de organização, de gestão, de autoridade. Isso os ia compensando, para além de lhes ser dada a possibilidade de trabalharem muito e assim poderem ganhar mais alguma coisa.
E tudo isto teve o óptimo resultado que se conhece. E que ao fim e ao cabo acabou agora por ser finalmente reconhecido pelo Ministério da Saúde deste Governo, com uma médica como ministra, ao apresentar um projecto de reconstrução das carreiras médicas. Mas convenhamos que com a lógica política seguida é difícil conseguir que sejam reconstruídas, desvirtuadas e inutilizadas que foram precisamente por legislação entretanto produzida e implementada na área da gestão hospitalar. Para além de que é evidente que para muitos dos nossos políticos (e não só), habituados não a carreiras mas a carreirismo, aquelas são um estorvo para este.
Ao obrigar-se a uma progressão na carreira, com funções, responsabilidades e prerrogativas de autonomia e chefia dependentes dos respectivos graus e categorias, estaríamos a inviabilizar os lugares de favor, de nomeação política ou por amigos políticos ou de mesa de café (ou ambos). Em suma, estaríamos (ou estaremos, se formos optimistas, apesar de tudo) a impedir a descida de pára-quedas nas chefias técnicas das instituições de muitos que na verdade nem chegaram a levantar voo… E isso, na actual conjuntura, torna difícil um projecto adequado de carreiras, carreiras médicas incluídas.
Para além de que os nomeados para os lugares de nomeação política nos hospitais, e a quem foi concedido um poder quase absoluto (a que deveria corresponder uma responsabilidade máxima, mas esta sempre iludida…), desde logo divulgaram a ideia de que tudo dependeria das suas escolhas pessoais para as chefias técnicas intermédias. E como tal escolheram quem melhor acharam, sem atender minimamente – em muitos casos – à diferenciação profissional e provas dadas dos escolhidos e dos recusados e afastados, às vezes acintosamente. Com certeza que houve excepções dignificantes, mas o que sucedeu mostrou à saciedade que nos hospitais EPE as carreiras médicas deixaram de contar. A não ser para satisfazer as expectativas dos que nelas entraram há muitos anos, satisfação que as administrações não podem legalmente ignorar, tendo por isso que dar seguimento aos concursos dentro delas e aumentar as remunerações dos médicos envolvidos, de acordo com a sua subida de categoria.
Durante dezenas de anos a função pública foi um esteio da nossa sociedade, e uma referência em múltiplos aspectos, nomeadamente de entrada por concurso, de estabilidade de emprego, de remunerações, de condições de trabalho, de qualidade (sempre discutida mas sindicável, sujeita a queixas, a avaliações e a correcções). Quem puser esta última característica em causa recorde-se que a formação médica pós-graduada dentro das carreiras era totalmente pública, e a boa qualidade da nossa saúde, reconhecida mundialmente em 2002, era de responsabilidade quase exclusivamente estatal. Havia com certeza indicação para se mudarem algumas coisas, mas o que se passou foi o mudar a tónica do público para o privado. Quer dizer, a orientação política actual parece ser a de diminuir drasticamente a função pública e aumentar na mesma proporção a privada. E, concomitantemente ou por isso mesmo, as regras da actividade privada é que se tornaram na referência nacional, legislando-se sucessivamente para que essa mudança seja efectivada à face da lei.
Não vou aqui seguramente apreciar opções políticas, individuais e muito menos dum governo eleito, mas o liberalismo que rapidamente se tem vindo a instalar entre nós, nomeadamente no campo da saúde, desaconselha por certo soluções possíveis e desejáveis noutro tipo de sociedade, e exigirá outras. Sem discutir minimamente a bondade dum qualquer sistema político de gestão do nosso país, mas como médicos – isto é, técnicos fundamentais na área da saúde -, devemos questionar se opções claramente vencedoras num sistema podem ser sequer minimamente adequadas noutro. Há transplantações em que a rejeição é fatal.
A existência duma carreira médica pressupõe – exige – que os seus graus e categorias sejam reconhecidos nas diversas instituições em que os médicos trabalham. Reconhecimento que implica consequências. Nas entidades públicas empresariais já assim não é: ele existe apenas no que respeita aos vencimentos, e num quadro a extinguir quando vagar. Em que medida nas empresas privadas o poderá vir a ser?
Como poderão coexistir carreiras médicas e um sistema de avaliação eventualmente tão extraordinariamente aberrante como o dos professores ou o do SIADAP? Em que as remunerações não terão que ver com o lugar na carreira mas sim com a avaliação feita por um qualquer nomeado como chefe? No próximo artigo continuaremos.
C Costa Almeida

Sem comentários: