A EUTANÁSIA
Recentemente
no nosso país recrudesceram as conversas e as discussões sobre a eutanásia, e
houve inclusivamente uma votação no Parlamento com ela relacionada. Os cidadãos
não se devem alhear do assunto, e por maioria de razão os médicos, que não
podem mesmo ignorá-lo, já que ele os envolve directamente e por definição. Mas
é evidente que há antes de mais que saber, com rigor, do que se trata e sobre o
que se opina e eventualmente decide.
A palavra eutanásia
deriva dum vocábulo grego composto por “eu” (bom) e “thanatos” (morte), e
lireralmente significava “boa morte”, no sentido duma morte tranquila, sem
sofrimento. Não tinha, pois, a conotação polémica, e até ominosa, que hoje se
lhe atribui. Conta-se que o imperador romano Augusto, sempre que lhe diziam que
um conhecido havia morrido serenamente, exclamava “Que os deuses me concedam
uma eutanásia assim!”. No nosso tempo, o termo corresponde a ajudar um doente a
terminar a vida, para aliviá-lo de dor e sofrimento insuportáveis. Na verdade,
essa ajuda pode significar, realmente, pôr termo à vida do doente. Ou, sem medo
das palavras (que não se deve ter), matá-lo. Vejamos como e em que condições.
Sendo o
objectivo genérico da medicina “prolongar e vida e evitar a morte”, terminar a
vida não poderia deixar de suscitar uma série de acaloradas discussões no
âmbito ético, religioso, médico e jurídico. Alguns entendem-na como um acto de
misericórdia do médico, dentro das suas funções de cuidar dos doentes, fazendo
com que os que não podem ser salvos possam morrer “bem”, sem a indignidade dum
sofrimento atroz, destruidor em vida da sua personalidade; outros consideram
que é uma perversão dos seus objectivos, mesmo uma inversão, tal como na obra
de François Truffaut, Fahreneit 451, grau
de destruição, em que os bombeiros se transformaram nos que ateavam
programada e profissionalmente os fogos…
Antes de
continuar, tenhamos noção de alguns procedimentos relacionados directamente com
a ideia de eutanásia. Distanásia, por oposição, significa
“má morte”, e em medicina entende-se como o adiamento da morte de um doente que
se encontra em fase terminal, sem esperança de cura e em sofrimento, condicionando-lhe
uma morte lenta e dolorosa, com o recurso a tratamentos médicos considerados
desproporcionados. Com o mesmo significado é também usada a expressão "obstinação terapêutica".
Ortotanásia,
em alternativa às duas, é a morte natural, no momento certo. Não confundir
eutanásia com suicídio assistido, no qual o médico fornece ao paciente os
meios necessários para pôr termo à própria vida, desde que se verifiquem da
parte do doente os pressupostos de incurabilidade, grande sofrimento e desejo,
por isso, de morrer.
Eutanásia é o acto intencional de proporcionar a alguém
uma morte rápida e indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença
incurável e que provoca um grande sofrimento. Pode ser classificada em
voluntária e involuntária. Na eutanásia
voluntária é a própria pessoa doente que, de forma consciente e dentro dos
parâmetros necessários, pede para ser morto. Na eutanásia involuntária a pessoa encontra-se incapaz de expressar o
desejo de morrer e essa decisão é tomada por outrem, geralmente cumprindo o
desejo anteriormente expresso pelo próprio nesse sentido. A eutanásia pode
também ser classificada em activa e passiva. A eutanásia activa é o acto de intervir de forma directa e deliberada
para terminar a vida do doente, a eutanásia
passiva consiste em não realizar, ou interromper, o tratamento necessário à
sua sobrevivência. Esta última poderia eventualmente confundir-se com não
praticar distanásia, mas a diferença é que o tratamento abandonado poderia ser
eficaz na doença em causa, enquanto na segunda se procura apenas arrastar a
vida sem outro objectivo.
A
eutanásia, onde é permitida por lei, deve ser levada a cabo por médicos, ou sob
a sua supervisão, já que é realizada por motivos clínicos. Os mais comuns, da
parte de doentes terminais, são a dor intensa e insuportável, a dispneia
marcada e angustiante, a paralisia extensa. Também têm sido apontados a
incontinência, a disfagia, náuseas e vómitos, que provocam uma redução
significativa da qualidade de vida do doente e uma depressão profunda. Outro motivo
psicológico reside no medo de perder o controlo do corpo, a dignidade e a
independência. A verdade é que uma depressão psíquica conduz
caracteristicamente ao suicídio e, na impossibilidade deste, poderá justificar
o pedido de suicídio assistido ou de eutanásia voluntária; o que não significa
que, melhorando um pouco, e uma vez passado o período depressivo, o doente não
possa deixar de querer morrer.
