11.10.15

REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS 
MAIS DE 30 ANOS

Parte II
Carlos Costa Almeida
  
Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. A cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes anos, progressos e outras alterações que talvez o não sejam,  e por isso merecem com certeza a reflexão de nós todos, cirurgiões gerais.
A maior alteração foi, sem dúvida, a introdução da via endoscópica, seja laparoscópica, toracoscópica, retroperitoneoscópica ou outra, e a sua relação de dependência com toda a tecnologia a ela ligada.  As intervenções cirúrgicas realizadas por essa via são exactamente as mesmas que as anteriormente executadas por via aberta, permitindo, no entanto, reduzir muito o grau do traumatismo cirúrgico, conseguindo-se uma alta muito mais precoce e um menor número de complicações, ao mesmo tempo que, nalguns casos, se tem uma visão significativamente mais precisa do campo operatório. Trabalhando num espaço fechado criado pela insuflação de gás, ou ajudados pela visão de perto fornecida pela câmara de videoscopia, vemos o que doutro modo não seria possível. E, utilizando instrumentos cirúrgicos cada vez mais elaborados, realizamos por uma abordagem mínima intervenções que, às vezes, através duma incisão extensa seriam muito mais difíceis e trabalhosas.
Há intervenções na cirurgia geral que são notavelmente mais fáceis pela via laparoscópica (como, por exemplo, a colecistectomia, a fundoplicatura gástrica, a apendicectomia), ou retroperitoneoscópica (como a ressecção suprarrenal), outras executadas com a mesma facilidade e outras ainda um pouco mais custosas mas lucrando o doente com o acesso mínimo. Nessas condições, é evidente que é a abordagem endoscópica que deve ser preferida, sempre que não houver contraindicações gerais ou locais que a devam afastar.
Pelo menor traumatismo e maior simplicidade de execução, depois de adquirido o know-how, a videoscopia veio mesmo permitir reabilitar algumas intervenções a caminho de serem pouco praticadas ou até abandonadas. É o caso da laqueação de perfurantes venosas insuficientes nas pernas, em doentes com insuficiência venosa crónica dos membros inferiores, tratamento com indicações indiscutíveis mas, pela dificuldade na localização exacta dessas veias, a ser substituído pela sua ablação transcutânea ecoguiada (por radiofrequência ou escleroterapia), também ela nada fácil, diga-se em abono da verdade, e que a abordagem cirúrgica endoscópica subapnevrótica torna muito fácil para o cirurgião, para além de estar naturalmente integrada na mesma intervenção que lhe vai permitir tratar as outras veias varicosas. E a simpaticectomia toracocervical, e a lombar. Esta continua a ser uma última hipótese em doentes com lesões ateroscleróticas isquémicas não revascularizáveis dos membros inferiores, com possibilidade de 60% de induzir melhoria clínica significativa sem ser, no entanto, possível prever o resultado em cada caso; por via endoscópica não é traumática, não é dolorosa, praticamente não tem complicações, permite a alta poucas horas depois, pode ser realizada em ambulatório e, feita no internamento do doente isquémico, não prolonga esse internamento. Passou, por isso, a valer a pena nos casos em que está indicada.
Curiosamente, a abordagem endoscópica levou por vezes a alterar os passos nas intervenções, por maior facilidade, e isso veio demonstrar que algumas regras classicamente mantidas para a sua realização afinal não deviam existir porque não se justificavam. Duas conclusões a extrair: é possível praticar a mesma boa cirurgião de modos diversos, que devem ser escolhidos de acordo com a regra da maior facilidade de execução em cada caso, e essa escolha é possível para os que detêm a experiência e os recursos técnicos cirúrgicos necessários.
É, portanto, uma via de acesso que devemos ter disponível e que deve ser utilizada quando indicada. Quando da sua divulgação entre nós, no início dos anos 90, apenas alguns centros tinham essa tecnologia, e só alguns cirurgiões a podiam, portanto, utilizar. Eram cirurgiões experientes, mas formados na abordagem aberta, pelo que tiveram de adquirir a postura técnica para vídeoscopia. Muitos conseguiram-no (pela prática e através de cursos de aprendizagem, primeiro mais básicos, depois mais elaborados, obtidos no estrangeiro ou dentro de portas, e que se foram disseminando pelo país), alguns não, tendo sido isso, até, causa declarada ou inconsciente de algumas reformas antecipadas. Hoje em dia é prática corrente, em muitas situações muito mais frequente que a via aberta, e o seu ensino já pode ser feito como anteriormente, pelo trabalho normal: ajudando, fazendo ajudado, fazendo, depois ensinando. O problema da aprendizagem põe-se hoje na cirurgia aberta, já que ela é muito menos vezes praticada e, portanto, as possibilidades de a aprender dessa forma se reduziram.
A evolução da tecnologia também veio permitir criar um conjunto de possibilidades de ensino da cirurgia, para além do seu exercício e da velha cirurgia experimental em animais. Há modelos para treino em cirurgia vídeoassistida e em suturas mecânicas, e há todo um conjunto de meios audiovisuais que nos podem fazem aprender a operar duma forma semelhante à dos pilotos de avião a pilotar antes de chegarem ao avião real. É claro que actualmente é muito mais fácil aprender cirurgia que há umas décadas atrás, com a variedade ampla de meios de aprendizagem de que dispomos. Sendo certo que a execução nos doentes tem de fazer parte integrante também dessa aprendizagem, esta não está tão dependente dela como estava antigamente. O conhecimento da anatomia, ter noção do conjunto da intervenção a praticar e de cada passo dela de per si, saber o que se pretende conseguir, as complicações a evitar, o que fazer para as corrigir, tudo isso se deve aprender antes de operar um doente. Mas sendo tudo isso muito importante, fundamental e inultrapassável é a clínica, são as indicações, a escolha e o momento da intervenção, o seguimento do seu resultado. Devemos continuar sempre a lembrar, e cada vez mais com a explosão da tecnologia que nos avassala, o aforismo que diz: “Bom cirurgião é o que sabe operar; melhor o que sabe quando operar; e melhor ainda o que sabe quando não operar”.
