6.12.09

BLOWING IN THE WIND

A nova Legislatura conseguiu o primeiro êxito na área da Saúde. A ministra da Saúde considerou haver condições para terminar com o pagamento pelos doentes dos hospitais públicos de taxas moderadoras no internamento e nas cirurgias. Vai fazer o que tantos clamaram dever fazer, e o próprio ministro Correia de Campos dizia antes de ser ministro, quando labutava na oposição. Está a Dra. Ana Jorge de parabéns.
Muitas vozes se ergueram na altura contra o que consideramos um atentado grave ao Serviço Nacional de Saúde, ao seu espírito, de serviço público tendencialmente gratuito. Dessas vozes avultou, como seria de esperar, a do próprio criador do SNS, o Dr. António Arnaut. A nossa Associação, a Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar, foi das organizações médicas que criticaram a criação daquelas taxas, e den-tre elas a que se bateu duma maneira empenhada, persistente, lógica, convicta, pela sua revogação, chegando ao ponto de apresentar uma queixa no Provedor de Justiça, solicitando-lhe a intervenção no sentido de dirigir ao Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização constitucional daquela medida. Devo dizer que ficámos sem resposta, nem sim nem não. Silêncio.
Pela minha boca, enquanto Presidente, e pela de outros colegas, em diversas ocasiões, a Associação dos Médicos de Carreira Hospitalar fez largamente saber que não concordava com o pagamento que era exigido daquela maneira aos doentes internados e operados nos hospitais, e que até foi apresentado como uma medida para levar os médicos a dar-lhes alta mais depressa, por razões económicas. Vários artigos foram escritos por nós e publicados neste jornal e em revistas médicas, artigos que os jornais nacionais generalistas, note-se, persistentemente se recusaram a aceitar.
Dizem que o tempo é a grande solução. Quantos cheios de razão passam uma vida à espera que o tempo se encarregue de lha dar! Às vezes tarde demais, para eles ou para que não haja entretanto prejuízos severos que precisarão de muito mais tempo e muito esforço para serem recuperados. Não há na vida nada irreparável, mas há coisas muito difíceis de reparar.
Do que se tem passado nos nossos hospitais nos últimos anos, estas taxas moderadoras eram o mais fácil de corrigir: basta um despacho a anular outro despacho. Mas estão longe de ser o mais importante. Queremos, no entanto, acreditar que é um começo, por alguém que saberá ver pelos seus olhos o que vem acontecendo e através disso antever o futuro que se perspectiva. E que obriga seguramente a rever o presente.
As mudanças introduzidas na gestão dos hospitais EPE levaram a uma desestruturação clínica estabelecida, institucional, através duma teia de medidas artificiosamente construída e que precisará de algum trabalho e coragem política para desfazer, mesmo nesta Legislatura. A gestão clínica dos hospitais, condição absoluta para se tirar o maior proveito e rendimento possíveis das instituições hospitalares, foi secundarizada, entregue a quem as administrações entenderam, por razões por que elas serão responsáveis, e que contribuíu muitas vezes para aquela mesma secundarização. As carreiras médicas foram retiradas dos hospitais, mantendo-se os graus com responsabilidades crescentes mas podendo ser, e sendo, os mais diferenciados chefiados pelos menos diferenciados. Numa desierarquização que se reflectiu – e tinha de reflectir, e se irá reflectir mais – na saída de muitos dos mais experientes dos hospitais, por reforma antecipada, ou para a actividade privada, e no desinteresse dos que vão ficando, limitando-se a cumprir o que está contratualizado, como agora se diz, de acordo com o pagamento previamente estabelecido. O estímulo para a progressão científica está moribundo, a formação é um "fait divers" no dia a dia dos trabalhadores médicos, muitos deles contratados por objectivos, à peça ou à hora, segundo critérios os mais variados.
Quer dizer, se as mudanças na administração dos hospitais EPE foram introduzidas invocando a sustentabilidade financeira do SNS, a verdade é que os custos dos hospitais públicos não param de aumentar, e passou a estar cada vez mais posta em causa a sua sustentabilidade técnica e clínica, com a deterioração da formação e as incontornáveis repercussões, pelo menos a médio prazo, na qualidade da medicina praticada e na saúde conseguida.
O tecido hospitalar público nacional ficou retalhado em dezenas de empresas, cada uma delas entregue à administração que Deus lhe deu, gerida à sua maneira. Mas todas elas evoluindo paulatina e insensivelmente para policlínicas. Felizmente, diga-se de passagem, que existem algumas clínicas privadas a tentar evoluir para hospitais.
Há muito a fazer nesta nova Legislatura, e esperemos que o círculo decisório na Saúde se vá abrindo. Nós continuaremos a falar, porque não queremos ficar com a responsabilidade de nada ter dito. A responsabilidade total será de quem decidiu e de quem foi ouvido. Nós iremos tentando que quem manda e decide também nos oiça.
