6.12.09

A Saúde, os Hospitais e a nova Legislatura - 1

O que espera a Saúde Hospitalar da Legislatura que aí vem? Alguém sabe?
Os programas apresentados pelos diversos partidos candidatos às eleições deixavam antever o que a Saúde seria para cada um deles? Temo que não. E temo mais ainda: não parece que nenhum deles tenha neste momento uma ideia muito precisa do que fazer com a Saúde. Partido do governo incluído. Um agora ex-Secretário de Estado da Saúde dizia publicamente não saber qual a evolução que o SNS viria a ter.
E, no entanto, todos dizem defender o Serviço Nacional de Saúde – o “seu” Serviço Nacional de Saúde. E multiplicam-se as comemorações e cerimónias alusivas aos 30 anos de SNS, numa manifestação que tanto pode ser entendida de vitalidade do mesmo como de suspeita, ou receio, de estar próximo o seu fim… Senão vejamos: não se festejaram os 10, os 20, nem sequer os 25 anos (bodas de prata), porquê agora?...
Mas esperemos que ele não esteja para desaparecer, quando nos Estados Unidos da América se luta desesperadamente para haver um arremedo de um. E quero crer que quem dirige o nosso Ministério também assim espera. A dificuldade reside em que tudo o que se faça agora na área da Saúde tem por trás esta inovação notável, que foi a maior e mais bem conseguida realização pública do Portugal democrático pós-25 de Abril, no seu conjunto com as Carreiras Médicas e os Internatos Médicos. Que a ser modificado só faria sentido se fosse para melhor. E já começou a ser modificado.
Desta nova Legislatura, com um equilíbrio de forças diferente, aguarda-se que consiga corrigir muito do que foi mal feito na Saúde e segue um caminho inapropriado. E, para começar, espera-se que os governantes oiçam quem trabalha e sabe realmente dos assuntos em causa, já que os resultados terão agora de ser a par e passo justificados, perante uma oposição com peso determinante na governação.
O círculo decisório da Saúde no nosso país está fechado: Ministério e Sindicatos. E a Ordem de vez em quando. De fora da discussão fica a restante sociedade, numa visão autocrática derivada directamente do entendimento abusivo que se fazia da maioria absoluta que existia. E que é o de assumir-se que os escolhidos em algum momento como representantes dum grupo passam a ter o direito de saber tudo e falar sempre por todos, em todos os momentos, entendendo-se escolhidos como detentores absolutos da verdade e do conhecimento. Como patrões ou donos, não como representantes. Será que a nova Legislatura, despida da maioria absoluta entendida daquela maneira, irá ter a virtude de abrir o círculo a todos os outros, aos menos iguais?
A empresarialização hospitalar levada a cabo teve consequências negativas de que não havia necessidade, e que urge corrigir, até para a tornar sustentável no tempo.
Para começar, as mudanças implementadas, do foro administrativo, foram alegadamente no sentido de tornar a gestão mais ágil, rápida e eficiente. Mas redundaram fundamentalmente na perda de controlo por parte do Estado do modo como a gestão de cada uma das suas unidades hospitalares é feita. Essa empresarialização, com uma autonomia quase absoluta de cada administração, levou a uma desierarquização nos hospitais estatais, com incontornável reflexo na actividade clínica e científica dos seus médicos, repercutindo-se negativamente na sua formação contínua e de especialização, por um lado, e, necessariamente e em consequência, na qualidade da medicina praticada, por outro.
Entendeu-se fazer enfraquecer as vozes médicas eventualmente discordantes do controlo oferecido aos administrativos dentro dos hospitais pela desierarquização dos Serviços, entregando a sua direcção a colegas menos graduados e com menor estatuto profissional, e mesmo pela sua destruição. Levando por essa via, concertadamente, ao afastamento dos mais diferenciados, para a reforma antecipada, para a actividade privada, para o desinteresse. Assim se tirou peso realmente à gestão clínica, pondo de parte sistematicamente os mais experientes e com provas dadas, para que a gestão administrativa fosse dominante. Curiosamente, quando os problemas que levaram à mudança eram, precisamente, do foro administrativo. Quer dizer, tornaram-se os problemas na sua própria solução. Com criação de mais problemas, como já era de esperar.
