3.4.07

A requalificação das Urgências

O maior problema das urgências médicas no nosso país é que elas se transformaram na porta habitual de acesso aos cuidados médicos. Isto porque o nosso sistema de saúde se “urgencializou”, face à dificuldade de os doentes obterem consulta doutro modo. Por outro lado as urgências “hospitalizaram-se”, e tudo isto no seu conjunto, e não por outras causas quaisquer, faz com que doentes se acumulem à espera em serviços de urgência hospitalares que, doutro modo, estariam perfeitamente equipados, em material e recursos humanos, para dar a melhor das respostas.
Este é o diagnóstico há muito feito. A terapêutica implica resolver os problemas a montante das urgências hospitalares, em dois aspectos: consulta a tempo e horas dos doentes que dela entendem precisar, e acesso a urgência eventualmente não hospitalar, aquela que também se chama de consulta urgente, que em grande medida deveria estar a cargo do médico de família. Começar pelo fim ou, como diz o nosso povo, “pôr a carroça à frente dos bois”, não pode dar bons resultados, se o que se pretende realmente é fazer a carroça andar…
A reestruturação das urgências terá, pois, que incluir, logo no seu início, as consultas urgentes, as quais só o médico que vê o doente poderá classificar como urgência hospitalar, ou não. Esses doentes só deveriam ir ao hospital depois de observados pelo seu médico, ou por um médico num serviço de atendimento permanente. Não é eticamente lícito querer dificultar o seu acesso aos hospitais por qualquer outro modo, embora se reconheça a tentação administrativa de o fazer, embalada pela asserção que a maior parte não são verdadeiras urgências. E se o forem? Deveria bastar que apenas uma fosse e o doente sucumbisse por isso para tal nos repugnar. Talvez não se justifique ter uma instituição aberta toda a noite para ver dois ou três doentes, mas esses têm também de ser vistos por um médico a tempo e horas, o que não inclui, com certeza, uma deslocação obrigatória de 40 ou 50 quilómetros, em táxi ou ambulância, para lhe dizerem eventualmente que não tem nada de urgente… Grande visão, médica e económico-financeira, de quem nos locais agora abandonados – e a abandonar - pelo SNS instalou locais privados de atendimento médico e de enfermagem. Fazem aí o que o Estado se demitiu de fazer, e os contribuintes, que pensariam ter direito a acesso à saúde tendencialmente gratuito, passam a pagar directamente esses cuidados, de que necessitam.
E estes são os pontos fulcrais nesta matéria. O trabalho de “requalificação” das urgências hospitalares, pese embora a boa vontade e empenho da comissão nomeada para o efeito, só deveria ter lugar depois daquele primeiro passo ter sido dado. Então, e só então, se veria quais as que faziam ainda falta, aonde e como. Não haveria o período de vazio, de insegurança, que se está a criar para as populações mais isoladas no campo da saúde, e que nem sempre são só as que estão muito longe de grandes centros. Compreende-se a sua angústia, fruto não propriamente do trabalho apresentado mas da má planificação da sua aplicação. Planificação sem ter em conta minimamente nada do que atrás é apontado.
Embora o trabalho da comissão apresentasse alguns erros e incongruências, corrigíveis com certeza, a verdade é que dele de imediato resultaram unicamente encerramentos e desqualificações, alguns evitados ou negociados declaradamente apenas por razões de política local, e não de natureza técnica. O plano de requalificação assume-se, assim, antes de mais como um plano de poupança, dentro do objectivo geral do governo de poupar dinheiro com a saúde. Como a saúde era muito melhor que o resto do país, parece estar-se a procurar nivelá-la aos poucos, com economia substancial conforme anunciado pelos responsáveis pela saúde nacional. O resultado final ver-se-á em breve. Não se diga depois é que a responsabilidade é dos médicos.
Pub. Tempo Medicina on-line, 2/4/2007

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