11.1.15

REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS 
MAIS DE 30 ANOS

Parte I
Carlos Costa Almeida
  
Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. Tive a sorte de nascer para a cirurgia geral ao mesmo tempo que nasciam para todo o país o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras Médicas e os Internatos Médicos. Os quatro fomos companheiros ao longo destes anos e não me agrada a ideia de podermos vir todos a desaparecer um dia ao mesmo tempo (Parte I destas Reflexões). A cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes anos, progressos e outras alterações que talvez o não sejam, e por isso merece com certeza a reflexão de nós todos, cirurgiões gerais (Parte II).

Serviço Nacional de Saúde (SNS)

O SNS foi uma ideia nascida no Reino Unido e depois aplicada no nosso país com um êxito notável. De tal modo que foi sobrevivendo sob a governação dos vários partidos que, sozinhos ou em combinações várias, dela estiveram encarregados. A ideia era o Estado prestar cuidados de saúde a todos os cidadãos, como parte das suas funções e aplicação dos impostos recebidos. Por isso os meios para essa prestação foram a pouco e pouco espalhados por todo o território nacional, em zonas urbanas e rurais e independentemente da sua concentração populacional, na forma de centros de saúde para cuidados primários e hospitais para os secundários. Estes últimos foram hierarquizados em termos de diferenciação, partindo do princípio de que todos os doentes, vivessem onde vivessem, teriam um contacto rápido e fácil com um hospital, capaz de lhes resolver a maior parte dos problemas de saúde ou de os direcionar para outros se precisando de cuidados mais específicos ou diferenciados.
Estabeleceu-se por todo o país uma rede de hospitais estatais de boa qualidade, tratando os doentes que os hospitais das Misericórdias até aí não possuíam capacidade de tratar. E que tinham por isso de “ir para Lisboa” (ou para o Porto, ou para Coimbra, onde estavam os hospitais com os meios, ligados às Faculdades de Medicina e onde o ensino pré e pós-graduado era feito).
Houve, assim, que construir muitos e equipar adequadamente todos, também com recursos humanos, estes capazes de assegurar as funções que não eram mais as de canalizar doentes para os hospitais dos grande centros, antes fornecer uma medicina com a mesma qualidade em todo o território nacional.

Carreiras Médicas

Ao mesmo tempo desenvolveram-se as Carreiras Médicas, cujo embrião residiu nas carreiras médicas dos Hospitais Civis de Lisboa: as Carreiras Médicas Hospitalares desde logo estenderam os seus princípios gerais aos Cuidados de Saúde Primários, embora se tivessem sentido desde sempre diferenças, sobretudo pelo facto de o trabalho médico hospitalar ser necessariamente muito mais de equipa e interactivo.
Os quadros dos hospitais públicos foram preenchidos por especialistas com vários graus de diferenciação, estabelecidos por apreciação da sua actividade profissional, clínica e científica, e exames com provas públicas entre pares. O exame de entrada houve tempos em que era o mais difícil e exigente, e os graus conseguidos na sua carreira profissional hospitalar permitiam e obrigavam os médicos a um envolvimento e uma responsabilidade cada vez maiores na gestão dos Serviços e dos Hospitais.
Desse modo se espalharam por todos os hospitais do país cirurgiões competentes e motivados para trabalhar, aplicando as suas capacidades e conhecimentos,  em vez de ficarem a gravitar em torno dos hospitais centrais já preenchidos, ou de irem para o interior trabalhar nos hospitais das Misericórdias locais, realizando toda a vida apenas a cirurgia que as condições limitadas desse hospitais lhes permitiam fazer.  Aproximar cirurgiões e doentes em instalações de qualidade, com bons resultados, foi um avanço notável em termos de saúde.
Com o estabelecimento dessa actividade cirúrgica em todo o território nacional, incluindo os hospitais mais periféricos, foi possível, e natural, estender a todo o país a formação pós-graduada, com qualidade homogénea, aumentando de forma decisiva a capacidade para essa formação. O que, por sua vez, contribuiu também, e decisivamente, para a fixação de médicos nesses hospitais.