Lembram-se do Bob Dylan? Soprar no vento. Soprar contra o vento… remar contra a maré… de vez em quando… quando é preciso.
C. Costa Almeida in TM

A Saúde, os hospitais e a nova Legislatura - 2

E eis o primeiro resultado positivo da nova Legislatura, já sem a maioria absoluta que ensombrou e inutilizou todo o anterior debate parlamentar: a ministra da Saúde resolveu acabar com as taxas moderadoras nos internamentos e cirurgias nos hospitais públicos, contra as quais a nossa Associação tanto e tão persistentemente se bateu. Se constitucionalmente a saúde a cargo do Estado deve ser tendencialmente gra-tuita, aquelas taxas eram na verdade uma aberração, só possível de fazer vingar no ambiente de decisão autocrática que aquela maioria foi proporcionando, até ser removida. Acho que é agora altura de o círculo de decisão restrito que se estabeleceu na Saúde, coincidente com aquele ambiente, se abrir aos muitos outros, associados e representados, que trabalham naquela área, e cujas opiniões e sensibilidades, divergentes daquele círculo, parecem ser consideradas simplesmente inexistentes.
Muitas decisões desajustadas foram tomadas nestes últimos anos, e que necessitam de ser corrigidas, embora não o possam ser com tanta facilidade como aquelas taxas o foram. Esperemos que a nova Legislatura torne isso possível, com base na sociedade civil médica considerada em sentido lato e não da maneira exclusiva e redutora como tem sido. Nós continuaremos a falar, embora isso nos traga inconvenientes.
Tudo o que dizemos tem um fim construtivo, sugerindo alterações imprescindí-veis sem destruir completamente tudo o que foi feito. No artigo anterior falámos das mudanças administrativas da gestão hospitalar e das suas consequências negativas na gestão clínica, quando a gestão dos hospitais deve ser dirigida ao exercício da medicina.
A colocação das carreiras médicas fora dos hospitais transformou-as, na prática, numa espécie de curso pós-graduado com duas etapas. Não que isso seja mau, numa tentativa de estimular a formação contínua, mas ao não terem uma repercussão directa na vida intra-hospitalar perdem toda a força enquanto carreiras. Outra coisa seria se, como em qualquer carreira, na progressão para cargos de maior responsabilidade e de direcção técnica fossem necessariamente consideradas as carreiras médicas dentro de cada instituição, com comparação objectiva entre os vários elementos de cada grau, balizando as escolhas feitas. Estas vão ser feitas na mesma, mas segundo critérios a que aquelas são totalmente alheias. Nada de diferente do que já se faz, aliás. Amizade, ini-mizade, vingança e compadrio são aqui pedras de toque, ou podem ser, respeitadas pela lei que se estabeleceu.
“Um chefe fraco faz fraca a forte gente”, dizia o nosso Camões. Diminuir o nível no topo arrasta uma diminuição de todos os níveis abaixo. Numa diminuição iniludível de qualidade, com repercussões a médio prazo na nossa medicina e na nossa saúde. Que os administradores nem sequer notarão por não se poderem contabilizar directamente, mas que serão a explicação para uma medicina de má qualidade e cara. Ou cara porque de má qualidade. Ninguém se admire depois – a descida actual no “ranking” internacional tem sido já a pique - ou se assaquem culpas a todos os médicos.
As administrações hospitalares empresariais contratarão quem quiserem, dos graus que entenderem, mas não sei o que farão em termos de ordenados se os seus contratados subirem entretanto de grau. Serão obrigados a pagar-lhes mais? Precisarão de tantos médicos no topo da carreira? É que poderão ser todos, o que teoricamente até seria desejável, mas terão dinheiro disponível para lhes pagar? Com certeza outros menos graduados fariam o mesmo trabalho em termos numéricos, ou até mais, por menos dinheiro…
Os hospitais EPE estão a deixar sair os seus médicos e a contratar outros, ou os mesmos, mas em regime de mero fornecimento de serviços, ao estilo de policlínicas. O contrato individual de trabalho é agora a regra, com remunerações díspares e acordos de trabalho os mais variados, beneficiando objectivamente alguns de maneira às vezes inesperada, para dizer o menos, por razões que com certeza se lhes poderiam pedir, já que se trata de dinheiro de todos nós e não de instituições privadas. Será que o contrato colectivo de trabalho que se vem anunciando virá anular estas combinações pessoais? Terá de ser igual para todos? Pelo menos para os sócios dos sindicatos, como a lei actual prevê, sim. Ser sócio dum sindicato é condição sine qua non para ter acesso a alguns tipos de contrato colectivo de trabalho; se não se for, há o contrato colectivo geral. Ou então o contrato individual, para alguns contemplados, quem sabe se até muito mais vantajoso (isto se o círculo decisório na Saúde não o eliminar entretanto).