A eutanásia
está no centro de um intenso debate público com diversas considerações de ordem
religiosa, ética e médica, que têm origem em diferentes perspectivas sobre o
significado e valor da vida humana. Entre os argumentos a favor da prática da
eutanásia estão a alegação de que as pessoas têm o direito a tomar decisões
sobre o seu corpo e escolher como e quando querem morrer, e que o direito à
morte faz parte dos Direitos Humanos (entretanto, se um qualquer indivíduo se
tentar suicidar procurar-se-á impedi-lo, e se tentar várias vezes poderá ser
proposto para tratamento psiquiátrico). Entre os argumentos contra, estão
razões que se prendem com a vontade de Deus, ou falta de respeito pela inviolabilidade
da vida, e pelo seu valor, ou considerações éticas sobre a função do médico,
que é tratar e não matar. Um óbice mais técnico é o de a permissão da eutanásia
voluntária, caso se aceite do ponto de vista moral, poder acabar por levar a
casos de eutanásia involuntária, para reduzir custos com a saúde ou ter mais
camas vagas (como na Alemanha na segunda guerra mundial, para acomodar o
excesso de feridos que vinham da frente de batalha), ou encobrir homicídios. ou
colaborar numa eliminação sistemática de todos aqueles que as autoridades
julgarem incómodos ou prejudiciais para a sociedade ou para a “raça” (eutanásia eugénica, voltando ao exemplo
da Alemanha nazi, em que a prática,
estabelecida legalmente e com suporte médico, sem ser nos campos de
concentração, foi de “terminar vidas que não valia a pena serem vividas”). Paralelamente,
invoca-se que a existência de cuidados paliativos de qualidade retirará a indicação
clínica para eutanásia ou para suicídio assistido, insistindo nessa antinomia.
Na maior
parte dos países não existe legislação específica a permitir a eutanásia, pelo
que terminar a vida dum doente que sofre, tal como fornecer-lhe os meios para o
suicídio, é homicídio, punível com pena de prisão, embora frequentemente
mitigada por ser um “homicídio piedoso”. Está, no entanto, dentro da lei o
médico decidir não prolongar a vida em casos de sofrimento extremo, e
administrar sedativos mesmo que isso diminua a esperança de vida do doente. Na
Europa, apenas Bélgica, Luxemburgo e Holanda autorizam a eutanásia activa e o
suicídio medicamente assistido, dentro de regras clínicas estabelecidas, sendo
a Holanda o primeiro dos três a torná-los legais (2001). Na Suíça, a eutanásia não
está legalizada mas o suicídio medicamente assistido sim, e do mesmo modo no
Canadá e em cinco estados dos 52 dos Estados Unidos da América. Do resto do
mundo, apenas a Colômbia autoriza a eutanásia voluntária activa e o suicídio
assistido. A eutanásia involuntária é ilegal em todos os países e geralmente considerada homicídio.
Mesmo nos países em que a eutanásia voluntária é legal, esta continua a ser
considerada homicídio se não estiverem cumpridas a condições previstas na lei. No
entanto, da Holanda chegam relatórios mencionando, para além de suicídios
assistidos e eutanásias a pedido, doentes mortos sem terem expresso desejo
disso, no momento ou previamente (por testamento vital, por exemplo), e mesmo
sem o seu conhecimento ou das respectivas famílias, embora, naturalmente,
sempre alegando-se razões médicas.
É, quanto a
mim, nestas últimas circunstâncias, e naquelas mais antigas, que residem as
maiores dúvidas na legalização do suicídio medicamente assistido, embora com
regras muito estritas e que o tornem capaz de ser moralmente aceite. É que elas
mostram ser possível o que é chamado “slippery slope”, isto é, de um
procedimento muito restrito se ir deslizando para um maior alargamento das
indicações, primeiro presumindo o desejo não expresso, depois resolvendo mesmo
sem essa presunção, e aí por diante, eventualmente misturando as razões
iniciais com fins diferentes, como seja de os médicos decidirem se doentes têm
ou não vidas que mereçam a pena ser vividas, ou se as camas que ocupam não seriam
mais necessárias para outros. Não seria nada inusitado e que não se possa
prever, porque já aconteceu.
