6.12.09

A Saúde, os hospitais e a nova Legislatura - 2

E eis o primeiro resultado positivo da nova Legislatura, já sem a maioria absoluta que ensombrou e inutilizou todo o anterior debate parlamentar: a ministra da Saúde resolveu acabar com as taxas moderadoras nos internamentos e cirurgias nos hospitais públicos, contra as quais a nossa Associação tanto e tão persistentemente se bateu. Se constitucionalmente a saúde a cargo do Estado deve ser tendencialmente gra-tuita, aquelas taxas eram na verdade uma aberração, só possível de fazer vingar no ambiente de decisão autocrática que aquela maioria foi proporcionando, até ser removida. Acho que é agora altura de o círculo de decisão restrito que se estabeleceu na Saúde, coincidente com aquele ambiente, se abrir aos muitos outros, associados e representados, que trabalham naquela área, e cujas opiniões e sensibilidades, divergentes daquele círculo, parecem ser consideradas simplesmente inexistentes.
Muitas decisões desajustadas foram tomadas nestes últimos anos, e que necessitam de ser corrigidas, embora não o possam ser com tanta facilidade como aquelas taxas o foram. Esperemos que a nova Legislatura torne isso possível, com base na sociedade civil médica considerada em sentido lato e não da maneira exclusiva e redutora como tem sido. Nós continuaremos a falar, embora isso nos traga inconvenientes.
Tudo o que dizemos tem um fim construtivo, sugerindo alterações imprescindí-veis sem destruir completamente tudo o que foi feito. No artigo anterior falámos das mudanças administrativas da gestão hospitalar e das suas consequências negativas na gestão clínica, quando a gestão dos hospitais deve ser dirigida ao exercício da medicina.
A colocação das carreiras médicas fora dos hospitais transformou-as, na prática, numa espécie de curso pós-graduado com duas etapas. Não que isso seja mau, numa tentativa de estimular a formação contínua, mas ao não terem uma repercussão directa na vida intra-hospitalar perdem toda a força enquanto carreiras. Outra coisa seria se, como em qualquer carreira, na progressão para cargos de maior responsabilidade e de direcção técnica fossem necessariamente consideradas as carreiras médicas dentro de cada instituição, com comparação objectiva entre os vários elementos de cada grau, balizando as escolhas feitas. Estas vão ser feitas na mesma, mas segundo critérios a que aquelas são totalmente alheias. Nada de diferente do que já se faz, aliás. Amizade, ini-mizade, vingança e compadrio são aqui pedras de toque, ou podem ser, respeitadas pela lei que se estabeleceu.
“Um chefe fraco faz fraca a forte gente”, dizia o nosso Camões. Diminuir o nível no topo arrasta uma diminuição de todos os níveis abaixo. Numa diminuição iniludível de qualidade, com repercussões a médio prazo na nossa medicina e na nossa saúde. Que os administradores nem sequer notarão por não se poderem contabilizar directamente, mas que serão a explicação para uma medicina de má qualidade e cara. Ou cara porque de má qualidade. Ninguém se admire depois – a descida actual no “ranking” internacional tem sido já a pique - ou se assaquem culpas a todos os médicos.
As administrações hospitalares empresariais contratarão quem quiserem, dos graus que entenderem, mas não sei o que farão em termos de ordenados se os seus contratados subirem entretanto de grau. Serão obrigados a pagar-lhes mais? Precisarão de tantos médicos no topo da carreira? É que poderão ser todos, o que teoricamente até seria desejável, mas terão dinheiro disponível para lhes pagar? Com certeza outros menos graduados fariam o mesmo trabalho em termos numéricos, ou até mais, por menos dinheiro…
Os hospitais EPE estão a deixar sair os seus médicos e a contratar outros, ou os mesmos, mas em regime de mero fornecimento de serviços, ao estilo de policlínicas. O contrato individual de trabalho é agora a regra, com remunerações díspares e acordos de trabalho os mais variados, beneficiando objectivamente alguns de maneira às vezes inesperada, para dizer o menos, por razões que com certeza se lhes poderiam pedir, já que se trata de dinheiro de todos nós e não de instituições privadas. Será que o contrato colectivo de trabalho que se vem anunciando virá anular estas combinações pessoais? Terá de ser igual para todos? Pelo menos para os sócios dos sindicatos, como a lei actual prevê, sim. Ser sócio dum sindicato é condição sine qua non para ter acesso a alguns tipos de contrato colectivo de trabalho; se não se for, há o contrato colectivo geral. Ou então o contrato individual, para alguns contemplados, quem sabe se até muito mais vantajoso (isto se o círculo decisório na Saúde não o eliminar entretanto).
Ausência de carreira médica dentro de cada instituição; falta de estímulo estru-turado institucional para progressão científica; nomeações para chefias técnicas e direcções intermédias assentes puramente no “achismo”, de base muito variada, de quem transitoriamente manda no hospital; remunerações díspares por fornecimento de serviços específicos, à peça ou à hora, dos trabalhadores médicos, cuja formação contínua passou a não ser uma preocupação do hospital onde trabalham; perda da ligação de muitos médicos aos doentes e à equipa do hospital onde prestam serviço.
Tudo isto redunda na falta de sustentabilidade científica e clínica dos hospitais. Para uma mudança administrativa não havia necessidade de nada disto. Não quero crer que fosse isto que o ministro Correia de Campos idealizou. Acho mais que se tratou de um efeito colateral inesperado para ele.
Estamos certos que o bom senso acabará por vir ao de cima. Só não queríamos que demorasse tempo demais, com os estragos na medicina e na saúde que já se começam a notar. Quanto mais depressa houver coragem para as correcções necessárias, melhor. Por isso, e porque mantemos a esperança, vamos chamando a atenção de quem decide.
C. Costa Almeida in Semana Médica

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