4.2.18


E um dia vieram os médicos
ou
O Serviço Médico à Periferia em 1975
Carlos Costa Almeida

Quis o acaso que eu integrasse o curso de Medicina que começou o Serviço Médico à Periferia, em 1975. Fiz parte nessa altura da chamada Comissão Nacional de Policlínicos, com representantes do Norte, Centro e Sul, que foi quem discutiu com o governo a ida dos jovens médicos para a periferia, e por isso posso falar na primeira pessoa do que aconteceu, e com conhecimento directo de causa.
O nosso contacto com o Ministério da Saúde era através da então existente Direcção Geral dos Hospitais, e logo nos apercebemos que da parte deles não havia uma ideia precisa do que esse “serviço” deveria ser, de modo que tudo ficou em grande medida entregue a nós próprios, e à nossa iniciativa e capacidade de organização, em cada Região e depois em cada grupo formado. Esses grupos constituíram-se ah hoc, por amizades, simpatias, maior convivência habitual, idiossincrasias, credos políticos, etc. A sua distribuição pelas várias localizações foi sorteada, depois dos locais terem sido escolhidos por uma comissão designada para o efeito em cada Região.
Tínhamos feito o internato geral, na altura composto de um ano de prática clínica (findo o qual nos inscrevíamos na Ordem dos Médicos) e catorze meses de internato de policlínica, e aguardávamos o início do internato complementar, pelo qual tiraríamos uma especialidade hospitalar (os cuidados de saúde primários como especialidade ainda não existiam). E foi nesse interregno que se veio instalar a possibilidade de irmos fazer um serviço médico na periferia, fora dos grandes centros e dos hospitais estatais então existentes, um pouco à semelhança das chamadas “campanhas de dinamização cultural” dos militares. Recorde-se que estávamos ainda num período de agitação revolucionária pós-Abril de 1974, com o chamado Movimento das Forças Armadas (MFA, motor do golpe revolucionário) empenhado em dinamizar e modificar o interior recôndito do país, dentro do entendimento político dominante.
Alguns colegas queriam decididamente ir, por razões políticas, animados de espírito revolucionário. E outros não queriam ir, também por razões políticas, de sinal contrário. Mas a grande maioria queria realmente colaborar em algo que ajudasse a dinamizar o país, a torná-lo melhor, convictos de que se estava a viver uma mudança. Só que daí a saírem da sua rotina, do seu conforto, faltava um bom bocado, em que um certo egoísmo, ou egocentrismo, marcava posição… E, sobretudo, viam com preocupação interromper a sua carreira, ainda mal começada, que ao tempo se resumia à via hospitalar ou à académica, ou ambas.
A minha postura pessoal dalguma rejeição assentava, para além da carreira, no facto de achar – e a lógica, apesar de tudo o que depois se passou, continua a parecer-me presente – que seria apenas populismo enviar médicos inexperientes para zonas sem cuidados médicos organizados, em vez de criar verdadeiros hospitais periféricos, povoando-os com especialistas, e só depois lá colocar médicos em fase de aprendizagem. A isso se juntava o facto de, como a grande maioria dos colegas de Coimbra, já ter perdido um ano seis anos antes, aquando da greve estudantil de 1969. Achava, portanto, que se anunciava simplesmente outro ano de atraso!
Tudo foi discutido em reuniões gerais de médicos, cujas conclusões, votadas na assembleia, eram transmitidas ao Director Geral dos Hospitais pelos respectivos elementos da Comissão (concordassem ou não individualmente com elas…). Acabou por ser decidida a nossa ida, com o nosso acordo, e o que vou descrever diz respeito à Região Centro, uma vez que não houve disposições ministeriais que dessem uma forma e um conteúdo definidos ao trabalho a executar, e que permitissem avaliá-lo depois.
A escolha dos locais recaiu sobre as zonas “piores”, quer dizer, aquelas com maiores carências, e com mais dificuldades sanitárias, onde se pressupunha mais necessária a presença de médicos. Isto é, para além de periferia, escolhemos a extrema periferia. Não pelas vilas onde sediámos as equipas, mas pelo território envolvente e que seria o objectivo principal da nossa acção. Esse era o nosso projecto. À minha equipa, constituída por cinco rapazes e uma rapariga, calhou Castro Daire, terra onde, como diz o outro, fomos muito felizes, e fizemos amigos, entre eles os três médicos locais, os Drs. Zeca, Jorge e Júlio, agora já falecidos, e dos quais guardamos as melhores recordações pessoais. Ofereceram-nos mesmo um jantar festivo de despedida, nas termas do Carvalhal.
Ficámos a viver numa velha casa parcamente mobilada (se é que se pode dizer assim…), perto do Hospital da Misericórdia, o qual tinha ao lado o posto clínico das Caixas de Previdência, onde os médicos locais, com os quais não mantivemos contacto profissional, faziam umas consultas, para além de ocasionalmente internarem uns doentes no hospital. Aqui encontrámos um grupo de militares da dinamização cultural do MFA a pernoitar, os quais, elucidados por nós que precisaríamos das camas do hospital para deitar doentes, foram aboletar-se na prisão do Tribunal, felizmente na altura sem “hóspedes”. Brincávamos então entre nós dizendo que tínhamos começado por meter o MFA na cadeia!
