5.12.17

INVENÇÕES E INOVAÇÕES

É perceptível  a diferença entre “invenção” e “inovação”. A invenção assenta num princípio totalmente novo, original, que não existia  antes. Inovação é uma melhoria ou uma nova aplicação, eventualmente dum tipo diferente, de algo já antes descrito e inventado.
Invenções clássicas são, por exemplo, a roda e a pólvora. Quanto à Medicina, ela tem progredido com algumas invenções, mas sobretudo com inovações. Uma das invenções mais básicas, mais fundamentais para a medicina tal como a praticamos hoje, e que por isso passa despercebida quando se fala em grandes avanços tecnológicos nessa área, é a agulha oca, ou agulha de injecções.  É tão vulgar que quase pensamos sem querer que terá existido sempre...  Pois não existiu, claro, houve um momento em que foi inventada. E se pensarmos que foi por um médico, enganamo-nos.
No século XVII (1628) William Harvey descreveu a circulação sanguínea como ela é, publicando em Frankfurt o resultado dos seus estudos num trabalho intitulado Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (em português Um exercício anatómico sobre o movimento do coração e vasos sanguíneos em animais). Anos mais tarde houve dois outros ingleses, inteligentes, curiosos pelo mundo que os rodeava e a sua explicação científica, que, sem terem nada que ver com medicina, leram esse trabalho de Harvey. Foram eles Sir Christopher Wren, arquitecto, físico e astrónomo, que dirigiu a construção da Catedral de S. Paulo, em Londres, bem com a reconstrução da “city” londrina após o fogo que quase a consumiu por completo, e um seu amigo, o bem conhecido físico e químico Robert Boyle. Dessa leitura perceberam como se realizava a circulação do sangue, do coração para o coração, pelas artérias e pelas veias, e, raciocinando sobre isso, pensaram que seria possível introduzir algo nela artificialmente, sem seguir o trajecto normal a partir do intestino, pela absorção. E resolveram, com entusiasmo, testar essa hipótese. Para isso serviram-se dum cão, a quem expuseram uma veia superficial e nela introduziram um tubo oco (base duma pena de ganso), pelo qual injectaram uma solução de ópio, usando uma bexiga de animal para forçar a entrada do líquido.
O ópio era fumado e desse modo conheciam-se os seus efeitos, e como era preciso uma prova de que o que era introduzido directamente na veia seguia o caminho sanguíneo normal, esperava-se que tais efeitos se manifestassem no animal. E foi isso que aconteceu: aquele cão foi, assim, o primeiro “pedrado” por via endovenosa!
Wren e Boyle escreveram a experiência, publicaram-na, e continuaram as suas vidas longe da medicina, deixando para ela uma ideia brilhante. Mas como tantas vezes acontece a quem está à frente do seu tempo e não é compreendido, essa ideia não foi aproveitada. Só no século XIX ela foi recuperada, primeiro para administração subcutânea de líquidos, através dum tudo oco com um trocarte aguçado dentro, e depois com a inovação das agulhas metálicas pontiagudas para injecções subcutâneas, intramusculares e endovenosas, com o uso de seringas, surgindo depois a inovação dos sistemas tubulares de administração intravenosa. As seringas já existiam no tempo  dos romanos, serviam para introduzir líquidos em espaços limitados, e foram sendo modificadas e aperfeiçoadas ao longo dos tempos, por sucessivas inovações. A seringa de vidro, na forma como hoje a conhecemos, apareceu em meados desse século.
Pode-se dizer que a agulha oca abriu o caminho à medicina moderna, quer do ponto de vista diagnóstico, quer terapêutico. Punções as mais variadas, cateteres de todos os tipos, não existiriam sem ela. Ligada ao aparecimento dos cateteres,  outra invenção foi o cateter de balão para embolectomia. E os balões para angioplastia, depois com a inovação do stent que fica no local após a plastia arterial.
Do ponto de vista imagiológico há inúmeras inovações, a partir da invenção que foi a radiografia. Também nas técnicas cirúrgicas as inovações vão aparecendo, muitas delas baseadas nas inovações tecnológicas cada vez mais frequentes, muitas delas motivadas pelas necessidades sentidas pelos cirurgiões na sua prática. E tem havido translação de técnicas dumas áreas cirúrgicas para outras, levadas a cabo por cirurgiões com uma experiência ampla, dumas e doutras.
Uma inovação cirúrgica importante, que correspondeu na realidade a uma mudança de paradigma, foi, às clássicas intervenções de ressecção, de remoção do que está doente, se terem juntado intervenções planeadas de acordo com a fisiologia, e a fisiopatologia das doenças em causa, de modo a, através de alterações anatómicas, se poder recuperar, ou modificar, uma função. Foi uma inovação conceptual, que trouxe o que podemos chamar “cirurgia fisiológica”, de que são exemplos a cirurgia do refluxo gastroesofágico e a cirurgia metabólica e da obesidade.
Thomas Fogarty, o inventor do cateter de embolectomia, diz que “os inovadores quebram regras e vão contra o que está estabelecido”. Na verdade, é sabido que se fazem coisas extraordinárias, em termos de novidade e mudança, fora das guidelines. O que não impede que estas se devam conhecer, e sobretudo os princípios e os trabalhos que a elas levaram. Precisamente não se pode ignorar o conhecimento destes se quisermos tentar fazer diferente. Mas o seguimento cego de protocolos, por quem só sabe fazer duma maneira e faz sempre igual, não conduz seguramente à inovação e ao progresso.
Finalmente, uma chamada de atenção para que o que é novo não é sempre bom, ou melhor.  Devemos ter um espírito aberto para as inovações, mas ao mesmo tempo crítico, capaz de avaliar os prós e os contras, e sem querer forçosamente seguir a novidade apenas para sermos “modernos”.  Há sempre um tempo para se afirmar a validade duma inovação, ou para a infirmar. Esse tempo de espera avaliadora vale nos dois sentidos: para se dizer que é válida e se deve passar a usar, ou para se chegar à conclusão que não traz vantagens e por isso se deve abandonar. Lembremo-nos que nem tudo o que é inovação funciona bem logo de início, às vezes a ideia é boa mas a sua aplicação na prática demora a aperfeiçoar-se, e há que aguardar, ou procurar, esse aperfeiçoamento, sem a falta de paciência de a recusar precocemente, não lhe dando a oportunidade de se vir a afirmar.
Carlos Costa Almeida
In Newsletter da Cirurgia C, Número 14, Novembro de 2017 (Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral-CHUC)

