E um dia vieram os médicos
ou
O Serviço Médico à Periferia em 1975
Carlos Costa Almeida
Quis o
acaso que eu integrasse o curso de Medicina que começou o Serviço Médico à
Periferia, em 1975. Fiz parte nessa altura da chamada Comissão Nacional de
Policlínicos, com representantes do Norte, Centro e Sul, que foi quem discutiu
com o governo a ida dos jovens médicos para a periferia, e por isso posso falar
na primeira pessoa do que aconteceu, e com conhecimento directo de causa.
O nosso contacto
com o Ministério da Saúde era através da então existente Direcção Geral dos
Hospitais, e logo nos apercebemos que da parte deles não havia uma ideia
precisa do que esse “serviço” deveria ser, de modo que tudo ficou em grande
medida entregue a nós próprios, e à nossa iniciativa e capacidade de organização,
em cada Região e depois em cada grupo formado. Esses grupos constituíram-se ah hoc, por amizades, simpatias, maior
convivência habitual, idiossincrasias, credos políticos, etc. A sua
distribuição pelas várias localizações foi sorteada, depois dos locais terem
sido escolhidos por uma comissão designada para o efeito em cada Região.
Tínhamos
feito o internato geral, na altura composto de um ano de prática clínica (findo
o qual nos inscrevíamos na Ordem dos Médicos) e catorze meses de internato de
policlínica, e aguardávamos o início do internato complementar, pelo qual
tiraríamos uma especialidade hospitalar (os cuidados de saúde primários como
especialidade ainda não existiam). E foi nesse interregno que se veio instalar
a possibilidade de irmos fazer um serviço médico na periferia, fora dos grandes
centros e dos hospitais estatais então existentes, um pouco à semelhança das chamadas
“campanhas de dinamização cultural” dos militares. Recorde-se que estávamos
ainda num período de agitação revolucionária pós-Abril de 1974, com o chamado
Movimento das Forças Armadas (MFA, motor do golpe revolucionário) empenhado em
dinamizar e modificar o interior recôndito do país, dentro do entendimento
político dominante.
Alguns
colegas queriam decididamente ir, por razões políticas, animados de espírito
revolucionário. E outros não queriam ir, também por razões políticas, de sinal
contrário. Mas a grande maioria queria realmente colaborar em algo que ajudasse
a dinamizar o país, a torná-lo melhor, convictos de que se estava a viver uma
mudança. Só que daí a saírem da sua rotina, do seu conforto, faltava um bom
bocado, em que um certo egoísmo, ou egocentrismo, marcava posição… E, sobretudo,
viam com preocupação interromper a sua carreira, ainda mal começada, que ao
tempo se resumia à via hospitalar ou à académica, ou ambas.
A minha postura pessoal dalguma rejeição
assentava, para além da carreira, no facto de achar – e a lógica, apesar de
tudo o que depois se passou, continua a parecer-me presente – que seria apenas
populismo enviar médicos inexperientes para zonas sem cuidados médicos
organizados, em vez de criar verdadeiros hospitais periféricos, povoando-os com
especialistas, e só depois lá colocar médicos em fase de aprendizagem. A isso se
juntava o facto de, como a grande maioria dos colegas de Coimbra, já ter
perdido um ano seis anos antes, aquando da greve estudantil de 1969. Achava, portanto,
que se anunciava simplesmente outro ano de atraso!
Tudo foi
discutido em reuniões gerais de médicos, cujas conclusões, votadas na
assembleia, eram transmitidas ao Director Geral dos Hospitais pelos respectivos
elementos da Comissão (concordassem ou não individualmente com elas…). Acabou
por ser decidida a nossa ida, com o nosso acordo, e o que vou descrever diz
respeito à Região Centro, uma vez que não houve disposições ministeriais que
dessem uma forma e um conteúdo definidos ao trabalho a executar, e que permitissem
avaliá-lo depois.
A escolha dos
locais recaiu sobre as zonas “piores”, quer dizer, aquelas com maiores
carências, e com mais dificuldades sanitárias, onde se pressupunha mais necessária
a presença de médicos. Isto é, para além de periferia, escolhemos a extrema
periferia. Não pelas vilas onde sediámos as equipas, mas pelo território
envolvente e que seria o objectivo principal da nossa acção. Esse era o nosso
projecto. À minha equipa, constituída por cinco rapazes e uma rapariga, calhou
Castro Daire, terra onde, como diz o outro, fomos muito felizes, e fizemos
amigos, entre eles os três médicos locais, os Drs. Zeca, Jorge e Júlio, agora
já falecidos, e dos quais guardamos as melhores recordações pessoais.
Ofereceram-nos mesmo um jantar festivo de despedida, nas termas do Carvalhal.
Ficámos a
viver numa velha casa parcamente mobilada (se é que se pode dizer assim…),
perto do Hospital da Misericórdia, o qual tinha ao lado o posto clínico das
Caixas de Previdência, onde os médicos locais, com os quais não mantivemos
contacto profissional, faziam umas consultas, para além de ocasionalmente
internarem uns doentes no hospital. Aqui encontrámos um grupo de militares da
dinamização cultural do MFA a pernoitar, os quais, elucidados por nós que
precisaríamos das camas do hospital para deitar doentes, foram aboletar-se na
prisão do Tribunal, felizmente na altura sem “hóspedes”. Brincávamos então entre
nós dizendo que tínhamos começado por meter o MFA na cadeia!