Ausência de carreira médica dentro de cada instituição; falta de estímulo estru-turado institucional para progressão científica; nomeações para chefias técnicas e direcções intermédias assentes puramente no “achismo”, de base muito variada, de quem transitoriamente manda no hospital; remunerações díspares por fornecimento de serviços específicos, à peça ou à hora, dos trabalhadores médicos, cuja formação contínua passou a não ser uma preocupação do hospital onde trabalham; perda da ligação de muitos médicos aos doentes e à equipa do hospital onde prestam serviço.
Tudo isto redunda na falta de sustentabilidade científica e clínica dos hospitais. Para uma mudança administrativa não havia necessidade de nada disto. Não quero crer que fosse isto que o ministro Correia de Campos idealizou. Acho mais que se tratou de um efeito colateral inesperado para ele.
Estamos certos que o bom senso acabará por vir ao de cima. Só não queríamos que demorasse tempo demais, com os estragos na medicina e na saúde que já se começam a notar. Quanto mais depressa houver coragem para as correcções necessárias, melhor. Por isso, e porque mantemos a esperança, vamos chamando a atenção de quem decide.
C. Costa Almeida in Semana Médica

A Saúde, os Hospitais e a nova Legislatura - 1

O que espera a Saúde Hospitalar da Legislatura que aí vem? Alguém sabe?
Os programas apresentados pelos diversos partidos candidatos às eleições deixavam antever o que a Saúde seria para cada um deles? Temo que não. E temo mais ainda: não parece que nenhum deles tenha neste momento uma ideia muito precisa do que fazer com a Saúde. Partido do governo incluído. Um agora ex-Secretário de Estado da Saúde dizia publicamente não saber qual a evolução que o SNS viria a ter.
E, no entanto, todos dizem defender o Serviço Nacional de Saúde – o “seu” Serviço Nacional de Saúde. E multiplicam-se as comemorações e cerimónias alusivas aos 30 anos de SNS, numa manifestação que tanto pode ser entendida de vitalidade do mesmo como de suspeita, ou receio, de estar próximo o seu fim… Senão vejamos: não se festejaram os 10, os 20, nem sequer os 25 anos (bodas de prata), porquê agora?...
Mas esperemos que ele não esteja para desaparecer, quando nos Estados Unidos da América se luta desesperadamente para haver um arremedo de um. E quero crer que quem dirige o nosso Ministério também assim espera. A dificuldade reside em que tudo o que se faça agora na área da Saúde tem por trás esta inovação notável, que foi a maior e mais bem conseguida realização pública do Portugal democrático pós-25 de Abril, no seu conjunto com as Carreiras Médicas e os Internatos Médicos. Que a ser modificado só faria sentido se fosse para melhor. E já começou a ser modificado.
Desta nova Legislatura, com um equilíbrio de forças diferente, aguarda-se que consiga corrigir muito do que foi mal feito na Saúde e segue um caminho inapropriado. E, para começar, espera-se que os governantes oiçam quem trabalha e sabe realmente dos assuntos em causa, já que os resultados terão agora de ser a par e passo justificados, perante uma oposição com peso determinante na governação.
O círculo decisório da Saúde no nosso país está fechado: Ministério e Sindicatos. E a Ordem de vez em quando. De fora da discussão fica a restante sociedade, numa visão autocrática derivada directamente do entendimento abusivo que se fazia da maioria absoluta que existia. E que é o de assumir-se que os escolhidos em algum momento como representantes dum grupo passam a ter o direito de saber tudo e falar sempre por todos, em todos os momentos, entendendo-se escolhidos como detentores absolutos da verdade e do conhecimento. Como patrões ou donos, não como representantes. Será que a nova Legislatura, despida da maioria absoluta entendida daquela maneira, irá ter a virtude de abrir o círculo a todos os outros, aos menos iguais?
A empresarialização hospitalar levada a cabo teve consequências negativas de que não havia necessidade, e que urge corrigir, até para a tornar sustentável no tempo.
Para começar, as mudanças implementadas, do foro administrativo, foram alegadamente no sentido de tornar a gestão mais ágil, rápida e eficiente. Mas redundaram fundamentalmente na perda de controlo por parte do Estado do modo como a gestão de cada uma das suas unidades hospitalares é feita. Essa empresarialização, com uma autonomia quase absoluta de cada administração, levou a uma desierarquização nos hospitais estatais, com incontornável reflexo na actividade clínica e científica dos seus médicos, repercutindo-se negativamente na sua formação contínua e de especialização, por um lado, e, necessariamente e em consequência, na qualidade da medicina praticada, por outro.
