5.12.17

INVENÇÕES E INOVAÇÕES

É perceptível  a diferença entre “invenção” e “inovação”. A invenção assenta num princípio totalmente novo, original, que não existia  antes. Inovação é uma melhoria ou uma nova aplicação, eventualmente dum tipo diferente, de algo já antes descrito e inventado.
Invenções clássicas são, por exemplo, a roda e a pólvora. Quanto à Medicina, ela tem progredido com algumas invenções, mas sobretudo com inovações. Uma das invenções mais básicas, mais fundamentais para a medicina tal como a praticamos hoje, e que por isso passa despercebida quando se fala em grandes avanços tecnológicos nessa área, é a agulha oca, ou agulha de injecções.  É tão vulgar que quase pensamos sem querer que terá existido sempre...  Pois não existiu, claro, houve um momento em que foi inventada. E se pensarmos que foi por um médico, enganamo-nos.
No século XVII (1628) William Harvey descreveu a circulação sanguínea como ela é, publicando em Frankfurt o resultado dos seus estudos num trabalho intitulado Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (em português Um exercício anatómico sobre o movimento do coração e vasos sanguíneos em animais). Anos mais tarde houve dois outros ingleses, inteligentes, curiosos pelo mundo que os rodeava e a sua explicação científica, que, sem terem nada que ver com medicina, leram esse trabalho de Harvey. Foram eles Sir Christopher Wren, arquitecto, físico e astrónomo, que dirigiu a construção da Catedral de S. Paulo, em Londres, bem com a reconstrução da “city” londrina após o fogo que quase a consumiu por completo, e um seu amigo, o bem conhecido físico e químico Robert Boyle. Dessa leitura perceberam como se realizava a circulação do sangue, do coração para o coração, pelas artérias e pelas veias, e, raciocinando sobre isso, pensaram que seria possível introduzir algo nela artificialmente, sem seguir o trajecto normal a partir do intestino, pela absorção. E resolveram, com entusiasmo, testar essa hipótese. Para isso serviram-se dum cão, a quem expuseram uma veia superficial e nela introduziram um tubo oco (base duma pena de ganso), pelo qual injectaram uma solução de ópio, usando uma bexiga de animal para forçar a entrada do líquido.
O ópio era fumado e desse modo conheciam-se os seus efeitos, e como era preciso uma prova de que o que era introduzido directamente na veia seguia o caminho sanguíneo normal, esperava-se que tais efeitos se manifestassem no animal. E foi isso que aconteceu: aquele cão foi, assim, o primeiro “pedrado” por via endovenosa!
Wren e Boyle escreveram a experiência, publicaram-na, e continuaram as suas vidas longe da medicina, deixando para ela uma ideia brilhante. Mas como tantas vezes acontece a quem está à frente do seu tempo e não é compreendido, essa ideia não foi aproveitada. Só no século XIX ela foi recuperada, primeiro para administração subcutânea de líquidos, através dum tudo oco com um trocarte aguçado dentro, e depois com a inovação das agulhas metálicas pontiagudas para injecções subcutâneas, intramusculares e endovenosas, com o uso de seringas, surgindo depois a inovação dos sistemas tubulares de administração intravenosa. As seringas já existiam no tempo  dos romanos, serviam para introduzir líquidos em espaços limitados, e foram sendo modificadas e aperfeiçoadas ao longo dos tempos, por sucessivas inovações. A seringa de vidro, na forma como hoje a conhecemos, apareceu em meados desse século.
Pode-se dizer que a agulha oca abriu o caminho à medicina moderna, quer do ponto de vista diagnóstico, quer terapêutico. Punções as mais variadas, cateteres de todos os tipos, não existiriam sem ela. Ligada ao aparecimento dos cateteres,  outra invenção foi o cateter de balão para embolectomia. E os balões para angioplastia, depois com a inovação do stent que fica no local após a plastia arterial.
Do ponto de vista imagiológico há inúmeras inovações, a partir da invenção que foi a radiografia. Também nas técnicas cirúrgicas as inovações vão aparecendo, muitas delas baseadas nas inovações tecnológicas cada vez mais frequentes, muitas delas motivadas pelas necessidades sentidas pelos cirurgiões na sua prática. E tem havido translação de técnicas dumas áreas cirúrgicas para outras, levadas a cabo por cirurgiões com uma experiência ampla, dumas e doutras.
Uma inovação cirúrgica importante, que correspondeu na realidade a uma mudança de paradigma, foi, às clássicas intervenções de ressecção, de remoção do que está doente, se terem juntado intervenções planeadas de acordo com a fisiologia, e a fisiopatologia das doenças em causa, de modo a, através de alterações anatómicas, se poder recuperar, ou modificar, uma função. Foi uma inovação conceptual, que trouxe o que podemos chamar “cirurgia fisiológica”, de que são exemplos a cirurgia do refluxo gastroesofágico e a cirurgia metabólica e da obesidade.
Thomas Fogarty, o inventor do cateter de embolectomia, diz que “os inovadores quebram regras e vão contra o que está estabelecido”. Na verdade, é sabido que se fazem coisas extraordinárias, em termos de novidade e mudança, fora das guidelines. O que não impede que estas se devam conhecer, e sobretudo os princípios e os trabalhos que a elas levaram. Precisamente não se pode ignorar o conhecimento destes se quisermos tentar fazer diferente. Mas o seguimento cego de protocolos, por quem só sabe fazer duma maneira e faz sempre igual, não conduz seguramente à inovação e ao progresso.
Finalmente, uma chamada de atenção para que o que é novo não é sempre bom, ou melhor.  Devemos ter um espírito aberto para as inovações, mas ao mesmo tempo crítico, capaz de avaliar os prós e os contras, e sem querer forçosamente seguir a novidade apenas para sermos “modernos”.  Há sempre um tempo para se afirmar a validade duma inovação, ou para a infirmar. Esse tempo de espera avaliadora vale nos dois sentidos: para se dizer que é válida e se deve passar a usar, ou para se chegar à conclusão que não traz vantagens e por isso se deve abandonar. Lembremo-nos que nem tudo o que é inovação funciona bem logo de início, às vezes a ideia é boa mas a sua aplicação na prática demora a aperfeiçoar-se, e há que aguardar, ou procurar, esse aperfeiçoamento, sem a falta de paciência de a recusar precocemente, não lhe dando a oportunidade de se vir a afirmar.
Carlos Costa Almeida
In Newsletter da Cirurgia C, Número 14, Novembro de 2017 (Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral-CHUC)