Organizámos
duas enfermarias, homens e mulheres, num total de 27 camas, com pessoal
auxiliar da Misericórdia e quatro enfermeiros, uma da Misericórdia e mais três
do “posto das Caixas”. Estes vieram voluntariamente trabalhar connosco, também
eles entusiasmados com a novidade e com a obra que poderíamos todos juntos
fazer, percebendo que seria muito mais do que tinham sido até aí chamados a
fazer. Estabelecemos as consultas externas, diárias e com horário fixo, e as
urgências, de 24 horas, todos os dias, incluindo fins de semana, sempre com
médico e enfermeiro em presença física. Recebíamos doentes agudos e crónicos, e
traumatizados de todos os tipos, enviando para Viseu só os que não conseguíamos
estudar ou tratar em condições. Desbridamento de feridas, pensos, suturas,
talas, gessos, passaram a ser a nossa rotina, com doentes internados pelos mais
variados motivos, com visita médica diária e cuidados sempre que necessários. O
nosso maior receio no início eram os partos, porque só um de nós queria ir – e
foi – para Obstetrícia; por isso pedimos ao Director da Maternidade Bissaya
Barreto, Dr. Vicente Souto, que nos desse umas lições eminentemente práticas, e
tudo correu bem igualmente nessa matéria.
Pela relação
de amizade que estabelecemos com outro jovem, o responsável administrativo do
posto, conseguimos, mercê também do momento de agitação que se vivia no país,
que o que fosse feito aos doentes beneficiários das Caixas de Previdência que
vinham ao hospital, por doença natural ou por acidente, fosse imediatamente
pago à Misericórdia, mas movimentando nós o dinheiro respectivo. Desse modo
pudemos aplicá-lo no próprio hospital, em camas, janelas, cozinha, material de
consumo e outro, mobiliário vário, medicamentos. Neste último campo usávamos
muitas amostras, mas tudo o resto que fazíamos a esses doentes era pago, e dava
para os que não pagavam nada. E o afluxo de pacientes foi crescendo de dia para
dia. Depois do dinheiro que aplicámos no edifício e no seu recheio e gastámos
com os doentes, deixámos 200 mil escudos na conta do hospital quando viemos
embora!
Mas o
objectivo principal era a extrema periferia, e por isso abrimos seis postos de
consulta, um para cada um de nós, onde íamos uma vez por semana, excepto quando
nevava de modo a interromper o caminho para lá, o que no meu posto de Monteiras
aconteceu uma meia dúzia de vezes. No fim de semana ficava apenas um de serviço
no hospital, e esse folgava na semana seguinte em Coimbra. No entanto, o “seu”
posto não ficava sem consulta, e era um dos colegas que o ia sempre substituir.
E também fazíamos visitas ao domicílio, às vezes num jeep com um dos militares do grupo lá destacado, um tenente
veterinário que foi o único com quem convivemos e que se tornou nosso amigo. Tendo
vivido toda a vida em ambiente citadino, foi para mim um choque encontrar
pessoas para quem a falta de médico era apenas um pequeno pormenor, já que não
tinham electricidade, água canalizada, sanitários, estradas asfaltadas. Foi
para mim uma experiência marcante visitar essas pessoas como médico, ir às suas
casas, comer com elas do que tinham (pão, chouriço, presunto, queijo, vinho,
uma bela sopa cozinhada num pote de ferro na lareira…), numa mesa de madeira à
luz dum candeeiro de petróleo, e que me ofereciam com gentileza, não como paga de
nada mas em sinal de agradecimento pela minha presença ali com eles.
Alguma
dessa gente esquecida esteve internada no hospital, e muitos outros foram
vistos em consulta perto de suas casas. Foi um país a acordar para outro, e este
a perceber que afinal queriam que ele vivesse. E a nossa ida contribuiu para
estabelecer esse contacto, e dar esse sinal, ao mesmo tempo que estabelecemos
uma rede de cuidados que mais tarde evoluiria para os cuidados de saúde
primários. Pondo a funcionar também um hospital público, com atendimento
contínuo de proximidade, resolvendo os problemas da maior parte dos que nos
procuravam, localmente, com uma grande comodidade para eles e um enorme ganho
de tempo, e desviando doentes de hospitais maiores e com mais recursos, que
seriam excessivos. Foi sem dúvida nenhuma o primeiro passo para um Serviço
Nacional de Saúde, que viria a ser criado no papel quatro anos depois e
aperfeiçoado daí em diante.
Ao contrário do que eu pensava, foi
possível fazer o caminho inverso, começar com pouco e ir progredindo, de baixo
para cima, seguindo o modelo criado empiricamente. É que eu não contava com
duas coisas: o estado paupérrimo em termos de cuidados de saúde básicos nos
territórios do interior, em necessidade absoluta de ajuda, por um lado, e, por
outro, o espírito entusiástico e empreendedor da juventude destacada durante
alguns anos para fazer aquele serviço. Foi esse entusiasmo que nos manteve
unidos, sem controlo ou vigilância de ninguém, empenhados afinal em fazer aquilo que todos gostávamos de
fazer: ser médicos. O trabalho de enfermaria, as consultas, os procedimentos na
urgência, as visitas domiciliárias, faziam parte desse trabalho, a que não éramos
realmente obrigados mas que víamos bem ser muito necessário por parte de quem
nos rodeava. Foi muito gratificante sentir essa necessidade e sermos capazes de
nos organizar de modo a satisfazê-la, da melhor maneira que nos foi possível. E
foi sem dúvida um privilégio ter podido viver esse tempo, de aventura, ilusão e
realização, em que crescemos como médicos e como pessoas. Às vezes perguntam-me
se seria bom haver outra vez serviço médico à periferia, e eu respondo: “Não,
já não faz falta. Agora o que é preciso é que o Serviço Nacional de Saúde
continue, sem perder o entusiasmo que já teve...”.
In Número 16 da Newsletter da Cirurgia C, Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões), CHUC