10.11.09

O ESTADO DA SAÚDE EM PORTUGAL EM 2009

A Saúde em Portugal sofreu uma mudança nos últimos anos, que a atingiu quando era uma das mais conseguidas no mundo, a um custo muito inferior à dos outros países da Europa, para não falar já dos Estados Unidos da América. A avaliação dessa mudança não poderá deixar de ser feita, não em termos teóricos ou meramente conceptuais, mas sim de resultados conseguidos, ou provocados, no imediato e a médio e longo prazo.
A nível hospitalar a mudança foi basicamente administrativa, invocando-se para ela uma necessidade de reduzir a todo o custo os gastos do Estado com a Saúde. Criaram-se os hospitais-empresa (EPE), o que, na prática, se traduziu por substituir a gestão clínica, feita por quem trata os doentes, por uma gestão puramente administrativa. Na sequência disso, ao mesmo tempo que se reduzia o pessoal clínico, em nome da contenção económica, aumentava-se exponencialmente o número de administradores, com o encargo aparente de levarem quem trata os doentes a fazê-lo do modo mais barato possível. Curiosamente, em França, num esforço também de reduzir custos (gastam muitíssimo mais que nós, mesmo em proporção), fizeram precisamente o contrário: começaram por dispensar drasticamente administradores e administrativos, deixando ficar quem cuida dos pacientes.
A medicina é uma matéria cuja qualidade se exige sempre a mais alta, e é complexa, específica, difícil, com nuances as mais variadas que só quem a ela se dedica há uma série de anos, e a vive, ou viveu, profundamente, pode tentar abarcar com algum grau de eficiência e eficácia. Praticar boa medicina é a maneira mais barata de praticar medicina. E isso é com os médicos.
Quer dizer, uma instituição que existe para tratar doentes deve ser gerida por quem sabe fazer isso. Pôr a gerir uma actividade específica quem a desconhece, é um caminho para o descalabro. Por isso, a gestão clínica deverá ser a base da gestão dum hospital, apoiada pela administrativa - e não ao contrário. No hospital, os trabalhadores mais diferenciados são os que trabalham na base da pirâmide de produção, em contacto directo com os utentes, fornecendo o que estes precisam. É desses que deve surgir quem vai ocupar o vértice, com a noção intrínseca de que não se deve transformar um acto médico num mero acto administrativo, sob pena de inapelavelmente o desumanizar.
Os conselhos de administração contratam, “descontratam”, nomeiam para as direcções intermédias quem bem lhes aprouver, independentemente do seu grau na carreira. Isso gerou uma desierarquização profissional, que redundou numa desorganização que vai progressivamente levando a uma degradação da qualidade dos serviços prestados, com maus resultados (alguns começam a ser conhecidos outros ainda não), dolorosos para os doentes, para os profissionais e até para as instituições.
Uma equipa médica hospitalar tem de ter um chefe esclarecido, com provas dadas, aceite como tal pelos seus membros. A carreira médica implica uma ascensão nesse sentido, e não meras avaliações administrativas, por bons serviços prestados à administração do hospital ou a quem esta encarregou de fazer a avaliação. Uma equipa sem chefia e orientação assentes numa liderança técnico-profissional reconhecida leva invariavelmente a má medicina, quer dizer, a medicina cara. Para além de inviabilizar uma formação médica pós-graduada adequada e entusiasta, que é o garante da qualidade da medicina praticada.
No agravamento dessa situação veio inserir-se a lógica da contratação preferencial de serviços externos, com o fim único de reduzir a verba para ordenados nas empresas-hospital. Ela levou a que os hospitais – sobretudo nas Urgências - se transformassem numa manta de retalhos, de mercenários trabalhando para várias empresas de fornecimento de médicos à hora, em exclusividade ou para além do seu serviço específico no hospital a que ainda pertencem. Esta mesma lógica, extravasando já, naturalmente, para os próprios profissionais (diz o nosso povo que cada um dança segundo a música que lhe tocam…), fez com que internos de especialidade, e até especialistas, prefiram fazer o trabalho médico pago por essas empresas a realizar o seu trabalho hospitalar próprio – é que auferem, nessas condições, muitíssimo mais.
A desierarquização e a mercenarização vieram ameaçar de morte as equipas médicas, que são uma mais-valia de qualquer hospital e que levaram muitos anos a formar-se. Muitos profissionais de grande gabarito preferiram, por tudo isto, sair precocemente dos hospitais, deixando-os desguarnecidos, quer na assistência quer no ensino, o que terá inegáveis repercussões muito negativas na qualidade da nossa medicina, num futuro próximo, tanto maiores e mais difíceis de corrigir quanto mais tempo se demorar a fazer as correcções necessárias no sistema criado.
A tónica quase exclusiva posta na administração dos hospitais por quem não sabe de medicina levou a uma situação muito problemática, ainda a agravar-se mas que já começa a dar sinais clínicos alarmantes. Mesmo que se reconstruam as carreiras médicas, será muito difícil, com esta lei de gestão, integrá-las nos hospitais. Tais carreiras – na verdade limitadas, no projecto existente, a dois graus, já que os dois últimos, de três, parecem ser uma espécie de pool que dá acesso ao mesmo - serão algo externo, não interferindo nas contratações hospitalares nem nas nomeações para os lugares de chefia intermédia, deixadas à avaliação administrativa de desempenho encomendada e corrigida pelos conselhos de administração. Quer dizer, os lugares de maior responsabilidade e autoridade técnicas continuarão, em cada hospital, entregues à discricionariedade de quem lá foi plantado também discricionariamente para dirigi-lo. Uma avaliação por concurso interno, contraponto em cada local às opções baseadas na política ou no gosto, desaparece em definitivo – é o “achismo” triunfante.
E no aspecto financeiro, as mudanças geraram menos gastos? Pessimismo face ao que tem vindo a público, a muito do que atrás se diz, e a actos de gestão como este: conceder licenças sem vencimento a alguns médicos do quadro, para depois os contratar por mais dinheiro e menos horas de trabalho, com as mesmas funções. Redução dos custos da Saúde nacional?!... Como?!...
Mas a preocupação economicista reinante leva alguns hospitais a filtrarem doentes e doenças, fechando consultas, reduzindo internamentos e urgências, empurrando para outros os encargos com doentes mais graves ou menos “rentáveis”. Há administrações de hospitais que se esforçam por descartar actividades clínicas que os doentes neles continuam a procurar, mesmo que isso implique não tratar doentes e desperdiçar a capacidade instalada ao longo de anos de esforço dos próprios médicos do hospital.
Isto tudo pode não acontecer ao mesmo tempo em todos os hospitais EPE, mas é indubitavelmente uma realidade. A realidade que resultou da nova gestão hospitalar e que urge encarar de frente e de olhos bem abertos, embora construtivamente. Uma gestão que secundarizou a gestão clínica, que reduziu os doentes a números de doentes com uma etiqueta com o preço, e que implantou legalmente o factor político ou de amizade na progressão dos profissionais no hospital, ignorando o seu mérito pessoal, científico e clínico e introduzindo uma dúvida razoável sobre a qualidade dos serviços prestados. Que nos punha em 5º lugar na Europa em 2000, e nos deixou em 26º num estudo publicado em 2008.
Carlos Costa Almeida, in Semana Médica Out 2009

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