21.8.18

MEDICINA E CIÊNCIA

É conhecido o aforismo segundo o qual um médico tem de estudar toda a vida. E isso é inegável, pela parte científica da profissão. O que ontem era verdade, hoje pode não ser, e amanhã ser de modo totalmente diferente, com repercussões decisivas obrigatórias na nossa prática médica, na maneira de estudar e tratar os nossos doentes. Há que manter o passo com essa evolução da ciência, e para isso há que estar muito atentos a ela, e estudar, e ler, e ver, muito, com método, como obrigação, com o desígnio profissional de aperfeiçoamento, de aprender o mais possível para benefício dos doentes que a nós recorrem.

E isto não é retórica, como alguns - poucos, espero - parece pensarem, ao considerarem totalmente ultrapassado o médico “dedicar a vida à medicina”, ainda por cima num mundo com tantos mais atractivos à mão de semear e sem terem nada que ver com o nosso trabalho. E não se trata de “a medicina ser um sacerdócio”, que é óbvio que não é, no sentido de se cuidar dos doentes benemeritamente e por razões morais. Pelo contrário, a Medicina é uma profissão, e em qualquer uma só se pode ser realmente bom se nos dedicarmos a ela de alma e coração, ou de corpo e alma. Que outra coisa, afinal, faziam os supercampeões olímpicos de natação Mark Spitz e Michael Phelps quando treinavam sete horas por dia, ou fazem e faziam os grandes futebolistas como Ronaldo, Eusébio, Pelé, e tantos outros dos melhores, sempre os primeiros a chegar aos treinos e os últimos a sair? Em todas as profissões – porque é de profissões que estamos a falar – há com certeza os que têm individualmente mais jeito, ou mais capacidade, que outros, mas isso não impede que não tenham todos de se esforçar e aprender. Ninguém nasce ensinado, embora alguns possam aprender e evoluir mais depressa que os seus colegas, e haja sempre profissionais mais capazes que outros; o que não pode haver é maus profissionais. E não em Medicina por maioria de razão, já que lidamos com a vida dos nossos semelhantes.

Como dizia um conhecido empresário de muito sucesso no nosso país, o êxito resulta de 10% de inspiração e 90% de transpiração…  Na profissão médica não é diferente, nos seus dois componentes, arte e ciência. Aprende-se, treina-se, pratica-se, desenvolve-se. Uns com mais facilidade, outros com menos, mas sempre com um desejo constante de aperfeiçoamento, de melhores resultados, muitos dedicando-lhe a sua vida profissional, e tirando dela muito prazer, de dever cumprido, de realização pessoal, procurando ser os melhores possível. Mas há alguns outros, no entanto, que se contentam com a mediania, ou nem isso, limitando-se a não ser maus, porque nesta profissão a incompetência não pode ser permitida, e tem de ser impedida, e mesmo penalizada. No dizer de Sir William Osler, “It is astonishing with how little reading a doctor can practice medicine, but it is not astonishing how badly he may do it”.

Seja como for, e enquanto profissão, portanto fonte de rendimento, quanto melhor se for nela, mais se ganhará. Mesmo com as excepções que sempre confirmam a regra, não há como pensar doutro modo: os melhores ganharão mais. Com um senão importante: nesta profissão quem ganha mais também trabalha mais, ou tem essa possibilidade, ao contrário dos menos procurados. Se não se quiser ganhar a vida assim, há outras profissões…

No que respeita ao contacto com os doentes, a mente humana, e a sua psicologia, têm-se mantido inalteradas, o que faz com que observações nessa área feitas há milhares de anos colham perfeitamente no momento actual. Já as sociedades, evoluíram, modificaram-se, a noção do que nelas é normal foi-se alterando, e por isso a realidade de cada época vai sendo diferente, o que tem de ser tomado em conta pelo médico frente aos pacientes, sem dúvida. Tem de se manter o passo também do ponto de vista sociológico, se quisermos estabelecer empatia com cada doente.