4.11.17

Cidades que crescem com a Saúde, Saúde que decresce com a cidade

Coimbra já não tem tamanho, não vale a pena...!”
Ouve-se e lê-se a cada passo nesta cidade que Coimbra não tem tamanho para ter tantas instituições de saúde como tem. Ou melhor, como teve. Felizmente que há quarenta anos atrás Bissaya Barreto não pensava assim, e com ele outros homens de visão – entre eles o recentemente falecido Dr. Viriato Namora -, que idealizaram e ergueram, já contra a vontade de alguns coimbrinhas da altura, o Centro Hospitalar de Coimbra (CHC). A acrescentar ao Hospital da Universidade, não em vez dele ou contra ele. Como mais um argumento, e poderoso, para a Saúde em Coimbra. Que não prejudicou o HUC, antes levou indirectamente, por comparação das condições na altura entre ambos, à construção do seu actual edifício, construído com o CHC em pleno funcionamento. Passou a haver dois hospitais centrais, para além dum hospital especializado, escolas de enfermagem, institutos de investigação, escolas ligadas à saúde, muitos médicos e muito outro pessoal de saúde e, claro, muitos doentes. O que acabou por levar Coimbra a merecer o título de “capital da Saúde”. Foram sem dúvida Bissaya Barreto e os seus colaboradores quem lançou as raízes para que isso pudesse um dia tornar-se realidade. Quarenta anos depois tudo agoniza… porque não vale a pena…
Coimbra tem 150.000 habitantes (se contarmos com a margem esquerda, embora alguns coimbrinhas não a incluam ou, pior, achem que são só “arredores”...), deixou de ser a terceira cidade do país em população, que nela tem vindo a diminuir. Vive da Universidade (com 25.000 alunos), que tem sofrido o embate doutras universidades recentemente criadas, e da Saúde. Esta tem visto a sua capacidade instalada ser posta em causa, e progressivamente reduzida, por se achar que com a cidade a diminuir de tamanho a Saúde também tem de diminuir. A cidade não merece tanta capacidade instalada… para pouca gente…. Não vale a pena…
Cambridge, cidade universitária de Inglaterra com 124.000 habitantes (menos 26.000 que Coimbra), dos quais também 25.000 são estudantes da Universidade fundada em 1209, a quarta mais antiga do mundo, por onde passaram e trabalharam 37 prémios Nobel. Sem grande comércio, vive sobretudo da sua Universidade e da Saúde. Indústria, apenas a ligada directamente à investigação universitária, em especial no campo informático e bioquímico. Tem três grandes hospitais públicos e vários privados, e um campo de saúde recheado de escolas e de muitos institutos nessa área, que atraem gente de todo o mundo, médicos, investigadores, doentes, servidos por uma grande rede de hotéis e bons transportes (entre eles um aeroporto). A apenas 80 km da capital, Londres, com 14 milhões de habitantes e 73 hospitais. Um terceiro foco de rendimento da cidade é o turismo, tal como acontece com a sétima cidade universitária mais antiga do mundo: Coimbra.
Rochester, no Minnesota, Estados Unidos da América, tinha apenas 13.700 habitantes em 1920 quando foi lá criada a Clínica Mayo, hoje uma das mais prestigiadas instituições de saúde do mundo. Actualmente a cidade tem 106.000 habitantes, com dois grandes hospitais gerais e vários especializados, num total de 2.100 camas e 33.000 trabalhadores só no campo clínico. A cidade cresceu com a Saúde e vive exclusivamente dela, com os profissionais e doentes que se deslocam de todo o mundo para lá trabalharem, aprenderem e tratarem-se, e de tudo o que está com ela relacionado. Para os habitantes da cidade, um dos hospitais da Clínica tem uma ala exclusivamente reservada.  
Quer dizer, algumas cidades crescem com a Saúde, juntam esforços, recursos económicos, tecnológicos e humanos, conhecimento (42 % da população de Cambridge tem formação superior), know-how, hospitais e doentes, para poderem ser verdadeiras “capitais da saúde”, com tudo o que isso traz de bom para as próprias cidades e seus habitantes. Coimbra, pelo contrário, querem que definhe acompanhando a sua diminuição de tamanho, pretendem que a Saúde se reduza ao nível da sua baixa de população, dizendo que não vale a pena ser maior do que o tamanho cada vez menor que tem...  Numa espiral descendente que não augura nada de bom!
Mas se houve em Coimbra gente grande que soube prever e projectar o futuro, esperemos que volte a haver. Em tempo útil, antes que a cidade se torne em apenas mais uma capital de distrito deste país, com a Saúde correspondente.
Carlos Costa Almeida
Cirurgião, Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra
In Diário de Coimbra, 3 de Outubro de 2017, pág. 14

2.9.17

GUIDELINES E CONSENSOS

Carlos Costa Almeida

Guidelines, linhas de orientação, orientações, directrizes, são sinónimos que significam indicações compiladas por alguém no sentido de tornar a execução dum procedimento mais fácil, por mais automática e sem exigir tanto esforço de decisão, e mais igual sejam quais forem os intervenientes, seguindo todos essas mesmas indicações, admitindo-se também que assim se possa obter maior qualidade. Em medicina, orientações clínicas são guidelines estabelecidas em geral para alguns aspectos de diagnóstico, terapêutica ou follow-up específicos nalgumas patologias, habitualmente por serem mais complexos, ou saídos duma discussão recente ou estarem ainda sujeitos a  alguma.

Desde sempre houve guidelines em medicina, a forma de se chegar a elas é que mudou. Durante milhares de anos assentaram na tradição, ou em argumentos da autoridade e da experiência de médicos de renome, que as redigiam, e impunham (magíster dixit), e eram entendidas a partir daí quase como uma bíblia pelos seus vindouros, até que surgiam outras, doutras proveniências, sobre os mesmos temas, que as alteravam ou até totalmente contrariavam. Mas hoje vivemos na época da medicina baseada na evidência, e embora esta não seja a melhor tradução de “evidence-based medicine” todos a entendemos correctamente. Já não bastam opiniões pessoais, mesmo que vindas de profissionais muito experientes e sabedores, há que fazer estudos e avaliar resultados do ponto de vista estatístico para lhes encontrar o significado que permita tirar conclusões científicas.