A tecnologia em vídeo aproveitada na vídeocirurgia teve múltiplas outras aplicações. Vivemos na época dos videojogos, cada vez mais realistas e sofisticados, e os nosso jovens cirurgiões pertencem à sua geração. Ao longo da sua juventude adquiriram com entusiasmo e persistência as habilidades e a visão ligadas à videoscopia, que, naturalmente, aplicam a esse tipo de abordagem cirúrgica. É mais um exemplo de aplicação translacional de habilidades e capacidades. O seu exercício pode ser excitante, e nalguns cirurgiões poderá levar à postura de querer fazer o maior número de pontos numa operação endoscópica... mesmo que o doente perca o jogo. Há que saber quando desistir, parar e converter para cirurgia aberta.
Outro aspecto crucial na evolução tecnológica foi a informatização de todo o processo clínico, e a possibilidade de ele acompanhar virtualmente o doente para onde ele vá. Muitas instituições em todo o país já foram capazes de a instalar de modo a, praticamente, fazer desaparecer o papel, facilitando o estudo, tratamento e seguimento dos doentes. Mas também aqui é preciso alertar para o perigo de nos focarmos exclusivamente nas virtudes da comunicação electrónica e nos esquecermos do doente real, da sua observação, de discutirmos, à sua cabeceira (na enfermaria, na sala de endoscopia ou de imagiologia), entre nós e com colegas doutras especialidades, multidisciplinarmente, sinais e sintomas, exames e estratégias, pensando colectivamente em soluções. Há que reverter a prática de certos hospitais em que os vários médicos envolvidos no tratamento dos doentes apenas comunicam por escrito, ainda nos velhos processos em papel ou já nos registos informatizados, aqui de modo ainda mais fácil por poder ser feita à distância (sem mesmo nunca verem o doente!). 
Em relação com a aprendizagem, hoje em dia alguns têm a ideia de que “só faz bem quem faz muito”, e que, portanto, para se fazer bem uma determinada intervenção há que fazê-la o maior número de vezes possível por unidade de tempo. Ora se é verdade que “a prática contribui para a perfeição”, alcançá-la não depende só do número de vezes que se repetem os mesmos gestos, como parece pensarem os que reduzem tudo a números. A rapidez com que se aprende cirurgia é individual, e está dependente, nomeadamente, para além das capacidades de cada um, da sua cultura médica e cirúrgica e da sua experiência prévia e também da concomitante. Naturalmente, um cirurgião que faça só uma intervenção cirúrgica, para manter a mão terá de a realizar muito mais vezes do que alguém para quem essa intervenção esteja incluída numa actividade cirúrgica intensa e variada. O que vai contra a orientação de se querer que os cirurgiões gerais desde o início da sua carreira se restrinjam a um determinado tipo de cirurgia, com abandono de todos os outros. Isso será amputá-los da possibilidade inestimável de adquirirem habilidades e recursos técnicos provenientes duma prática variada, e que os irão enriquecer indiscutivelmente como cirurgiões. Será condená-los a ser subespecialistas, e em cirurgia, também, “quem sabe só duma coisa nem disso sabe”. Para além de que o aspecto multifacetado dum profissional é sempre uma mais-valia e maior garantia de emprego. Outra coisa será, e desejável, o cirurgião experiente tornar-se superespecializado numa determinada matéria.
Se um motorista tirar a carta de pesados e for colocado de imediato em exclusividade numa carreira de autocarros com dez quilómetros de extensão, e passar dez anos a percorrê-la, ida e volta, vinte vezes ao dia, não haverá por certo quem conheça melhor esse percurso, e eu iria muito satisfeito com ele. Mas não o quereria a conduzir uma camioneta de excursão de Coimbra à Lousã ou, menos ainda, numa viagem a Paris.
Da cirurgia geral saíram várias especialidades cirúrgicas, mas isso aconteceu sempre por razões de maior especificidade na evolução da clínica médica relacionada com determinadas patologias, e em procedimentos diagnósticos ou terapêuticos específicos que foram surgindo em relação com essas patologias. Nunca nasceu nenhuma baseada apenas num determinado tipo de cirurgia, e com a justificação do número de intervenções realizadas por unidade de tempo. É natural que, num Serviço, determinadas intervenções menos frequentes sejam realizadas sobretudo por um ou dois cirurgiões, mas não de forma monopolista, excluindo todos os outros, e sempre enquadrados no conjunto do Serviço. Doutro modo a massa crítica para esse tipo de cirurgia reduzir-se-á a um ou dois... E, igualmente mau, o desinteresse forçado de todos os outros levará a que capacidades individuais possam ficar desaproveitadas, em proveito de alguns já estabelecidos mas eventualmente com menos capacidade. E o monopólio, com desaparecimento de competitividade ou emulação, é um factor de perda de qualidade.
Durante séculos a cirurgia foi de ressecção, excisando do corpo as partes doentes. Era uma atitude pouco elaborada, pode-se dizer, apesar de nalguns casos exigir grande maestria e conhecimentos anatómicos, e por isso os cirurgiões não recebiam da sociedade o mesmo respeito que os médicos. Era uma cirurgia mutiladora, anatómica, por oposição a uma mais recente, a que podemos chamar fisiológica: na qual se introduzem alterações na anatomia com o fim de recuperar uma função fisiológica desaparecida ou diminuída, ou de conseguir uma modificação no funcionamento do organismo. Tonou-se possível pelo conhecimento profundo dos mecanismos fisiológicos em causa, permitindo aos cirurgiões manipular as estruturas anatómicas de modo a reproduzi-los ou alterá-los. Exemplo disto é o tratamento cirúrgico do refluxo gastroesofágico e, mais recentemente, a cirurgia da obesidade. A avaliação pormenorizada e sistemática dos resultados das intervenções bariátricas permitiu perceber a sua influência directa no equilíbrio da diabetes mellitus (que não apenas pela redução ponderal), e vai, muito provavelmente, conduzir a mais conhecimentos na fisiopatologia daquela doença, bem como do nosso sistema endócrino e de outras perturbações do nosso metabolismo, para além da fisiologia do controlo do peso corporal. É de prever que num futuro próximo doenças como a diabetes e outras perturbações endócrinas afectando o metabolismo possam ser tratadas directamente pelo cirurgião, no que já se chama de cirurgia metabólica, numa evolução ao arrepio da habitual, que era de tratamento cirúrgico até haver tratamento médico.