Internatos Médicos

Os Internatos Médicos, para formação pós-graduada até à especialização, foram organizados no nosso país de um modo que teve muito de original, e que incluiu aspectos mais tarde recomendados pelo Advisory Committe on Medical Training, da Comissão Europeia: remunerados, acompanhados por um orientador, com um currículo mínimo estabelecido e um programa de formação, avaliação contínua, com direitos e deveres legalmente estabelecidos, com o objectivo de criar as condições necessárias para uma boa formação, quer teórica quer prática.
Esta organização para ensino, a que os jovens médicos têm acesso por meio de um exame público nacional, veio substituir a especialização por convite dos directores dos Serviços (em geral acompanhando nos hospitais ligados às Faculdades de Medicina o convite para assistente), ou a formação chamada “voluntária”, feita a título de favor, sem programa específico e sem direito a qualquer remuneração pelo trabalho prestado nessa actividade, com tónica no exame final pela Ordem dos Médicos, no que antigamente se chamava “tirar a especialidade à Ordem”.
Na sequência directa dessa situação anterior, já depois de estabelecidos os internatos e com o seu acesso regulamentado mantiveram-se dois exames finais, pelo Ministério da Saúde e pela Ordem dos Médicos (na base de “o meu exame é melhor que o teu”...), até a titulação ser unificada, tal como se mantem hoje.
O trabalho dos internos é pago, mas as responsabilidades de que são encarregados devem estar de acordo com o seu ano de formação e os conhecimentos que entretanto adquiriram, reconhecidos pela sua avaliação contínua. Há uma relação óbvia com as carreiras na sua estruturação, ambos com formação progressiva avaliada continuadamente e com responsabilidades crescentes dela decorrentes. Das quais faz parte integrante e obrigatória a ajuda à formação e ao trabalho dos mais novos.

Entretanto

Entretanto, foram criados os hospitais empresa (EPE), ideia que até poderia ser boa no sentido de tornar mais ágil e responsável a gestão dessas instituições, concedendo a cada uma a possibilidade de se destacar das outras pelos resultados e pelo melhor aproveitamento das condições existentes. No entanto, a primeira consequência dessa empresarialização é que passou a dominar a gestão puramente administrativa dos hospitais, eclipsando a gestão clínica, e os médicos passaram a ser apenas técnicos a fazer serviço numa empresa dentro do plano definido pela hierarquia administrativa. Contratados para funções especificas e às vezes transitórias, por objectivos individuais ou ao molhe, a ideia de equipa a fazer escola aperfeiçoando-se dia a dia foi sendo substituída pela de uma máquina produtiva que interessa sobretudo manter o mais oleada possível. A empresarialização, reclamada como mecanismo de agilização e maior eficiência, redundou numa mais completa funcionarização dos médicos, agora até com horários ao minuto e relógios de ponto. Que discutem e reivindicam acima de tudo contratos, horários e remunerações.
Como cúmulo do triunfo da gestão administrativa, alguns colegas, em vez de lutarem pela primazia da gestão clínica a cargo dos médicos, com a ajuda administrativa julgada necessária, renderam-se a esta e também quiseram ter um curso rápido de administrador. E alguns até se desligaram da medicina por isso... É o caminho inverso do que faz falta.
É claro que os médicos tiveram de continuar a desempenhar funções de direcção técnica, mas por nomeação aleatória, já que a hierarquização pela competência traduzida na avaliação periódica entre pares esbateu-se por completo. Dito por outras palavras, as carreiras, se bem que nominalmente mantidas, deixaram de ter sentido. Os concursos dentro delas passaram a ser apenas uma espécie de subida de escalão remuneratório, apesar do esforço meritório de alguns Colégios para reservar pelo menos a direcção dos Serviços para os mais graduados dentro de cada Serviço. O que nem sempre se verifica, prevalecendo às vezes o critério discricionário “amigo” e todo poderoso da direcção do hospital.
Desvalorizadas as carreiras médicas, o esforço para nelas singrar necessariamente feneceu, isto é, o esforço pela maior diferenciação, no sentido de mais experiência, conhecimentos, trabalho produzido (e não de sub ou super-especialização, que serão alvo de reflexões futuras). Sendo certo, e valha-nos isso, que o brio e vontade de fazer melhor de muitos de entre nós compensarão essa falta de estímulo externo, continuará a faltar a avaliação independente  e comparativa dos resultados conseguidos, e com ela a possibilidade de se acreditar verdadeiramente na ascensão por mérito.
Quando da minha permanência profissional no Reino Unido, explicava eu a dada altura com algum orgulho que os concursos das carreiras no meu país, nomeadamente o de entrada no quadro do hospital, tinham um júri de maioria de fora do hospital, com o intuito de garantir isenção na avaliação. O comentário feito pelos ingleses presentes, “Então são os outros hospitais que escolhem a equipa do teu?”, abalou seriamente a minha visão nessa matéria.  
Os hospitais EPE vieram permitir a contratação directa de cirurgiões, de acordo com as necessidades de cada hospital. O desejo de contratar os melhores deve estar sempre presente em qualquer empresa, e deve poder ser posto em prática. Surgem de vez em quando concursos para admissão nos hospitais, mas que, na ausência de exames com provas públicas, funcionam como entrevistas de emprego, com a subjectividade que as mesmas necessariamente têm. Mesmo quando se lhes quer imprimir alguma objectividade, como nos concursos fechados para recém-especializados, cujo “background” profissional não extravasa o internato de formação específica terminado e avaliado imediatamente antes, vemos resultados extraordinários como o de em seis candidatos o pior classificado no internato ficar em primeiro lugar, ou em quatro o melhor ficar em último. Pensando bem, no Reino Unido é uma coisa, por cá é outra...
Uma alteração positiva foi a possibilidade de os especialistas poderem mudar de local de trabalho com facilidade, por interesse próprio ou das instituições, sem se ter de passar por concursos morosos e que tornavam essas mudanças muito difíceis. Com o aspecto negativo de a gestão administrativa, por vezes demasiado enfeudada a políticas locais ou partidárias, aí ter passado a poder interferir, inclusivamente usando essas mudanças como arma de pressão política eleitoral. E fala-se de os hospitais passarem de novo para as Misericórdias, ou para as Câmaras Municipais, tornando-os ainda mais locais e dependentes da política local e das suas tricas.
O Estado continua a providenciar cuidados de saúde à população, mas sob a tónica do corte nas despesas com a saúde e com os funcionários públicos. E essa tónica tem sobretudo justificado duas acções: por um lado, encerramento de algumas instituições, fusão de hospitais e concentração de Serviços; por outro, pagamento a instituições privadas da função de tratar doentes públicos. Isto levou ao aparecimento nos grandes centros urbanos de muitos hospitais privados, e clínicas, com boas condições técnicas, muitos deles já com um quadro de especialistas próprio mas que dão também trabalho a muitos outros a trabalhar nos hospitais públicos.
A redução de capacidade instalada no público, a par duma provável emigração forçada de especialistas que entretanto se vão formando arrastará consigo uma redução significativa da capacidade formativa. E esta virá agravar o resultado do desaparecimento das carreiras hospitalares, que eram um estímulo fundamental para a formação. Com a agravante ainda de os especialistas das instituições privadas, no momento, provirem todos dos hospitais públicos.  Há sempre a possibilidade de se vir um dia a assistir a uma mudança de paradigma na formação médica pós-graduada em Portugal, com envolvimento significativo da medicina privada, mas por agora, tendo sido os internatos médicos construídos lado a lado com as carreiras, a derrocada destas é de temer que acabe por levar aqueles a ruir também.  