Em Portugal,
foi recentemente posta à votação parlamentar a despenalização do suicídio medicamente
assistido, tendo sido recusada. Embora, pessoalmente, não tenha uma ideia
definitiva sobre o assunto, face a todos
os argumentos num sentido e noutro, não creio que se possa considerar
moralmente inaceitável, e por isso forçosamente ilegal, o proporcionar a morte a
um doente terminal, sem esperança de cura, em sofrimento intenso sem
possibilidade de ser controlado significativamente, desde que ele o pretenda
expressa e conscientemente. É, na realidade, um acto médico de misericórdia,
embora também compreenda que para alguns de nós possa ferir o fim último da
nossa profissão. Por isso, ele não poderá nunca passar a ser parte integrante e
obrigatória do conteúdo funcional de cada médico. Mas trata-se de ajudar um
doente a atravessar com alguma serenidade um momento tão dramático da vida como
é a morte, depois dum período prolongado de grande sofrimento, já sem
esperança. Fala-se do direito a morrer com dignidade, embora este, ao fim e ao
cabo, não seja um direito individual
absoluto, já que é necessário que outros reconheçam ter as condições
médicas exigidas para lhe ser concedido. Será, para quem o aceite, muito
importante ter a certeza inquestionável de estarem reunidos esses pressupostos clínicos
necessários, para além da vontade inequívoca, consciente, informada e
esclarecida do interessado, e de esta não resultar, por exemplo, dum estado
depressivo ocasional.
Como comentário
final a este assunto, não posso deixar de referir situações intimamente
relacionadas com ele e que são muito mais frequentes do que aquelas em que um
doente possa desejar que lhe seja proporcionada a morte. Refiro-me a quando um
doente de avançada idade necessita de cuidados mais diferenciados e, portanto,
mais dispendiosos, ou mais consumidores de tempo e de recursos, e tal lhe é
recusado. Como exemplo, um doente muito idoso que é operado de urgência, e que na
sequência disso teria necessidade de cuidados intensivos, e a respectiva
Unidade se recusa a recebê-lo, afirmando que “não vale a pena investir” naquele
doente, por causa da idade; nessa impossibilidade, o paciente fica no recobro
do bloco operatório, ou na enfermaria, onde eventualmente vem a recuperar, e
tem alta, bem, de regresso aos seus entes queridos, que o esperam com ansiedade
e amor… sem nunca sequer imaginarem que houve alguém no hospital que decidiu
que “não valia a pena” tratá-lo... É que
não se trata de não intervir num doente com grande probabilidade de morrer nessa
intervenção, e maior de sobreviver se não for intervencionado: aí a preocupação
é pela vida do doente. Ou de recusar fazer um tratamento que não tem qualquer
possibilidade de resultar, num doente sem esperança de se salvar: aqui seria
distanásia, e essa já se sabe que se deve evitar. Não, é alguém que decide se o
doente “tem uma vida que vale a pena viver” ou não; e, pela abstenção
terapêutica, a maior parte das vezes não vive mesmo, o que poderia não acontecer
se tivesse sido tratado… Claro que situação diferente ainda é se não houver
vaga de internamento, ou houver mais do que um candidato para uma só vaga: aqui
terá de se fazer um escalonamento da gravidade das situações clínicas em
apreço, e dos próprios doentes, idade e vitalidade incluídas. Nessa altura, por
muito que custe, por vezes terá de se escolher um em detrimento de outro; a
obrigação do médico em todas as situações é fazer por cada doente o melhor possível,
mas dentro das condições de que disponha no local onde trabalha. Agora, simplesmente
desistir dum doente porque é muito velho, ou porque pode vir a ficar internado
muito tempo, e isso “não vale a pena”, soa a eutanásia involuntária, e essa é
proibida em todo o lado. E, afinal, são situações dessas que fazem temer o tal
“slippery slope”, referido atrás, e a que eventualmente o suicídio assistido
poderia vir abrir a porta…
Carlos Costa AlmeidaIn Newsletter da Cirurgia C, Número 21, Junho 2018
Director do Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC
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