Entendeu-se fazer enfraquecer as vozes médicas eventualmente discordantes do controlo oferecido aos administrativos dentro dos hospitais pela desierarquização dos Serviços, entregando a sua direcção a colegas menos graduados e com menor estatuto profissional, e mesmo pela sua destruição. Levando por essa via, concertadamente, ao afastamento dos mais diferenciados, para a reforma antecipada, para a actividade privada, para o desinteresse. Assim se tirou peso realmente à gestão clínica, pondo de parte sistematicamente os mais experientes e com provas dadas, para que a gestão administrativa fosse dominante. Curiosamente, quando os problemas que levaram à mudança eram, precisamente, do foro administrativo. Quer dizer, tornaram-se os problemas na sua própria solução. Com criação de mais problemas, como já era de esperar.
Retalharam-se os hospitais em múltiplas unidades entregues aos muitos administradores entretanto contratados, adjuvados por alguns médicos escolhidos pelas administrações, por critérios que são delas. Quando numa empresa, cujo fim único é lidar com doentes, o pessoal mais básico é também o mais evoluído tecnicamente, e o único que entende no seu conjunto e no seu pormenor o negócio de que se trata, é a ele que se deve entregar a sua gestão. Quer dizer, o caminho tem de ser exactamente o oposto do que foi tomado. A gestão hospitalar tem de ser basicamente clínica, centrada nos médicos, coadjuvados por pessoal administrativo com conhecimentos de contabilidade e gestão.
Obviamente é desejável que a qualidade da saúde em Portugal possa ombrear com a dos seus parceiros europeus – já foi uma das melhores, como se sabe, e nos últimos anos veio por aí abaixo – mas há um senão: temos pouco dinheiro. Duplo problema, portanto, para resolver: boa qualidade, pouco dinheiro. Que não se resolve seguramente pelo “contabilicismo”, deformação profissional dos contabilistas: poupar nas contas, para que elas dêem certas ao fim de cada mês. A gestão tem de ser muito mais do que isso, sobretudo quando o resultado é a saúde de todos nós. A boa medicina é que fica mais barata ao país, e essa, sim, é a resposta para aqueles problemas. E só os médicos a podem obter.
A gestão duma empresa hospitalar tem de estar centrada nos doentes que a procuram, e que são estimulados a procurá-la, através de quem lida directamente com eles, e os pode atrair ao hospital, e que, na verdade, justifica a existência da própria instituição – os médicos. Os processos administrativos, não despiciendos embora, são secundários, têm de ser elásticos e maleáveis, adaptarem-se ao que for preciso. Por não o serem é que surgiu esta mudança que acabou por pôr tudo o resto em causa.
E não havia necessidade. Aconteceu precisamente porque quem a gizou não é médico e não se aconselhou bem. Para tentar modificar a pequena parte de que tinha conhecimento, desorganizou tudo o resto. E “tudo o resto” é, só, o fulcro da questão.
Houve ministros não médicos que souberam entender os problemas da Saúde. Com certeza, ouviram os médicos, e restante pessoal da Saúde (o pessoal operacional, os que lidam com os doentes), e entenderam o que lhes foi dito. Mas duma ministra médica espera-se especialmente que estas críticas não caiam em cesto roto, tanto mais que são todas construtivas, porque podem levar a alterar caminhos que comprometem, do nosso ponto de vista, a sustentabilidade técnica, clínica, médica, do SNS e mais, da própria medicina praticada em Portugal. É isso que temos vindo a procurar demonstrar, erguendo a nossa voz, e da nossa Associação. E não desfalecemos, apesar de aparentemente ignorados pelo círculo da Saúde que se criou. Não nos poderão acusar de nada ter dito ou feito. Não teremos essa responsabilidade. Os responsáveis serão só os decisores e seus conselheiros. Apesar de que as responsabilidades no nosso país – políticas, sociais, morais – se diluem muito… Mesmo com as legais vamos vendo o que se passa…
Houve uma comissão ministerial que chegou à conclusão que não havia falta de médicos, até os havia possivelmente a mais. Isso teve consequências. Houve quem levantasse dúvidas, nós fomos desses. Mais uma vez não ouvidos. Limitaram-se severamente as entradas nas Faculdades de Medicina. Agora criam-se cursos de medicina rápidos, e têm de se importar médicos ao quilo – literalmente, por exemplo com a vinda de centenas de médicos cubanos negociada por grosso pelo nosso governo com o governo cubano. E a quem se pede responsabilidade?
No próximo artigo continuaremos, tocando noutros pontos muito sérios para o futuro da saúde do país em que vivemos, trabalhamos e adoecemos, e a ser encarados por esta nova Legislatura.
C. Costa Almeida, in Semana Médica