O conhecimento médico procura ser hoje o mais científico possível, embora sem descartar, naturalmente, a arte que a prática médica também implica. Para além da investigação científica, de base experimental e laboratorial, recorre-se actualmente a conhecimento científico baseado em avaliações estatísticas de grandes grupos de doentes, ou a revisão de múltiplos trabalhos científicos sobre o mesmo tema realizados de forma considerada adequada, e é a partir  desse conhecimento científico que nalgumas situações são elaboradas guidelines.

Quem as elabora? Qualquer um o pode fazer, recorrendo aos mesmos conhecimentos disponíveis para todos, mas em geral são grupos de profissionais, de sociedades científicas, capítulos de sociedades mais ligados ao tema em debate, associações de médicos. Admitindo que actualmente as guidelines procuram sempre uma base científica, o valor intrínseco de cada uma está, no entanto, muito dependente da sua origem, de quem as elaborou, por um lado, e, por outro, da forma como se chegou a ela, e a nenhuma se pode atribuir um valor absoluto e indiscutível. Aliás, uma orientação é isso mesmo, serve para orientar, e não implica uma obrigatoriedade estrita no seu cumprimento. É uma ajuda, todos devemos ter conhecimento das que dizem respeito à nossa actividade, mas não são um protocolo que se tenha de seguir sempre rigorosamente. Em primeiro lugar, porque podem variar segundo a sua autoria, daí a importância de se saber a sua origem e a preocupação cada vez maior de instituições médicas de relevo quererem ter as suas, bem como de organizações governamentais nos vários países, que as elaboram, através de reconhecidos peritos convidados para o efeito, para terem presumivelmente uma maior garantia de qualidade. Exemplo disso, e louvável, é a nossa Direcção Geral de Saúde e as várias orientações clínicas que vai produzindo. Depois, para além de variarem segundo os conhecimentos, a experiência e a capacidade de quem as faz, podem variar com o tempo, são sempre datadas, é preciso serem substituídas de vez em quando. E um problema, por exemplo, é saber quando já deviam ter sido substituídas e ainda o não foram.

Há, frequentemente, a tendência para pensar que o que é científico, ou foi obtido por métodos científicos, é certo e está para além de qualquer dúvida ou discussão. E esta é uma ideia errada e que pode ser perigosa. Porque o que caracteriza, na realidade, a ciência é a sua incerteza! A ciência está em constante evolução, progride continuamente pela investigação, na procura da verdade. Mas o que hoje parece verdade amanhã pode não ser, e ser até errado. É nesta incerteza na procura que reside o valor e o interesse da ciência, como algo que nunca está esgotado. Algo que, por exemplo, não se pode resumir a uma simples orientação... Não que elas não devam existir, devem com certeza, para simplificar, lembrar, estandardizar, tornar mais eficiente o conhecimento que cada um tem do assunto em questão, mas sem que se pretenda que substituam esse conhecimento! Não se podem diagnosticar, tratar, seguir, doentes apenas por guidelines, sem estar dentro da respectiva patologia; mas é importante conhecê-las e aplicá-las, percebendo eventualmente quando há que fazer algo diferente, de acordo com o que se sabe do assunto e do doente em causa.  É frequente dizer-se com propriedade que muita coisa boa se pode fazer conscientemente fora das guidelines – mas desde que se conheçam, acrescento eu...

Nalguns problemas médicos sem consenso no que respeita à etiologia, etiopatogenia, diagnóstico, terapêutica ou follow-up, com dúvidas e discussão em curso, recorre-se por vezes a reuniões chamadas de consenso. Juntam-se peritos da área em apreço que, em conjunto, baseados no conhecimento científico de que se dispõe no momento, se manifestam sobre o assunto. Esses consensos correspondem, pois, a opiniões assentes em dados científicos e procuram traduzir o estado da arte na matéria em questão, podendo levar mais tarde à criação de guidelines. Como em qualquer consenso, não é forçoso que os membros do grupo constituído estejam todos de acordo, e não se atinge por votação em que os que são a favor sejam em maior número que os que votam contra: é necessário é que haja uma maioria a favor e os outros não sejam contra.
 
Tratando de problemas relacionados com a investigação científica, e dada a incerteza que caracteriza a ciência, ainda mais em questões que, por definição da necessidade de consenso, não estão bem estabelecidas, também há necessidade da revisão periódica destes consensos, embora talvez menos vezes que das orientações clínicas. E também o seu peso científico está relacionado com o peso individual de quem integrou o grupo de consenso, e a forma como foi atingido, podendo até haver conclusões diferentes de grupos diferentes, na mesma altura e sobre a mesma matéria.

Consensos médicos são, pois, afirmações científicas sobre determinados assuntos feitas por conjuntos de peritos que se pretendem representativos da comunidade científica, e que se crê traduzirem o que a evidence-based medicine nos diz no momento em que elas são feitas, nomeadamente envolvendo investigações específicas a decorrer. Correspondem a imagens da realidade médica, necessariamente datadas mas que terão sempre, naquela data, de ser tomadas em conta na prática médica.

Finalmente, de notar, porque não infrequente, o facto de um consenso científico que se formou sobre um determinado assunto poder ser extrapolado para fora da ciência e usado como argumento ou força de pressão numa discussão doutro cariz, ou para basear uma qualquer teoria doutro tipo, noutro contexto, por exemplo social, económico ou político, inclusivamente esquecendo-se o seu carácter necessariamente incerto e sujeito a mudanças. E do mesmo modo ao contrário, isto é, a falta ainda de consenso científico pretender ser tomada como a sua ausência definitiva e irrevogável.
 
Guidelines e consensos constituem, assim, parte integrante da medicina baseada na evidência, e têm de ser compreendidos, valorizados e utilizados como aquilo que são.

In Número 12 da Newsletter do Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões) - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

26.8.17

António Arnaut, os médicos e a Saúde no seu tempo

Carlos Costa Almeida

Nasci como cirurgião ao mesmo tempo que o Serviço Nacional de Saúde, e temos feito juntos o nosso caminho. Por isso António Arnaut sempre fez parte do meu imaginário enquanto especialista hospitalar, ele e a sua equipa, eles e alguns que os antecederam lançando bases e ideias, e muitos que, do seu partido ou doutros, lhes souberam dar continuidade. Até hoje. 

Mas mal imaginava eu, no Verão quente de 1975, jovem médico terminando o internato policlínico e enviado para o primeiro Serviço Médico à Periferia, a importância de que esse Serviço se iria revestir na organização sanitária do nosso país. Nessa altura achava – e a lógica, apesar de tudo o que depois se passou, continua a parecer-me presente – que seria apenas populismo enviar médicos inexperientes para zonas sem cuidados médicos organizados, em vez de criar verdadeiros hospitais periféricos, povoando-os com especialistas, e só depois lá colocar médicos em fase de aprendizagem. Mas não contava com duas coisas: o estado paupérrimo em termos de cuidados de saúde básicos nos territórios do interior, em necessidade absoluta de ajuda, por um lado, e, por outro, o espírito entusiástico e empreendedor da juventude destacada durante alguns anos para fazer aquele serviço. Sem dúvida que foi um pontapé de saída que ajudou a gizar mais tarde o SNS, depois de levar de imediato saúde a quem dela muito necessitava.

E o SNS não seria o que é sem as Carreiras Médicas, já que foi por elas que os tais hospitais periféricos se foram organizando e povoando com especialistas, que jovens médicos passaram a ir para lá continuar a sua aprendizagem, supervisionados, e que, assim, na realidade se estabeleceu o que a mim me parecia, em 1975, ser o primeiro passo a dar. As Carreiras, a que dediquei uma boa parte da minha vida, constituíram uma estrutura hierarquizada baseada na competência e na experiência, reconhecidas e avaliadas, e foram o suporte para que no SNS se possa ser tratado com igual qualidade em qualquer parte do país.

Não há dúvida que o Dr. António Arnaut, hoje um amigo, esteve sempre presente na Saúde portuguesa depois de ter tido a coragem de fazer promulgar a lei do Serviço Nacional de Saúde. Nunca o abandonou, seguindo de perto o seu estabelecimento e crescimento, com a participação e o entusiasmo doutros políticos e de muitos profissionais que o tomaram como deles e nele se empenharam. E diga-se que é com orgulho que me incluo, com tantos colegas, nesse grupo, um grupo vasto que contribuiu para fazer do SNS português um dos melhores serviços públicos de saúde do Mundo.

Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar,
in António Arnaut, Fotobiografia, 2017, ed. MinervaCoimbra

15.4.17

O “CURRICULUM VITAE”