Organizámos duas enfermarias, homens e mulheres, num total de 27 camas, com pessoal auxiliar da Misericórdia e quatro enfermeiros, uma da Misericórdia e mais três do “posto das Caixas”. Estes vieram voluntariamente trabalhar connosco, também eles entusiasmados com a novidade e com a obra que poderíamos todos juntos fazer, percebendo que seria muito mais do que tinham sido até aí chamados a fazer. Estabelecemos as consultas externas, diárias e com horário fixo, e as urgências, de 24 horas, todos os dias, incluindo fins de semana, sempre com médico e enfermeiro em presença física. Recebíamos doentes agudos e crónicos, e traumatizados de todos os tipos, enviando para Viseu só os que não conseguíamos estudar ou tratar em condições. Desbridamento de feridas, pensos, suturas, talas, gessos, passaram a ser a nossa rotina, com doentes internados pelos mais variados motivos, com visita médica diária e cuidados sempre que necessários. O nosso maior receio no início eram os partos, porque só um de nós queria ir – e foi – para Obstetrícia; por isso pedimos ao Director da Maternidade Bissaya Barreto, Dr. Vicente Souto, que nos desse umas lições eminentemente práticas, e tudo correu bem igualmente nessa matéria.
Pela relação de amizade que estabelecemos com outro jovem, o responsável administrativo do posto, conseguimos, mercê também do momento de agitação que se vivia no país, que o que fosse feito aos doentes beneficiários das Caixas de Previdência que vinham ao hospital, por doença natural ou por acidente, fosse imediatamente pago à Misericórdia, mas movimentando nós o dinheiro respectivo. Desse modo pudemos aplicá-lo no próprio hospital, em camas, janelas, cozinha, material de consumo e outro, mobiliário vário, medicamentos. Neste último campo usávamos muitas amostras, mas tudo o resto que fazíamos a esses doentes era pago, e dava para os que não pagavam nada. E o afluxo de pacientes foi crescendo de dia para dia. Depois do dinheiro que aplicámos no edifício e no seu recheio e gastámos com os doentes, deixámos 200 mil escudos na conta do hospital quando viemos embora!
Mas o objectivo principal era a extrema periferia, e por isso abrimos seis postos de consulta, um para cada um de nós, onde íamos uma vez por semana, excepto quando nevava de modo a interromper o caminho para lá, o que no meu posto de Monteiras aconteceu uma meia dúzia de vezes. No fim de semana ficava apenas um de serviço no hospital, e esse folgava na semana seguinte em Coimbra. No entanto, o “seu” posto não ficava sem consulta, e era um dos colegas que o ia sempre substituir. E também fazíamos visitas ao domicílio, às vezes num jeep com um dos militares do grupo lá destacado, um tenente veterinário que foi o único com quem convivemos e que se tornou nosso amigo. Tendo vivido toda a vida em ambiente citadino, foi para mim um choque encontrar pessoas para quem a falta de médico era apenas um pequeno pormenor, já que não tinham electricidade, água canalizada, sanitários, estradas asfaltadas. Foi para mim uma experiência marcante visitar essas pessoas como médico, ir às suas casas, comer com elas do que tinham (pão, chouriço, presunto, queijo, vinho, uma bela sopa cozinhada num pote de ferro na lareira…), numa mesa de madeira à luz dum candeeiro de petróleo, e que me ofereciam com gentileza, não como paga de nada mas em sinal de agradecimento pela minha presença ali com eles.
Alguma dessa gente esquecida esteve internada no hospital, e muitos outros foram vistos em consulta perto de suas casas. Foi um país a acordar para outro, e este a perceber que afinal queriam que ele vivesse. E a nossa ida contribuiu para estabelecer esse contacto, e dar esse sinal, ao mesmo tempo que estabelecemos uma rede de cuidados que mais tarde evoluiria para os cuidados de saúde primários. Pondo a funcionar também um hospital público, com atendimento contínuo de proximidade, resolvendo os problemas da maior parte dos que nos procuravam, localmente, com uma grande comodidade para eles e um enorme ganho de tempo, e desviando doentes de hospitais maiores e com mais recursos, que seriam excessivos. Foi sem dúvida nenhuma o primeiro passo para um Serviço Nacional de Saúde, que viria a ser criado no papel quatro anos depois e aperfeiçoado daí em diante.
Ao contrário do que eu pensava, foi possível fazer o caminho inverso, começar com pouco e ir progredindo, de baixo para cima, seguindo o modelo criado empiricamente. É que eu não contava com duas coisas: o estado paupérrimo em termos de cuidados de saúde básicos nos territórios do interior, em necessidade absoluta de ajuda, por um lado, e, por outro, o espírito entusiástico e empreendedor da juventude destacada durante alguns anos para fazer aquele serviço. Foi esse entusiasmo que nos manteve unidos, sem controlo ou vigilância de ninguém, empenhados afinal  em fazer aquilo que todos gostávamos de fazer: ser médicos. O trabalho de enfermaria, as consultas, os procedimentos na urgência, as visitas domiciliárias, faziam parte desse trabalho, a que não éramos realmente obrigados mas que víamos bem ser muito necessário por parte de quem nos rodeava. Foi muito gratificante sentir essa necessidade e sermos capazes de nos organizar de modo a satisfazê-la, da melhor maneira que nos foi possível. E foi sem dúvida um privilégio ter podido viver esse tempo, de aventura, ilusão e realização, em que crescemos como médicos e como pessoas. Às vezes perguntam-me se seria bom haver outra vez serviço médico à periferia, e eu respondo: “Não, já não faz falta. Agora o que é preciso é que o Serviço Nacional de Saúde continue, sem perder o entusiasmo que já teve...”.
In Número 16 da Newsletter da Cirurgia C, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões), CHUC