27.1.07

OS GESTORES DOS DINHEIROS PÚBLICOS

Eu sou apenas médico, chefe de serviço da carreira hospitalar, director dum serviço, ninguém me atribuiu o título de “gestor” e nem isso me preocupa, dado o carácter pelo menos dúbio que essa designação ganhou nos nossos dias no nosso país. Limito-me a gerir o serviço onde trabalho, mas vou apreciando o trabalho de colegas que, também sem terem adquirido, por uma qualquer nomeação ou curso, aquele epíteto, gerem empresas de prestação de cuidados médicos, clínicas, consultórios, centros de responsabilidade integrada de hospitais, com assinalável êxito financeiro e notável qualidade científica e assistencial.
Não somos “gestores”, mas como cidadãos temos a possibilidade e a capacidade de apreciar os resultados das várias gestões públicas, sobretudo na área da saúde, enquanto cidadãos médicos, habilitados por isso a fazer e a entender a gestão clínica (que se vai agora chamando “clinical governance”) das instituições de saúde. São na realidade os médicos quem pode saber profundamente o que faz falta e o que não faz, o que é imprescindível para uma boa medicina a um baixo custo, onde se pode poupar e onde é necessário investir em recursos humanos e materiais para ter os melhores resultados a curto, médio e longo prazo, na certeza que a medicina que fica mais barata é a boa medicina. Com certeza que as contas, sob aquela orientação, será vantajoso que estejam a cargo de quem tem formação específica na área da contabilidade e administração, mas é na gestão clínica que se deve centrar a gestão de instituições cuja razão de ser é tratar doentes. Infelizmente o entendimento do nosso ministério da Saúde não tem sido esse.
A obsessão constante do ministério tem sido gastar o menos possível com a saúde, o que se tem reflectido – diga o senhor ministro o que disser aos órgãos da comunicação social - numa redução também, quantitativa e qualitativa, dos cuidados de saúde oferecidos e prestados às populações doentes. Que cada vez têm que percorrer mais quilómetros, perder mais tempo e gastar mais dinheiro em transportes para serem observadas por um médico, por causa do encerramento de serviços de urgência, de centros de saúde, de serviços de atendimento permanente, de maternidades. As equipas médicas hospitalares foram diminuídas, sendo em várias situações os doentes recebidos e seguidos por pessoal sem a devida qualificação. Os enfermeiros, os técnicos e os auxiliares de acção médica escasseiam. A introdução de medicamentos novos é proibida, o uso de técnicas terapêuticas e de diagnóstico mais modernas criticado por serem dispendiosas. Os médicos são aconselhados a reduzirem consultas e limitarem o número de intervenções cirúrgicas, já que do tratamento dos doentes observados resultará inevitavelmente mais despesa, e essa há que evitar a todo o custo. E por isso os médicos não são pagos pelo valor da hora extraordinária que deviam ser, e o governo foi ao ponto de alterar uma lei sua só para não pagar o que devia pagar. Assim todos os devedores o pudessem fazer… E, seguindo esse exemplo, há hospitais que arranjam desculpas de mau pagador para não pagarem aos seus funcionários médicos o que lhes é devido, e que chegaram ao ponto de deixar de fornecer água engarrafada ao pessoal que está de urgência toda a noite…
Enfim, um esforço titânico e inventivo, acima de tudo para poupar dinheiro, invocando sempre a apregoada falta de sustentabilidade do serviço nacional de saúde.
Mas eis senão quando se anunciam gastos sumptuários (milhões de euros) com sistemas informáticos vários, que seriam eventualmente de alguma utilidade se não estivéssemos num país em que se questiona a própria sustentabilidade da assistência médica aos cidadãos por parte do governo. Sistemas informáticos que não deveriam ter qualquer prioridade de aquisição, porque os doentes são vistos e tratados igualmente sem eles, porque há países muito mais evoluídos e ricos do que nós que não os possuem nos seus hospitais, e sobretudo porque não há dinheiro – segundo dizem - para o que é fulcral num qualquer sistema de saúde: tratar doentes.
Ele foi o Alert para os serviços de urgência, o programa para a marcação informática de consultas, o sistema de relógio de ponto por impressão digital. Milhões e milhões de euros. Faz lembrar aquela máxima popular “poupar na farinha e ser largo no farelo”. Somos os mais avançados do mundo nestes “gadgets” informáticos administrativos, mas depois questiona-se, por exemplo, e por razões económicas, o uso de “stents” medicamentosos em doentes coronários… Não é espantoso?!
E tudo o que o ministério conseguiu poupar, pelo racionamento imposto em 2006, parece não ter chegado, pois o senhor ministro já anunciou para 2007 cortes nos funcionários da saúde num total de 40 milhões de euros. Que é quanto vai custar o tal sistema informático para marcar consultas, como se essas marcações não se fizessem agora, sem quaisquer problemas que essa informatização possa vir resolver.
Todos nos lembramos de outra euforia informática no serviço nacional de saúde, há uns anos atrás, que terminou mal, no tribunal e na cadeia. Com certeza agora se trata duma situação diferente, estes sistemas informáticos não terão sido todos vendidos ao Estado pela mesma empresa, terá havido concursos públicos para a sua aquisição, não haverá qualquer relação de parentesco ou outra com membros do governo ligados à Saúde. Acreditamos que sim, embora não o saibamos ao certo. Mas que em termos de gestão de um orçamento deficitário nos choca, choca. Principalmente porque esse orçamento trata acima de tudo da saúde das populações.
Mas se calhar sou eu a falar, que não sou gestor, sou apenas médico.
Pub. Tempo Medicina, 29/1/2007, versão curta no Expresso, 27/1/2007

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