Carlos M. Costa Almeida

O «Curriculum vitae», com aquilo a que se tem chamado a sua «discussão» (avaliação), constitui, nos nossos concursos como, em boa verdade, nos dos outros países, uma peça fulcral.
«Curriculum vitae» significa «curso da vida». Tratando-se de um «curriculum  vitae» dum  profissional  da  medicina,  é  óbvio  que corresponderá  ao  curso  da  sua  vida profissional;  por  outras  palavras,  àquilo  que ele  fez,  desse  ponto  de  vista,  até  ao momento  em  que  o  está  a  escrever.
Aceite a definição, é evidente que nele não caberão descrições mais ou menos pormenorizadas do ou dos Serviços onde o autor do «curriculum» trabalhou, a não ser que esse ou esses Serviços tenham sentido alterações, melhoramentos, incrementos, da sua responsabilidade pessoal, para além do seu mero trabalho diário e rotineiro. Essas alterações, esses progressos, por si introduzidos, ou estimulados, sim, farão com certeza parte do seu «curriculum  vitae»; o resto, não. Além disso, poderá ser lícito em termos curriculares realçar que teve oportunidade de trabalhar num local e com profissionais que façam de algum modo uma diferença significativa em relação ao comum dos centros da sua área médica.
As longas e pormenorizadas descrições, de carácter encomiante, do funcionamento dos Serviços, de todo normais, apenas sugerem falta de factos curriculares (isto é, do «curriculum vitae», ou seja, da vida profissional do autor, quer dizer, daquilo que ele realmente fez do ponto de vista profissional, sentindo por isso necessidade de empolar o local onde trabalha para disso obter vantagem pessoal). Digo «apenas» porque quero deliberadamente esquecer a hipótese de o autor do pretenso «curriculum vitae» o utilizar como elemento de adulação dos elementos do Serviço que fazem parte do júri. Esse aspecto, tão conhecido de nós todos, está absolutamente fora do contexto deste artigo.
Também não terão cabimento opiniões sobre maneiras de tratar doentes, sobre técnicas ou tácticas cirúrgicas, ou sobre resultados terapêuticos, a não ser que o autor tenha criado, ou experimentado, algo de inovador nalguns desses campos.
As considerações «psico-filosóficas» sobre a Vida e os seus segredos, sobre a Humanidade em geral e os doentes em particular, sobre o Sistema Nacional de Saúde ou a medicina privada, etc., são também inteiramente descabidas.
O «Curriculum vitae» deve ser exclusivamente a descrição do que o seu autor produziu enquanto profissional, daquilo que mostrou ser capaz de fazer na fase pré-profissional, e ainda, eventualmente, de actividades para-médicas que traduzem conhecimentos científicos, interesse e capacidade de ensinar, de organizar, de criar, de inovar, de fazer. Da avaliação disto tudo, do que ele conseguiu realizar, o júri poderá ter uma ideia do que ele poderá fazer no futuro.
A descrição de factos, que terá em si mesma de ser perfeitamente objectiva, deverá ao mesmo tempo ser feita de maneira que dê uma ideia do trajecto pessoal do autor, tornando evidentes eventuais dificuldades que tenha tido que vencer, para além das que são implícitas na sua actividade.  Estes aspectos são importantes para a apreciação da pessoa cuja vida profissional está a ser analisada, sem que se admita, claro, que um «curriculum vitae» possa ser transformado num romance autobiográfico.
Se os factos em si contam, a maneira como o profissional a ser avaliado os conseguiu realizar também poderá ser importante para se ter uma ideia das suas capacidades. Será de referir, por exemplo, que teve de trabalhar ao mesmo tempo que estudava, por dificuldades económicas familiares; que tem, ou teve, qualquer dificuldade física, ou doença, que lhe tornou o estudo ou trabalho mais penoso que aos seus pares; que enquanto aluno, ou interno, foi obrigado, por razões extra-profissionais, a mudar de estabelecimento de ensino, ou Serviço, mantendo sempre, no entanto, o mesmo bom desempenho; que para fazer um determinado estágio no estrangeiro teve de concorrer com outros à obtenção duma bolsa, a qual lhe foi concedida a ele; etc., etc.
Outros factores extra-científicos, ou antes, para-científicos, importantes para a avaliação do técnico em presença de cujo «curriculum» científico se está, são, por  um lado, o modo como os dados são apresentados, por outro, a ortografia usada.  Erros de ortografia, tal como os de construção de frases, significam uma preparação básica medíocre, sobre a qual, a não ter sido corrigida, dificilmente se virá a desenvolver um verdadeiro grande profissional.
A estrutura dos «curricula vitae» poderá variar, mas, em minha opinião, há uma base que deverá ser mantida, para mais fácil apreciação comparativa. Base estrutural essa que continuará a mesma, seja para que concurso for que ele seja feito. Os factos a valorizar mais é que poderão ser diferentes, consoante o objectivo do concurso em causa.
Os dados serão distribuídos por capítulos, indexados num índice, colocado no princípio ou no fim, e que funciona como um sumário para consulta rápida e global. A maneira como está elaborado diz muito do seu autor.
O «curriculum vitae» deverá começar por um Registo Biográfico, com local e data de nascimento, e filiação.
Seguir-se-á a Carreira Escolar, com o trajecto escolar até à Universidade. Nota final no ensino secundário e de ingresso no ensino superior. Depois, classificação no curso de Medicina, com menção de eventuais prémios ou distinções recebidos, e resultado obtido no exame de seriação para acesso ao internato de especialidade.
Em seguida, Internato: ano comum e formação específica. Onde foram essas duas parte realizadas, datas, classificações, quem era o Director de Serviço e o Orientador de Formação.
Estágios feitos fora do Serviço, eventualmente no estrangeiro. É importante dizer como foram conseguidos: à própria custa, com a simpatia do Director (ou do Orientador, sendo interno), ou concorrendo a uma bolsa de estudo e ganhando-a. E quais os objectivos, enquadrando-os dentro do plano individual de preparação ou de actividade. Bem como quais foram as suas consequências, para o próprio e  para o Serviço onde está inserido.
Actividade Médica Hospitalar: funções desempenhadas (incluindo a de orientador de formação), para além do trabalho de rotina. Eventualmente criação, ou desenvolvimento, de alguma actividade hospitalar. Possibilidade de colaborar nalgum trabalho de ponta, ou de o criar. Funções de chefia ou de direcção de carácter clínico.
Actividade Médica Extra-hospitalar eventualmente existente: funções desempenhadas, experiência conseguida.
Outra Actividade Hospitalar: cargos desempenhados, funções de direcção ou de chefia não clínicas; cursos de gestão hospitalar, de controlo de qualidade ou de revisão de processos; organização de reuniões científicas ou de ensino pós-graduado; ter sido escolhido para integrar comissões ou grupos de trabalho com um fim determinado, no Serviço, no hospital ou a nível nacional, ou para melhorar ou iniciar algo no seu local de trabalho; etc.
Alguma Actividade não médica eventualmente relevante para dar uma ideia do profissional em causa como pessoa.
Concursos da carreira hospitalar: para o grau de consultor, para provimento como graduado sénior. Local e data; classificação, absoluta e relativa, com indicação do número de concorrentes.
Actividade Docente, se a houver: Faculdade de Medicina, Escola de Enfermagem, Escola de Técnicos de Saúde, etc. Funções desempenhadas nessa actividade, e sua duração. O ensino de internos não é sequer de referir, uma vez que faz parte da actividade normal dum especialista hospitalar. Títulos da Carreira Académica, se for o caso.
Actividade de Investigação, quando existe: clínica ou laboratorial, com indicação dos objectivos, colaboradores, meios, locais e datas. Referir se foi admitido num programa doutoral, e se está a desenvolver um trabalho de investigação nesse âmbito, e qual o tema.
Conferências proferidas, onde e quando. Trabalhos apresentados, escritos e orais, com locais, datas, e indicação dos autores, tornando bem clara a posição relativa entre eles do autor do «curriculum» (um trabalho em que se é autor único, ou primeiro autor entre dois ou três, não será com certeza de considerar como um trabalho do Serviço com dez autores...). Poder-se-á fazer um pequeno resumo de cada um, ou dos que se considerarem mais importantes ou originais.
Cursos em que participou, como docente ou discente, bem identificados em relação a quem os levou a cabo, onde e quando, e com relevo para os que tiveram avaliação final, com indicação da sua, se for o caso.
Reuniões Científicas em que tomou parte activa, apresentando trabalhos, participando em mesas redondas, fazendo palestras. Reuniões científicas que organizou ou ajudou a organizar. Reuniões científicas a que assistiu, com indicação do título, local e data.
Actividade Para-médica relevante, como lugares desempenhados na Ordem dos Médicos, ou em outras associações médicas, científicas ou sindicais.
Sociedades  Científicas  a  que  pertence.
Finalmente, no caso de se tratar duma especialidade em que haja técnicas a executar, cirúrgicas ou outras, uma listagem quantitativa parece-me importante. Isto é com certeza discutível, mas quando estão publicados currículos de especialidade chamados mínimos, com carácter quantitativo quase todos, creio que será de apresentar essa listagem. Ela, ao fim e ao cabo, sempre dá alguma ideia da experiência técnica do seu autor. Devo, no entanto, dizer que tal listagem não é habitual noutros países, onde é feita apenas para uso individual ou para orientação interna de cada Serviço, ou ainda para demonstrar experiência numa determinada área específica.
Realmente, se se aceita que um Serviço funciona bem e é idóneo, todos dentro dele deverão ter experiência suficiente na respectiva especialidade e consoante o seu grau de diferenciação. O problema é que no nosso País, cheio de originalidades, as coisas não se passam sempre assim... Por exemplo, foram publicados pelo Ministério da Saúde currículos de especialidade mínimos elaborados pela Ordem  dos Médicos, através dos seus colégios; portanto, se um interno acabar o seu internato de formação específica e apresentar o «curriculum vitae» sem listagem das intervenções em que tomou parte, terá de se acreditar que cumpriu nesse campo o estabelecido por lei e pela Ordem dos Médicos. Mas, ao mesmo tempo, admite-se que muitas vezes não é possível cumprir esses currículos em todos os seus pormenores em Serviços considerados idóneos. Logo, admite-se «a priori» que um interno pode não o ter cumprido integralmente… e haverá, por isso, que avaliar possíveis implicações desse facto.
Como documentos finais, apenas se deverão incluir declarações escritas do Director de Serviço, e eventualmente do Orientar de Formação ou doutros profissionais que o queiram fazer, ou outros documentos abonatórios. Nunca o diploma de curso, ou de inscrição na Ordem dos Médicos, ou a declaração do Hospital em como é assistente hospitalar, ou assistente graduado, ou sénior, etc. Isso são redundâncias que apenas servem para fazer volume.
E um «curriculum vitae» não se deve avaliar pelo número de páginas, pelo peso, pela organização do Serviço onde o autor trabalha (se isso não for da sua responsabilidade), ou pelas suas opiniões sobre técnicas cirúrgicas inventadas por outros, ou sobre a saúde em Portugal. Deve-se avaliar estritamente pelo que o seu autor fez. E pela maneira clara, límpida, lógica, inteligente e objectiva como o expuser.
Carlos Costa Almeida
Director de Serviço de Cirurgia do CHUC - Hospital Geral (Covões), Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra.