Mas os conhecimentos científicos é que mudam mais, e temos de lhes procurar activamente as mudanças. Para isso é fundamental adquirir primeiro uma forte base de conhecimentos médicos, que constituam uma boa cultura médica que enforme o nosso saber profissional, e sobre ela irmos então desenvolvendo mais umas áreas que outras, sem deixar de lado as ligações existentes, permitindo avançar mais longe em cada uma delas e no todo. Porque conhecer muito bem uma área, mas totalmente desenquadrada do resto do complexo, é limitativo e condena a repetir-se o mesmo sem conseguir grande progresso, por falta de inputs e skills obtidos fora da área monótona e exaustivamente repetida. Sendo certo, também, no entanto, que a repetição melhora o desempenho do acto repetido.

O que caracteriza a ciência é a incerteza. Não há verdades científicas imutáveis; há é verdades científicas que não mudaram, ainda. E o progresso vai-se fazendo, com avanços e recuos, observação, registo, investigação. Há que ter um conhecimento científico sólido, sobre o qual se vão inscrevendo, de espírito aberto mas crítico, as mudanças. Se normas são para cumprir, enquanto não houver outras, guidelines são apenas isso, linhas de orientação, e resoluções por consenso estão longe de ser lei, significam apenas que num grupo específico ninguém votou contra elas. Perigosos são os que não sabem o básico e embandeiram em arco com “descobertas” desencantadas num artigo ocasional, ou afirmações definitivas de grupos sem confirmação científica, e que querem de imediato aplicar na prática, e mais, invectivam, como atrasados e ignorantes, os que, cautelosamente e porque têm substrato no assunto, têm dúvidas em o fazer.

E terminemos com este último aspecto, o da agressividade interpares na medicina e na ciência. É um fenómeno que parece estar a aumentar, e que interessa reconhecer e tentar perceber para se poder combater, por profundamente negativo. Dum artigo apresentado no blog Surgical Thoughts (*), a agressividade entre médicos “…em alguns casos é uma forma de defesa pela ignorância quanto ao caso em concreto, o não saber o que fazer, e por isso não se querer comprometer a expressar uma opinião que ficará registada para todo o sempre.” E afirma-se: “A rudeza e agressividade gratuitas entre colegas não são de modo algum passíveis de justificação. A meu ver, são muitas vezes sintoma de ignorância e incapacidade profissionais, sem no entanto esquecer que o cansaço, excesso de trabalho e burnout têm uma forte influência nesse comportamento, que em nada beneficia o doente e o profissional.”

Um aspecto particular dessa agressividade e má criação, e decorrente do desenvolvimento das redes sociais, é a discussão nestas de situações médicas que não se encontram perfeitamente definidas do ponto de vista científico ou social, e por isso sujeitas a opiniões pessoais. Ocasionalmente, em vez de se fazer a discussão tranquila do assunto em causa, com apresentação e discussão de argumentos do ponto de vista médico, cada um invocando os que considere relevantes e procurando rebater os dos outros, formam-se uma espécie de clubes de opinião, em que surgem colegas que perdem, mesmo que momentaneamente, o tino, acusando e insultando do ponto de vista pessoal os que se lhes opõem, atribuindo-lhes ignorância, falhas de carácter ou interesses particulares maquiavélicos ou mesquinhos, isto porque se atreveram a não comungar da sua opinião, assim transformada em verdadeira crença sobre um assunto que devia ser apenas e só técnico. É uma situação que por vezes assume o carácter de verdadeiro bullying contra quem unicamente deseja expressar e trocar impressões de carácter médico com colegas, e que tende a obstaculizar o uso dum meio que poderia ser muito útil para o efeito. E que, fora dessas situações, é mesmo.

Carlos Costa Almeida

In Número 23, Newsletter da Cirurgia C, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC

*http://carloscostaalmeida.wixsite.com/surgicalthoughts/single-post/2018/03/28/Agressividade-entre-m%C3%A9dicos-Um-fen%C3%B3meno-internacional

Sem comentários: