24.7.07

A MERCEARIZAÇÃO DA NOSSA SAÚDE

A política de saúde do governo continua, inalterada. Os avisos foram feitos, repetidamente, mas ostensivamente ignorados, dentro dum modo arrogante que começamos a perceber ser institucional. Já não temos esperança de poder contribuir, com outros, para corrigir alguma coisa, mas não nos iremos calar, para que o nosso silêncio não vá eventualmente ajudar à cegueira de quem é responsável. Ou sirva para mais tarde a desculpar. Com a convicção cada dia mais enraizada que dizer o que se pensa em Portugal, agora, tem os seus perigos. Deixá-lo… Como dizia alguém de quem o governo deveria estar muito perto, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”.
A nova ordem estabelecida é diminuir custos com os doentes. Não é aumentar a rentabilidade, o que implicaria ter mais e melhor saúde pelo mesmo dinheiro. Não, há é que reduzir, fechar, não gastar. Com os doentes e com os seus médicos, entenda-se. E para isso houve nos novos hospitais-empresas que recrutar uma multidão – o termo não é exagerado, acreditem – de administradores, com o fim de fazerem muitas contas e mostrar a cada momento que não se pode gastar mais. Se calhar na convicção de que o aumento de encargos com tanto funcionário directamente não produtivo possa ser recompensado pela contenção no tratamento dos doentes pelos outros funcionários, os produtivos.
O que parece contar nos hospitais apenas é fazer muitas “cirurgias” a baixo custo. Para que isso possa ser convenientemente expresso em muitos balanços e balancetes, gráficos, relatórios de gestão e análises de produção, depois, evidentemente, da criação de “linhas de montagem”, perdão, “linhas de produção” (sic, dum relatório de administração hospitalar). Não é tratar doentes, ou a maneira como se tratam, ou as doenças que são tratadas, nem a forma como os profissionais exercem a sua actividade e os meios que têm para a desempenhar e para a aprender executando-a.
O objectivo de quem dirige deixou de ser tratar os doentes da melhor maneira possível, conseguindo desse modo fazê-lo da maneira mais económica – porque a boa medicina é que fica mais barata, no fim das contas todas feitas. O objectivo passou, sim, a ser gastar o menos possível com os doentes, tratando-os como e quando for possível. Chega-se ao ponto de fechar consultas e limitar tratamentos mais dispendiosos, enviando os doentes a outras instituições, e essas que gastem o dinheiro! Como numa padaria em que, por se achar a farinha cara, se deixa de fabricar pão, enviando-se os fregueses ao vizinho....
Administrativos a dirigir a Saúde
É evidente que uma instituição reflecte a personalidade e a formação de quem a dirige. Pondo-se administrativos – ou actuando como tal - a dirigir a saúde, não seria de esperar que a orientação das instituições de saúde fosse diferente da que está a ser. Não é que o aspecto da gestão económico-financeira não seja importante, é com certeza, mas ela terá de ser encarada como um instrumento para a gestão clínica, e não é isso que tem sido feito, antes pelo contrário: é esta que se tem subjugado duma maneira absoluta àquela. Pelo empolamento que se tem vindo a dar à actuação dos administradores, são os recursos que sobram da gestão administrativa que se aplicam na clínica. O balanço financeiro é positivo? Veremos, se calhar até não, mas mesmo que o venha a ser será sempre à custa dos doentes e do pessoal clínico e, em ultima análise, da própria saúde nacional.
Este aspecto é crucial, como brevemente se tornará por demais evidente. Por um lado, a boa gestão clínica é que poderá permitir uma medicina de boa qualidade e mais barata. As gestões locais dos hospitais, entregue a “administrativos” apenas desejosos de mostrar serviço – leia-se “operar muitos doentes e gastar pouco” – estão em muitos casos a tomar medidas lucrativas para as “suas” “empresas” mas lesivas do Estado do ponto de vista financeiro e, assim, realmente encarecedoras da medicina no país. E não faz sentido o Governo procurar diminuir os encargos do Estado com a saúde à custa do encarecimento desta, a suportar pelos cidadãos, sobretudo num país em que o produto interno bruto teima em não crescer desde os anos mais recentes e os ordenados mínimos se arrastam pelo último lugar da Europa comunitária. Por outro lado, a desierarquização institucional, estabelecida com o intuito de eliminar contestações internas e fazer cumprir sem recalcitrações as directivas das administrações nomeadas, destruiu as carreiras médicas, e a forma que havia de implementar e ao mesmo tempo controlar a formação contínua dos médicos. Que deveria ser uma preocupação central do Ministério da Saúde.
Formação contínua comprometida
À medida que a única preocupação reinante for operar muitos doentes em pouco tempo e com pouca despesa, organizando-se ou destruindo-se os serviços expressamente com esse objectivo, a formação contínua ficará seriamente comprometida, bem como a própria idoneidade para especialização. Sem falar já do trabalho científico, ou de investigação, consumidor de tempo e dinheiro e portanto indesejável em empresas viradas primaria e grosseiramente para a rentabilidade económica. Com as direcções técnicas entregues a muitos que nunca deram provas de terem as condições exigidas para esse desempenho – outra consequência directa e imediata do assassínio das carreiras.
Isto não é uma visão catastrófica, é uma apreciação do que se está verdadeiramente a passar nalgumas instituições, senão em todas. E é a isto que chamamos “mercearização” da saúde, quais pequenas mercearias na preocupação imediata do deve e haver e do produto barato para venda no bairro com um pequeno lucro que dê para ir sobrevivendo, sem grandes riscos. Produto mais elaborado só nos supermercados, e nos armazéns... enquanto não forem também reduzidos ao nível de mercearia de bairro. Depois... em Espanha, aqui tão convenientemente perto, ou por aí fora... Até à India, donde poderão um dia vir médicos especialistas se por cá não os houver em número e qualidade necessários (sic) ... Se cada instituição for gerida e sobreviver desta maneira, a saúde no nosso país é que não irá por certo sobreviver, pelo menos com a qualidade a que nos habituou nos últimos 25 anos do século XX. Mas então, mais uma vez, não se diga que ninguém avisou.
TM on line 23/7/2007, subtítulos da responsabilidade da Redacção