1.4.17

OS MÉDICOS E A INTOLERÂNCIA

Um bom médico é sobretudo um bom profissional. Claro que ser simpático, compassivo, humano, pronto a ajudar, tolerante, afectuoso com o seu semelhante, tudo aquilo que duma maneira geral contribui para se ser uma “boa pessoa”, também ajuda, mas a pedra de toque é sem dúvida o profissionalismo. O médico deve tratar os seus doentes da melhor maneira possível de cabeça fria, com objectividade, deixando a afectividade que lhe pode toldar o raciocínio e o comportamento de parte. Por isso se diz que não deve tratar pessoas que lhe sejam muito queridas, pais, filhos, etc., e que “um dos maiores riscos dum doente é ser amigo do médico”! Esta abstenção profissional de afectividade permite-lhe tratar igualmente bem pessoas de quem goste e pessoas por quem não tenha simpatia ou que deteste mesmo, o que é fundamental sendo a população de doentes extremamente heterogénea como é.

Objectividade e sangue frio é, portanto, o que se pretende de qualquer profissional. Mas não nos podemos esquecer que as máquinas com que lidamos, os doentes, têm sentimentos, têm afectividade, provavelmente especialmente exacerbada num momento de fraqueza, de preocupação e de sofrimento como é a doença. Teremos, pois, de, objectiva e friamente, profissionalmente, ter isso em linha de conta, não ignorar e saber lidar com o modo de ser de cada um, com os estados de alma, os medos, as hesitações e as dúvidas daqueles que de nós precisam para se tratar. Não por sermos boas pessoas mas para sermos bons profissionais. Porque é sabido que toda a actividade mental e afectiva tem repercussão física na reacção do corpo à doença e aos tratamentos instituídos, através de substâncias químicas, intermediários, endorfinas, de que agora pouco mais sabemos que seguramente existem e actuam do ponto de vista fisiológico ou fisiopatológico no organismo.

Tudo isto deve ter, obviamente, repercussões marcadas e determinantes no trato do médico com os seus doentes. Desde Hipócrates que a preocupação do médico é com a pessoa doente, mais do que com a doença ou as doenças consideradas no seu conjunto, como era, e é, apanágio da medicina chamada mágica, ou da religiosa. A relação médico-doente é fulcral, e durante muitos séculos baseou-se no dever de o médico fazer o melhor possível pelo “seu” doente, com o direito daí decorrente de escolher a que considerar a melhor opção para o conseguir, e o paciente simplesmente confiar nele. Foi a época do paternalismo médico, os médicos procurando fazer bem sem fazer mal e os doentes esperando exactamente isso e a eles se entregando. Mas, no início do século passado, gerou-se a ideia de que as pessoas doentes têm o direito de tomar parte nas decisões médicas que a elas digam respeito, devendo para isso ser devidamente informadas. Não mais a decisão e a responsabilidade continuaram a ser apenas do médico: elas passaram a resultar dum contrato deste com o doente, o qual consente nos exames ou tratamentos propostos por aquele. Ou não.

Hoje em dia, pois, ao planear-se ou decidir-se um tratamento há que dar a possibilidade ao doente de o discutir, fornecendo-lhe as informações necessárias para que ele se sinta esclarecido e possa livremente aceitá-lo. É o chamado consentimento eficaz, que se tem de obter para que o nosso contrato terapêutico com o doente possa ser posto em prática. Mas, desse modo, é possível que tal consentimento nos seja negado, e a discussão doutras possibilidades se tenha de fazer até ele ser dado. Desde que é um direito reconhecido ao doente, o médico tem de ter a tolerância necessária perante alguma dificuldade em chegarem a acordo. Se bem que a grande maioria dos doentes aceitem facilmente que o médico está a exercer o seu dever de os tratar da melhor maneira possível, alguns têm algumas dúvidas e objecções de natureza vária que tornam o entendimento difícil ou até impossível. Se isto acontecer, nalgumas situações o médico poderá recusar-se a tratar aquele doente, sem que essa recusa de médico seja ilícita ou não ética; mas, pelo contrário, noutras não o poderá fazer, tendo de ceder aos desejos expressos pelo paciente no seu tratamento.