Retalharam-se os hospitais em múltiplas unidades entregues aos muitos administradores entretanto contratados, adjuvados por alguns médicos escolhidos pelas administrações, por critérios que são delas. Quando numa empresa, cujo fim único é lidar com doentes, o pessoal mais básico é também o mais evoluído tecnicamente, e o único que entende no seu conjunto e no seu pormenor o negócio de que se trata, é a ele que se deve entregar a sua gestão. Quer dizer, o caminho tem de ser exactamente o oposto do que foi tomado. A gestão hospitalar tem de ser basicamente clínica, centrada nos médicos, coadjuvados por pessoal administrativo com conhecimentos de contabilidade e gestão.
Obviamente é desejável que a qualidade da saúde em Portugal possa ombrear com a dos seus parceiros europeus – já foi uma das melhores, como se sabe, e nos últimos anos veio por aí abaixo – mas há um senão: temos pouco dinheiro. Duplo problema, portanto, para resolver: boa qualidade, pouco dinheiro. Que não se resolve seguramente pelo “contabilicismo”, deformação profissional dos contabilistas: poupar nas contas, para que elas dêem certas ao fim de cada mês. A gestão tem de ser muito mais do que isso, sobretudo quando o resultado é a saúde de todos nós. A boa medicina é que fica mais barata ao país, e essa, sim, é a resposta para aqueles problemas. E só os médicos a podem obter.
A gestão duma empresa hospitalar tem de estar centrada nos doentes que a procuram, e que são estimulados a procurá-la, através de quem lida directamente com eles, e os pode atrair ao hospital, e que, na verdade, justifica a existência da própria instituição – os médicos. Os processos administrativos, não despiciendos embora, são secundários, têm de ser elásticos e maleáveis, adaptarem-se ao que for preciso. Por não o serem é que surgiu esta mudança que acabou por pôr tudo o resto em causa.
E não havia necessidade. Aconteceu precisamente porque quem a gizou não é médico e não se aconselhou bem. Para tentar modificar a pequena parte de que tinha conhecimento, desorganizou tudo o resto. E “tudo o resto” é, só, o fulcro da questão.
Houve ministros não médicos que souberam entender os problemas da Saúde. Com certeza, ouviram os médicos, e restante pessoal da Saúde (o pessoal operacional, os que lidam com os doentes), e entenderam o que lhes foi dito. Mas duma ministra médica espera-se especialmente que estas críticas não caiam em cesto roto, tanto mais que são todas construtivas, porque podem levar a alterar caminhos que comprometem, do nosso ponto de vista, a sustentabilidade técnica, clínica, médica, do SNS e mais, da própria medicina praticada em Portugal. É isso que temos vindo a procurar demonstrar, erguendo a nossa voz, e da nossa Associação. E não desfalecemos, apesar de aparentemente ignorados pelo círculo da Saúde que se criou. Não nos poderão acusar de nada ter dito ou feito. Não teremos essa responsabilidade. Os responsáveis serão só os decisores e seus conselheiros. Apesar de que as responsabilidades no nosso país – políticas, sociais, morais – se diluem muito… Mesmo com as legais vamos vendo o que se passa…
Houve uma comissão ministerial que chegou à conclusão que não havia falta de médicos, até os havia possivelmente a mais. Isso teve consequências. Houve quem levantasse dúvidas, nós fomos desses. Mais uma vez não ouvidos. Limitaram-se severamente as entradas nas Faculdades de Medicina. Agora criam-se cursos de medicina rápidos, e têm de se importar médicos ao quilo – literalmente, por exemplo com a vinda de centenas de médicos cubanos negociada por grosso pelo nosso governo com o governo cubano. E a quem se pede responsabilidade?
No próximo artigo continuaremos, tocando noutros pontos muito sérios para o futuro da saúde do país em que vivemos, trabalhamos e adoecemos, e a ser encarados por esta nova Legislatura.
C. Costa Almeida, in Semana Médica

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