4.7.07

Sobre o Relatório final da Comissão para a Sustentabilidade do Financiamento do SNS

A leitura deste relatório deixa nos portugueses envolvidos profissionalmente nos assuntos da medicina e da saúde uma grande amargura e um pessimismo sobre se haverá realmente capacidade de quem a deveria ter para resolver adequadamente estes problemas. Por um lado, admite-se que no nosso país os cuidados de saúde dos cidadãos têm de assentar no Estado, uma vez que grande parte deles não são apetecíveis para os grupos económicos investindo nessa área mas procurando apenas ocupar o que pode ser rentável daquilo que o SNS vai deixando a descoberto. Por outro, afirma-se a cada passo que o Estado não pode gastar dinheiro com a saúde e que deve ter uma função sobretudo reguladora e financiadora, estando a prestadora a cargo de entidades contratadas; como se essas entidades não tivessem como fim justificativo da sua existência o lucro, o que necessariamente irá encarecer os cuidados prestados. Que terão de ser pagos, não pelo Estado – que já se disse que não tem dinheiro para tal – mas directamente pelos cidadãos, que entretanto já pagaram os seus impostos. E sobretudo pelos cidadãos mais doentes, que são esses que cometem o “crime” de mais vezes recorrerem às instituições de saúde. Quer dizer, para tornar um sistema de saúde sustentável vamos torná-lo mais caro… E a função social do Estado é aqui pouco citada, já que se deve estar a contar com uma mudança da nossa Constituição…
Fica a noção de baralhada. Em que se está a tornar um sistema de saúde que era dos melhores do mundo, e cujo custo só chegou aos 10% do PIB porque o nosso PIB quase parou de crescer há vários anos. A verdade é que o custo da nossa saúde, em valor absoluto, era o mais baixo da Europa dos 15, antes de tudo isto. Muitas alterações na gestão do sistema foram já feitas em nome da sua eventual falta de sustentabilidade, e esta parece cada vez mais difícil de alcançar. Com alterações manifestamente limitativas da sua qualidade e dos cuidados prestados aos cidadãos doentes. E com a destruição de toda uma estruturação que controlava e implementava a qualidade do exercício e a formação dos médicos, o que de todas as consequências negativas foi a pior, de repercussões gravíssimas a médio prazo e até agora ostensivamente ignorada pelo poder porque de muito difícil correcção dentro do novo sistema criado.
Em que ficamos? Parece que o que se está a fazer é poupar nos cuidados de saúde – razão de ser de todo o sistema – e gastar cada vez mais com a parte administrativa, cuja função primordial no sistema é impedir de se gastar dinheiro com os doentes. A preocupação parece ser maior com a sustentabilidade do ministério da saúde e seus agentes nas instituições do que com a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.
TM 2-6-2007 resumo, versao integral ed. on-line