22.2.09

VAMOS AS CARREIRAS - IV

Todos concordam que as carreiras médicas são necessárias no nosso país, uma necessidade que foi demonstrada ao longo de três dezenas de anos de resultados notáveis em termos de saúde e de formação médica. E o “todos” inclui agora o ministério da saúde – “agora” significando que temos um ministro médico que percebe realmente o que se passa nesta área. Há, portanto, um consenso alargado neste ponto, embora suspeite que alguns dos mais novos ainda não sentiram essa necessidade, lá no fundo aliviados com o que se traduz de início por menos trabalho, menos estudo, menos provas a prestar. E é natural que se procure optar pelo caminho mais fácil; mas compete a todos perceber o que faz falta e que a formação contínua na nossa profissão é fundamental, daí derivando a ascensão a lugares de maior responsabilidade e mais autoridade profissional por parte dos que demonstraram ser mais capazes e estar mais preparados. O que não fará sentido é uns terem o trabalho e outros serem guindados a tais lugares. Se assim for, então é bem verdade que o caminho a escolher pela maioria será, naturalmente e sem se poder criticar, o mais fácil.
A recriação duma carreira com os mesmos graus que existiam, a que se tem acesso por concursos julgados pelos pares, não me parece de grande dificuldade. Na verdade, ao fim e ao cabo, será suficiente deixar tudo como está no papel nesse aspecto. Onde está o busílis da questão é naquilo que na verdade matou as carreiras, apesar de elas continuarem teoricamente a existir. E que é a lei de gestão hospitalar EPE que, por um lado, impede a entrada de novos profissionais nessas carreiras e, por outro, fez tábua rasa dos graus e categorias ainda existentes.
À luz dessa lei cada hospital contrata quem quiser, quando quiser, para fazerem o que entender ao preço que estipular. Onde é que se encaixa aqui uma carreira? E não oiço o governo querer mudar este estado de coisas.
Pela mesma lei, e pela interpretação que as administrações hospitalares EPE fazem dela, os lugares de direcção, de chefia, de responsabilidade quer na assistência quer no ensino e formação, são distribuídos por quem os administradores “acham”, sem qualquer relação com graus ou categorias. E esta atitude está tão disseminada, diria é tão homogénea no país, que por certo tem algo comum a todos os hospitais a motivá-la. Faz sentido nestas condições falar-se em carreiras? Para além de que os resultados, em termos de assistência e formação, não se afiguram nada bons a médio e muito menos a longo prazo. Não se as carreiras tiverem a importância fundamental que se lhes atribui. E que leva agora a querer fazê-las renascer.
A salvação invocada baseia-se no contrato colectivo de trabalho. Não em mudar uma lei que destruiu algo que funcionava muito bem, mas sim em alterar o que estava bem para se adaptar de alguma maneira ao que, intencionalmente ou por inépcia, o veio destruir. A qualidade que fez triunfar a espécie humana foi a adaptabilidade activa, isto é, os humanos serem capazes de modificar o meio exterior e adaptá-lo a si próprios. Essa é uma capacidade individual, não da espécie, a qual vive, assim, da acção de alguns dos seus nessa matéria. Esperemos que, neste assunto das carreiras, os intervenientes directos consigam traduzir o que os outros pensam e querem e logrem chegar aos resultados almejados por todos.
O contrato colectivo de trabalho poderá vir pôr alguma ordem na desordenação total das contratações feitas agora, em que se chega a conceder licenças sem vencimento a médicos logo de seguida contratados pelo mesmo hospital, para fazerem o mesmo ou menos do que faziam por muito mais dinheiro. Dinheiro de nós todos, já agora; quando se apregoou mudar a lei de gestão para se conseguirem os mesmos resultados a um custo mais baixo. Mas em que é que isso poderá, só por si, ser decisivo nas carreiras médicas?
Ao contrato colectivo apenas poderão aceder os médicos inscritos num sindicato que o tenha subscrito, e logo aí se antevêem dificuldades numa classe tão arreigada ao liberalismo de actividade. Será mais um passo na tentativa da sua completa proletarização, e ainda por cima agora em nome de algo que ela não vem necessariamente resolver: as carreiras médicas. Se a lei EPE se mantiver como foi delineada, os hospitais-empresas continuarão a não ter quadro de pessoal definido, com lugares por categoria profissional. Os contratos a efectuar serão “à la demande” de cada administração, pelos critérios que escolherem como bons para a empresa que foram postos a dirigir. E do mesmo modo os hospitais privados. Quem garante que escolherão preferencialmente os mais graduados, sobretudo se pelo contrato colectivo de trabalho lhes tiverem de pagar mais? E quem os obrigará a dar mais responsabilidades e funções de orientação aos mais graduados que eventualmente tiverem a trabalhar para eles? É claro que o contrato colectivo poderá tentar acautelar algo semelhante, mas lá estará a classificação de desempenho feita pelo próprio hospital – quer dizer, pelo conselho de administração, directamente ou por interposto chefe por eles nomeado – para colocar nos lugares as pessoas desejadas. Neste panorama será difícil falar-se em carreiras.
Foi sintomática a apresentação conjunta feita pelo ministério da saúde do projecto das “novas” carreiras médicas e do projecto de classificação intra-hospitalar de desempenho dos médicos. Aliás, as carreiras anunciadas só tinham realmente de novo o facto de não terem repercussão na actividade hospitalar de cada um, parecendo ter sido planeadas apenas para manter os médicos ocupados a estudarem e a fazerem trabalhos, ao mesmo tempo que se retirava importância prática do ponto de vista do seu emprego a tudo o que conseguissem ser capazes de fazer nesse campo. Quer dizer, aceita-se que devem manter um esforço constante de progressão, o que implica que uns possam ir mais longe que outros, mas as administrações, depois daqueles concursos todos, reservam-se o direito de escolher quem bem entenderem, pelos critérios que lhes apetecer, nomeadamente das simpatias pelos colegas “dentro do mesmo projecto de gestão”, eufemismo habitual para compadrio e pagamento de favores. Como vai o contrato colectivo lidar com isso? Como vai evitar que na vida hospitalar dos médicos se instale o princípio que melhor que ser político é ser amigo do político certo para cada momento? Carreiras médicas?!... Quando muito carreiras iguais às existentes para o resto da administração pública, para subida de escalão de vencimento de acordo com a opinião do chefe. Sem qualquer relação com formação.
E todos aqueles que optarem por um contrato individual de trabalho? Por não querem estar forçosamente na dependência dum sindicato, ou por assim conseguirem ganhar mais? Ficam fora das carreiras?
No meio de tudo isto há um aspecto fulcral também, que é a formação de internos. De que as carreiras médicas até há dois anos existentes eram como que uma continuação natural, e que continua a funcionar sem problemas de maior pela vis a tergo que traz, mas que se irá necessariamente ressentir a breve trecho. Disso falaremos na próxima vez, e também da anunciada classificação de desempenho dos médicos.
C. Costa Almeida

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