O MEU MÉDICO
Carlos M. Costa Almeida
O meu médico, e da minha família, quando eu
era garoto e vivíamos em Moura, no Baixo Alentejo, era o Dr. Janeirinho. Era
ele que tratava os nossos achaques todos, o ataque de reumatismo da minha mãe,
a úlcera duodenal do meu pai, a hipertensão arterial da minha avó, as minhas
doenças de infância – só não entrou no meu quarto quando viu da porta que eu
tinha sarampo, coisa que ele nunca tinha tido e não queria ter... Foi a ele que
o meu pai recorreu quando num final de tarde quente de Verão, quase à hora de
jantar, eu dei com a cabeça na ombreira de pedra da porta, ao brincar ao
“agarra” com os meus amigos, na minha rua. Entrei em casa, já com todos à mesa,
com a cara cheia de sangue que escorria abundantemente duma ferida aberta na
testa. Fomos de imediato ao consultório do nosso médico, que era junto à casa
onde morava, e ele saiu da mesa de jantar, afável e atento como sempre, para me
vir observar, procurou estancar a hemorragia e tentou dar-me uns pontos. Digo
tentou porque, perante a minha gritaria, ele e o meu pai acordaram em deixar a
ferida cicatrizar por segunda intenção e eu ficar com a pequena cicatriz que
tenho na testa...
E foi ele quem enviou o meu pai de urgência para Lisboa quando a
úlcera perfurou. A ambulância teve de atravessar no cacilheiro, não havia ainda
a ponte, lembro-me bem de tudo porque a minha mãe me levou com ela na
ambulância, por não ter na altura com quem me deixar em segurança. Chegámos às
Urgências do Hospital de S. José e o meu pai esperou lá oito horas até ser
operado. Não com certeza por incompetência ou negligência, mas porque era para
onde iam praticamente todas as urgências, quase duas mil por dia, e, apesar de
ter uma equipa de cirurgia de vinte elementos (vim a saber já depois de
cirurgião), havia momentos em que não tinham mãos a medir. Felizmente teve alta
ao fim de doze dias, e no almoço de comemoração que os amigos lhe ofereceram em
Moura foi convidado de honra o nosso médico, apesar de no dia a dia não fazer
propriamente parte desse grupo.
A organização da Saúde no nosso país mudou muito desde então, com
o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras e os Internatos Médicos. E o termo
“médico de família” passou a ser a expressão duma especialidade médica. Mas a
verdade é que os cuidados primários e imediatos da população terão de continuar
a estar nas mãos destes médicos, tal como os nossos estavam nas do “nosso” Dr.
Janeirinho. Não sei se algum seu descendente virá a ler estas minhas palavras,
mas se o fizer ficará a saber da importância que ele teve para a minha família,
de modo a ainda hoje isso me saltar à memória quando falo do “meu médico” de
infância. Não sei que experiência ele teria em suturar feridas (provavelmente
não teria tido a possibilidade de frequentar um curso prático nessa matéria, como
um que o nosso Serviço leva a cabo, especificamente para médicos de família),
mas se calhar estava à vontade a fazê-lo depois de muitas tentativas e erros em
muitos doentes, com muito esforço e muito empenho em fazer bem o que era
preciso fazer!... Como disse, os tempos mudaram, e há condições para mudarem
ainda mais, para melhor.
A cada passo no hospital ouvimos os doentes falarem do “seu
médico”, a quem recorrem nos seus achaques, do que ele lhes diz para fazer ou
não fazer, e que se espera encare, diagnostique e trate o que puder ser feito e
tratado no local, sem envio sistemático para os Serviços de Urgência
hospitalares. Sobretudo depois de as Urgências de proximidade terem sido
progressivamente desactivadas, substituídas por ambulâncias, táxis ou carros
particulares dos doentes ou seus familiares e amigos. Mas terão de ser
atribuídos aos médicos de família os meios e as condições para que possam lidar
no local com os “seus doentes”, daí ganhando a satisfação profissional que tal
lhes poderá proporcionar enquanto especialistas de medicina geral e familiar.
Mantendo, naturalmente, uma ligação directa e fácil com os colegas dos
hospitais da sua zona, com intercâmbio de informação, comunicação de
resultados, troca de correspondência sobre os doentes que, sendo do “seu
médico”, também passam pelo hospital. Não pode haver uma separação de cuidados,
antes uma especialização de cuidados, que há forçosamente que ter integrados, para benefício dos
“nossos doentes”.
Com a concentração (outro nome para fusão, ou para encerramento)
de Serviços, Hospitais, Urgências, o número destes, por um lado, diminuiu e,
por outro lado, foram afastados de muitos cidadãos, marcando ainda mais a
periferia em que estes vivem, seja do país seja das grandes cidades. Por isso é
tantas vezes penoso terem de se deslocar para longe em busca de cuidados de
saúde, sozinhos ou acompanhados pela família, com perda por eles todos de tempo
de trabalho e com gasto de recursos. Procurando pequenos e grandes cuidados de
saúde em grandes Urgências concentradas, totalmente superlotadas por doentes e
profissionais, estes sempre poucos para tanta procura. Como aconteceu naquela
noite no Hospital de S. José ao meu pai, com a peritonite, a mulher e o filho
criança.
A evolução no nosso
país, durante anos de SNS, foi no sentido da descentralização, com Centros de
Saúde e com Hospitais e Urgências mais pequenos e bem equipados, espalhados
pelo país. Melhores condições mais perto dos cidadãos, desde o seu médico de
família ao seu hospital. E os resultados foram muito bons. Face ao que temos
vivido, esperemos que à descentralização não se siga a concentração de novo,
levando os doentes outra vez obrigatoriamente aos grandes Hospitais e às suas
Urgências sobrepovoadas e, por isso, impessoais e menos atentas, com muito
maior risco de erros e complicações.
Artigo publicado na Newsletter da Cirurgia C, Número 6, Fevereiro 2017
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