Como reflexão final, é natural que algumas instituições se dediquem mais a uma determinada patologia, e assim se transformem em centros de referência, pela sua elevada diferenciação, pelos meios de que dispõem, e a colaboração directa, multidisciplinar, entre várias especialidades, pelos resultados conseguidos, pela ajuda e treino fornecidos a outros centros menos diferenciados, pelos trabalhos publicados e o contributo para o progresso nessa área. Os centros de referência para uma determinada cirurgia devem, assim, ganhar o direito a essa designação, e não ser-lhes outorgada pela benévola simpatia de alguém ou apenas por se restringirem a praticar essa cirurgia. E também aqui não deve ter lugar o monopólio, afastando todos os outros centros da cirurgia em causa. Porque o monopólio é, repito, factor de perda de qualidade: pela falta de emulação e competitividade, pela falta de oportunidades dadas a mais cirurgiões, por uma reduzida massa crítica a nível nacional, com apenas um punhado de especialistas a falar sempre do mesmo assunto da mesma maneira. Outra coisa é ter uma massa crítica maior, com uma hierarquização de competências e meios, permitindo tratar casos simples em centros menos diferenciados e os mais complicados em centros de maior diferenciação. Aproveitando-se assim toda a capacidade cirúrgica instalada por todo o território nacional, estimulando os cirurgiões de todo o país a serem cada vez melhores, tirando o máximo rendimento das condições existentes.
Pub. Revista Portuguesa de Cirurgia, Numero 32, Mar 2015

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