Uma das situações clássicas de alguma dificuldade de entendimento entre médico e doente é no recurso a transfusões de sangue e derivados em quem as recusa por razões religiosas – as testemunhas de Jeová. Esses doentes querem ser tratados, mas não aceitam ser transfundidos. Actualmente estamos cientes dos perigos das transfusões homólogas e da necessidade e vantagem de utilizar o menos sangue possivel como medicamento, e a “cirurgia sem sangue” é um objectivo a atingir sempre que possível, inclusivamente fazendo valer uma maior maestria técnica e uma melhor execução das intervenções. Mas mesmo com este esforço, obrigatório, assente em razões científicas sólidas, para não recorrer ao sangue, há situações clínicas em que, do ponto de vista médico, é inequivocamente considerada a transfusão como fundamental. E é só nestas que o problema se deve colocar.

Num contrato a distância, para uma cirurgia de rotina, o cirurgião pode recusar-se a operar o doente se este lhe vedar a possibilidade de utilizar sangue. E há profissionais que o fazem por princípio, inclusive em intervenções que se podem realizar, e se devem mesmo realizar, dentro do princípio da “bloodless surgery”, sem o recurso a sangue. Nestas condições, a recusa do médico, ética e legal embora, reveste um carácter de intolerância perante as convicções religiosas do seu paciente. Mesmo de cirurgiões mais apetrechados tecnicamente e com melhores condições de trabalho e que facilmente poderiam realizar a cirurgia sem uso de sangue, que se negam a fazê-lo pelo princípio de não tolerarem a opção de carácter religioso do doente.

Se o médico aceitar tratar o paciente sem sangue, é isso mesmo que terá de fazer. Seria inaceitável, do ponto de vista ético e legal, quebrar esse contrato, inclusivamente nas tais condições em que o seu uso é inquestionável do ponto de vista clínico. Se o doente, esclarecido, assim o exigiu, assim terá de ser feito, competindo ao médico tentar de todas as formas suprir essa falta, mesmo que com mau resultado.

Nas situações de urgência, se o doente, esclarecido, consciente e competente, declarar a sua recusa, assim terá de ser tratado pelo médico, ainda que intolerante para com ele. Tratá-lo-á sem sangue, aparte isso da melhor maneira que souber, e quando muito poderá, assim que possível, entregar o seu tratamento a outro colega que aceite fazê-lo. Mas se, nas mesmas circunstâncias, o doente chegar inconsciente, sendo a sua recusa de transfusão apenas comunicada por familiares, amigos ou acompanhantes, caberá ao médico a decisão de administrar ou não sangue, de acordo com as reais necessidades e o princípio de o usar o menos possível. Esse é o seu privilégio legal e a sua obrigação ética, sendo posteriormente altura para o doente salvo pela sua intervenção se mostrar tolerante para com o esforço que foi feito para seu bem, apesar de eventualmente contra o seu credo religioso.  

Carlos Costa Almeida
In Newsletter da Cirurgia C, Número 7, Março 2017, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões) - CHUC (Coimbra)

4.3.17

O MEU MÉDICO

Carlos M. Costa Almeida

O meu médico, e da minha família, quando eu era garoto e vivíamos em Moura, no Baixo Alentejo, era o Dr. Janeirinho. Era ele que tratava os nossos achaques todos, o ataque de reumatismo da minha mãe, a úlcera duodenal do meu pai, a hipertensão arterial da minha avó, as minhas doenças de infância – só não entrou no meu quarto quando viu da porta que eu tinha sarampo, coisa que ele nunca tinha tido e não queria ter... Foi a ele que o meu pai recorreu quando num final de tarde quente de Verão, quase à hora de jantar, eu dei com a cabeça na ombreira de pedra da porta, ao brincar ao “agarra” com os meus amigos, na minha rua. Entrei em casa, já com todos à mesa, com a cara cheia de sangue que escorria abundantemente duma ferida aberta na testa. Fomos de imediato ao consultório do nosso médico, que era junto à casa onde morava, e ele saiu da mesa de jantar, afável e atento como sempre, para me vir observar, procurou estancar a hemorragia e tentou dar-me uns pontos. Digo tentou porque, perante a minha gritaria, ele e o meu pai acordaram em deixar a ferida cicatrizar por segunda intenção e eu ficar com a pequena cicatriz que tenho na testa...  
E foi ele quem enviou o meu pai de urgência para Lisboa quando a úlcera perfurou. A ambulância teve de atravessar no cacilheiro, não havia ainda a ponte, lembro-me bem de tudo porque a minha mãe me levou com ela na ambulância, por não ter na altura com quem me deixar em segurança. Chegámos às Urgências do Hospital de S. José e o meu pai esperou lá oito horas até ser operado. Não com certeza por incompetência ou negligência, mas porque era para onde iam praticamente todas as urgências, quase duas mil por dia, e, apesar de ter uma equipa de cirurgia de vinte elementos (vim a saber já depois de cirurgião), havia momentos em que não tinham mãos a medir. Felizmente teve alta ao fim de doze dias, e no almoço de comemoração que os amigos lhe ofereceram em Moura foi convidado de honra o nosso médico, apesar de no dia a dia não fazer propriamente parte desse grupo.
A organização da Saúde no nosso país mudou muito desde então, com o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras e os Internatos Médicos. E o termo “médico de família” passou a ser a expressão duma especialidade médica. Mas a verdade é que os cuidados primários e imediatos da população terão de continuar a estar nas mãos destes médicos, tal como os nossos estavam nas do “nosso” Dr. Janeirinho. Não sei se algum seu descendente virá a ler estas minhas palavras, mas se o fizer ficará a saber da importância que ele teve para a minha família, de modo a ainda hoje isso me saltar à memória quando falo do “meu médico” de infância. Não sei que experiência ele teria em suturar feridas (provavelmente não teria tido a possibilidade de frequentar um curso prático nessa matéria, como um que o nosso Serviço leva a cabo, especificamente para médicos de família), mas se calhar estava à vontade a fazê-lo depois de muitas tentativas e erros em muitos doentes, com muito esforço e muito empenho em fazer bem o que era preciso fazer!... Como disse, os tempos mudaram, e há condições para mudarem ainda mais, para melhor.
A cada passo no hospital ouvimos os doentes falarem do “seu médico”, a quem recorrem nos seus achaques, do que ele lhes diz para fazer ou não fazer, e que se espera encare, diagnostique e trate o que puder ser feito e tratado no local, sem envio sistemático para os Serviços de Urgência hospitalares. Sobretudo depois de as Urgências de proximidade terem sido progressivamente desactivadas, substituídas por ambulâncias, táxis ou carros particulares dos doentes ou seus familiares e amigos. Mas terão de ser atribuídos aos médicos de família os meios e as condições para que possam lidar no local com os “seus doentes”, daí ganhando a satisfação profissional que tal lhes poderá proporcionar enquanto especialistas de medicina geral e familiar. Mantendo, naturalmente, uma ligação directa e fácil com os colegas dos hospitais da sua zona, com intercâmbio de informação, comunicação de resultados, troca de correspondência sobre os doentes que, sendo do “seu médico”, também passam pelo hospital. Não pode haver uma separação de cuidados, antes uma especialização de cuidados, que há forçosamente que ter  integrados, para benefício dos “nossos doentes”.
Com a concentração (outro nome para fusão, ou para encerramento) de Serviços, Hospitais, Urgências, o número destes, por um lado, diminuiu e, por outro lado, foram afastados de muitos cidadãos, marcando ainda mais a periferia em que estes vivem, seja do país seja das grandes cidades. Por isso é tantas vezes penoso terem de se deslocar para longe em busca de cuidados de saúde, sozinhos ou acompanhados pela família, com perda por eles todos de tempo de trabalho e com gasto de recursos. Procurando pequenos e grandes cuidados de saúde em grandes Urgências concentradas, totalmente superlotadas por doentes e profissionais, estes sempre poucos para tanta procura. Como aconteceu naquela noite no Hospital de S. José ao meu pai, com a peritonite, a mulher e o filho criança. 
A evolução no nosso país, durante anos de SNS, foi no sentido da descentralização, com Centros de Saúde e com Hospitais e Urgências mais pequenos e bem equipados, espalhados pelo país. Melhores condições mais perto dos cidadãos, desde o seu médico de família ao seu hospital. E os resultados foram muito bons. Face ao que temos vivido, esperemos que à descentralização não se siga a concentração de novo, levando os doentes outra vez obrigatoriamente aos grandes Hospitais e às suas Urgências sobrepovoadas e, por isso, impessoais e menos atentas, com muito maior risco de erros e complicações.