Como última destas reflexões, uma preocupação, em termos de saúde pública nacional, com a concentração obrigatória que se anuncia de tudo o que seja patologias mais complexas e meios técnicos e humanos mais diferenciados nos grandes centros urbanos, quer no público quer no privado. Essa concentração poderá levar a uma nova desertificação de todo o interior em termos de cirurgiões diferenciados, capazes, ambiciosos do ponto de vista profissional, que mais uma vez irão gravitar nesses grandes centros, embora agora com a possibilidade de trabalhar nas instituições de saúde privadas entretanto instaladas, pelo menos nas que quiserem investir em cirurgia diferenciada com a qualidade necessDesse modo os doentes do interior vestir em grande cirurgia mais diferenciadis uma vez ir levs condiç meu paabalo,ária. Desse modo os doentes do interior de novo terão de “ir para Lisboa”... E a capacidade formativa pós-graduada voltará progressivamente a circunscrever-se aos grandes hospitais (tornados entretanto ainda maiores). É, de certo modo, o caminho inverso do que se percorreu nestes últimos trinta anos. Apesar de isso, ao fim e ao cabo, acompanhar tudo o que tem levado a concentrar a população e os meios nos nossos grandes centros populacionais, com desertificação da periferia (o que é, aliás, característico de qualquer país pobre e com dificuldades sociais), não creio que seja um modelo a desejar para o futuro. Esta é uma questão de bom senso e de não ignorar o que previamente deu bom resultado.

Pub. Revista Portuguesa de Cirurgia, Numero 31, Dez 2014

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