22.2.09

VAMOS AS CARREIRAS - III

A actual lei de gestão hospitalar, criando os hospitais EPE, derivou do facto de quem administra os hospitais públicos considerar que não era capaz de o fazer bem com a lei previamente existente. Teve, portanto, uma causa puramente administrativa, isto é, mudou-se a lei de gestão para quem administra ser capaz de administrar. O problema é que com esse objectivo atropelaram toda a organização clínica hospitalar, desestruturando-a e conduzindo à inactivação e destruição das carreiras médicas. Isto sem aumentar visivelmente a eficácia administrativa, mas com um aumento exponencial do número de administradores circulando nos gabinetes e corredores dos hospitais. Dito de outro modo: alteraram as regras do jogo para o poderem ganhar mas, além de não o conseguirem, baralharam-no, e suspeito que no momento actual já ninguém sabe muito bem que jogo se está a jogar e como vai acabar.
Quer dizer, com uma alteração de gestão que no fundo traduziu uma incapacidade, destruíram algo que funcionava bem, tão bem que foi considerado como a base do Serviço Nacional de Saúde, o qual, por sua vez, levou a que um país pobre e em geral desorganizado e ineficaz como o nosso pudesse ser considerado o 12º no mundo, a contar de cima, na área da saúde. E o problema maior é que a modificação foi feita de tal forma, de tal maneira impensada – ou tão elaborada… -, que tornou muito difícil uma adaptação das carreiras médicas de modo a salvá-las. Mas falemos sobre isso, sem derrotismo, antes com os pés bem assentes na realidade.
Uma das alterações impostas foi que as administrações dos hospitais empresarializados podem contratar quem quiserem, pelos critérios que estabeleceram como necessários para o hospital que foram postos a dirigir. Seria com certeza inteligente para um empresário se procurasse contratar profissionais bem preparados, com provas dadas, no topo da carreira. Mas isso implicaria duas coisas: pagar-lhes mais, por um lado, e, por outro, ter um projecto de desenvolvimento da “sua” empresa-hospital que a levasse a evoluir e a fazer cada vez mais e melhor. Talvez haja algum conselho de administração assim, ou venha a haver, mas a rotina não tem sido essa: antes se pretende apresentar muitos doentes vistos e tratados a baixo custo, descartando-se para os vizinhos tudo o que custe mais caro ou implique mais investimento. Incluindo em pessoal especializado mais capaz e diferenciado.
Lá se vai, assim, a lógica do quanto mais diferenciado melhor. Algumas excepções talvez o pudessem ainda justificar, mas não passariam disso mesmo: excepções. E não se pode gerir um país com base nalgumas excepções. Que, louváveis que sejam, não serão com certeza um estímulo para uma carreira.
A grande esperança dentro do “status quo” criado reside no contrato colectivo de trabalho, que se pretende abranja tudo, hospitais privados e hospitais empresarializados. Estes adquiriram as regras e a liberdade da medicina privada, embora com capital do Estado. Mas este apenas pode intervir na dotação orçamental, na nomeação dos conselhos de administração e na avaliação dos relatórios finais, não pode dirigir ou alterar a gestão propriamente dita. Veja-se, por exemplo, que todos os conflitos eventualmente existentes com os trabalhadores – já não funcionários públicos – não são resolvidos em sede do Ministério da Saúde, terão de ser dirimidos nos tribunais, civis ou administrativos. Os trabalhadores – médicos incluídos – terão de se queixar ao sindicatos, onde, aliás, pelas novas regras, terão de
estar inscritos.
As novas leis de gestão hospitalar e da administração pública, ao acabar a função pública tal como a conhecíamos, vieram, na verdade, curiosamente, proletarizar mais os médicos e indirectamente aumentar a intervenção dos sindicatos. Estes são os interlocutores legais do governo e dos patrões, e os representantes dos médicos face aos tribunais em problemas laborais. O contrato colectivo insere-se nesse campo e, dadas as especificidades e as diferenças entre os vários tipos de actividade médica, não sei se a evolução não passará também por uma diferenciação de sindicatos e pelo consequente aumento do seu número.
No que respeita à actividade hospitalar – que interessa especificamente à nossa Associação – o contrato colectivo virá impedir o que agora se passa com contratos individuais feitos à completa vontade dos gestores dos hospitais, contratando quem querem, pelo ordenado que decidem, com a diferenciação que entenderem, sem prestarem contas a ninguém. E sem os contratados saberem mesmo quanto ganham os outros. Quer dizer, pelas mesmas funções – independentes do seu grau e categoria obtidos nas carreiras médicas moribundas - podem auferir vencimentos absolutamente diferentes, e sem sequer o saberem. Nestas condições, qual o estímulo para procurarem ascender numa carreira profissional? Estímulo, sim, para terem amigos políticos que lhes facultem de algum modo uma contratação que tem muito de política, no sentido óbvio da “politiquice”. E que lhes permitam, por exemplo, obter uma licença sem vencimento e acto contínuo serem contratados para fazer o mesmo que faziam antes mas pelo triplo do pagamento… Mais uma vez discricionariamente e sem qualquer relação com quaisquer carreiras passadas e muito menos futuras.
Mas se o contrato colectivo pode pôr alguma ordem nisto, continuará a não haver quadro de trabalhadores em cada uma das empresas-hospital, entregues que estão pela actual lei de gestão hospitalar à actuação individual de cada um dos conselhos de administração. Consoante o que planearem para o “seu” hospital (e pode ser deles tão pouco tempo como 3 anos, ou até menos), assim poderão contratar estes ou aqueles médicos, mais ou menos diferenciados. Preferindo os mais diferenciados, claro, se lhes pudessem pagar tão pouco como aos menos diferenciados. Mas se o contrato colectivo não permitir isso, terão de investir nos mais baratos, que esses irão com certeza progredir por si próprios, ganhando experiência ao tratarem muitos doentes, de preferência com pouca despesa... E quem subir no grau de diferenciação, ira passar a receber mais? Ou terá de procurar outra instituição que lhe queira pagar o correspondente ao novo grau? Quem passará a receber mais? Quem for nomeado por serviços prestados? Ao hospital, ou a um ocasional conselho de administração?...
Em que medida poderão coexistir, na actual gestão hospitalar, graus e categorias obtidos por concurso (sejam quem forem os júris para tal) e a avaliação burocraticamente feita por chefes nomeados discricionariamente em cada instituição, com regras como as do SIADAP, que, se não fossem desmotivantes e geradoras de irritação, conflitos e desinteresse, seriam risíveis por ridículas?
E qual a repercussão de tudo isto na formação médica contínua?
É todo um conjunto de problemas que foram criados há menos de dois anos e que estão por resolver. De que continuaremos a falar na próxima vez.
C Costa Almeida in Revista da Ordem dos Médicos e TM

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