Cirurgião, Director do Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões)-CHUC, Professor da Faculdade de Medicina
Artigo publicado na Newsletter da Cirurgia C, Número 6, Fevereiro 2017

QUE SE LIXE! TANTO ESPECIALISTA!

Carlos M. Costa Almeida

Tenho internet fixa pela linha do telefone há muitos anos. Umas vezes melhor, outras pior, nunca bem, frequentemente a falhar, o que não raramente me desespera e atrapalha trabalhos que estou a fazer. Há tempo que sei da fibra, que com essa é que é bom, mas, infelizmente, na minha zona, na periferia da cidade, tem demorado a estar disponível.
Semanas atrás, o telefone fixo deixou de funcionar. E, naturalmente, a internet, culminando um período de particularmente mau funcionamento. Liguei para as avarias, e mandaram cá um técnico, que fez a avaliação do problema e disse que iria providenciar o arranjo. Aproveitei para lhe referir os problemas com a internet, ultimamente duma gravidade irritante. Pois isso não era a área dele, ele era só dos telefones, mas, se a linha telefónica melhorasse, muito provavelmente o acesso à internet também melhoraria um pouco. De qualquer maneira – e, note-se, disse ele, apesar de não ser também a sua especialidade –  ele achava que já havia possibilidade de fibra para a minha casa. Se eu quisesse ele iria informar a empresa da minha necessidade (como se eles não soubessem, tantas vezes eu a protestar pela má qualidade da internet!). Pedi-lhe por favor que o fizesse.
Passados uns dias, uma menina telefonou-me – a linha telefónica já funcionava – a preparar-se para fazer um contrato comigo para colocação de fibra em minha casa. Perguntei-lhe se, antes de mais, tinha a certeza da possibilidade de acesso, e, caso afirmativo, como se faria tal ligação. “Ah, isso é da área técnica, eu não sei nada disso. Mas eu vou dizer para entrarem em contacto consigo”. “Pois é melhor, porque sem isso eu não faço contrato nenhum” (claro que o que agora transcrevo em duas frases levou muito mais tempo e mais palavras…).
Depois desse telefonema, e enquanto eu aguardava o contacto do próximo especialista, o dos telefones veio de novo cá a casa, verificar a linha. Aproveitei para tentar obter dele algumas informações técnicas sobre a fibra. “Peço desculpa, mas como já lhe disse não é a minha área, terão de ser os colegas da fibra a explicar-lhe”.
E continuei mais uns dias à espera. Finalmente, telefonou-me outra menina, especialista da fibra, a confirmar que a minha casa já tinha possibilidade de acesso. Perguntei como era feito esse acesso, explicou-me que a fibra era um fio que viria até uma caixa de entrada em minha casa. Aí a minha dúvida foi de como chegaria ao computador. “Através dum rooter”. Sim, mas onde ficará esse rooter, é a própria fibra que vai até ele, aproveita-se a instalação telefónica existente, tem de se fazer outra instalação, terá de se realizar alguma obra em casa?… “Bom, eu sou da área técnica da fibra, mas isso que está a perguntar é com os técnicos da montagem, terá de lhes perguntar a eles”. “Pois eu pergunto, mas só depois de eles me responderem é que eu me decido…”
E passada mais uma semana continuo à espera do especialista da montagem da fibra. Já pensei ir à internet ver se aprendo como é… Mas sempre abominei os que não sabem nada dum assunto e vão à internet aprender tudo para depois discutir com quem sabe. Incluindo assuntos de medicina, por parte dos doentes… E, bom, se há especialistas tão especializados, que diabo, não deve ser assunto fácil…

Ora, que se lixe! Tanto especialista! Acho que vou deixar como está! Assim como assim, pelo menos já conheço o especialista dos telefones!


Director de Serviço de Cirurgia, CHUC-Hospital Geral; Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra
Artigo publicado na Revista da Ordem dos Médicos, Janeiro 2017