12.1.10

OUVINDO

Ouvimos a Senhora Ministra da Saúde dizer que tem ouvido as “organizações mais representativas da classe médica” nalgumas das decisões tomadas. Ficámos contentes, é importante que quem tem de decidir queira e saiba ouvir aqueles que conhecem o assunto em causa, sobretudo os que nele trabalham diariamente há muitos anos, que o vivem por dentro no seu dia a dia, que dele fazem parte integrante e incontornável. No caso da Saúde, os Médicos, sem dúvida.
Mas ficámos baralhados com o superlativo usado. É claro que não poderá falar com todos os colegas – sendo médica – e tenha por isso de recorrer às organizações representativas da classe para recolher uma opinião que traduza a da maioria, mas quais são “as mais representativas”? A Ordem deverá ser uma delas, com certeza, mas uma dúvida nos atormenta: seria? Pelo que tem vindo a lume, não temos a certeza. Mas admitamos que sim, pelo menos em parte das decisões.
Uma coisa são as organizações que por lei têm de ser ouvidas, outra as organizações que existem e que representam o sentir da classe e traduzem as suas opiniões. E que por isso devem ser ouvidas também. Interessante, esta subtil diferença semântica na nossa língua entre “ter de” e “dever”.
“Mais representativas” porquê? Por lei? Por maior número de associados? Pela melhor qualidade intelectual ou técnica dos seus associados, ou porque estes têm mais conhecimentos e maior vivência profissional? Porque lidam com mais doentes e conhecem melhor os problemas intrínsecos dos hospitais? Porquê?
Sem discutir que os que tenham de ser ouvidos o sejam, a verdade é que surpreende, por exemplo, que em assuntos envolvendo as carreiras médicas hospitalares a Associação, precisamente, dos Médicos de Carreira Hospitalar não seja tida nem achada. Quer dizer, não tenha sido ouvida, apesar de compreender vários milhares de associados e se focar sobretudo na área em discussão. E seja, sem dúvida, a “organização representativa da classe” que mais se tem batido pelas carreiras médicas hospitalares, postas em perigo de extinção. Preocupação vivida e traduzida intensamente por nós e que, finalmente, foi corporizada agora por um ministro da saúde, médico (por acaso… ou talvez não).
A verdade é que a Ministra da Saúde ouve quem quiser. Temos de aceitar isso. Tem essa prerrogativa, como também tem a responsabilidade de decidir e pelo que for decidido. Neste aspecto, quando muito, poderá invocar solidariamente a daqueles que ouviu.
Ouvimos a Senhora Ministra reconhecer que os hospitais-empresas têm vindo a ser abandonados pelos médicos mais velhos e experientes, com as consequências negativas que daí advêm para a formação dos mais jovens. E que é preciso fazer alguma coisa para suster e, se possível, reverter essa situação. Nós já há muito que vimos sistematicamente dizendo o mesmo, com o acordo de quase todos os colegas e sem, aparentemente, sermos ouvidos pelos decisores políticos.
Mas esta realidade teve uma origem, não surgiu do nada, e isso também nós temos vindo a dizer. Ela derivou das alterações administrativas que geraram os hospitais EPE, e sobretudo da maneira como foram aplicadas no terreno: levaram a uma desierarquização hospitalar generalizada e sistemática, com a desestruturação dos Serviços, e foram estas que “empurraram” os mais graduados para fora desses hospitais públicos.
Não foram só “mais velhos e experientes” que saíram: foram formadores. Já era de prever, e dissemo-lo repetidamente. Ter os mais graduados e competentes a trabalhar chefiados pelos outros, não tem futuro; e foi ao que levou o ignorar as carreiras médicas dentro dos hospitais.
Na verdade os hospitais EPE, na exacta medida em que foram planeados e estão a ser geridos, são incompatíveis com as carreiras médicas hospitalares. Como o Ministério da Saúde parece ter percebido agora que essas carreiras são uma mais-valia, criou umas novas, mas fora dos hospitais, é claro. Só podia ser. Foi uma maneira de ter as duas coisas: umas carreiras médicas, exteriores aos hospitais e que dão uns diplomas, e os hospitais-empresas, onde esses diplomas terão a repercussão que as respectivas administra-ções quiserem. E nas quotas que entenderem. Preenchidas pelos mesmos critérios com que agora preenchem tudo: político-administrativos. Que é o que na realidade torna carreiras e hospitais EPE verdadeiramente incompatíveis.
Mas há uma tentativa de coarctar, pelo menos quantitativamente, a discricionariedade das administrações EPE: o contrato colectivo de trabalho, negociado pelos sindicatos, como é natural, e só válido para quem neles estiver inscrito. A interface legal entre as novas carreiras hospitalares e os hospitais parece, assim, vir a ser esse acordo, o que levanta desde logo algumas dúvidas. Para entrar nas carreiras médicas tem de se estar inscrito num sindicato? Quer dizer, para ocupar uma categoria num hospital tem de se estar incluído no contrato colectivo de trabalho? E quem tiver um contrato individual? E quem tiver um contrato colectivo e depois sair do sindicato que o subscreveu? A carreira médica hospitalar implica pagar para a Ordem e pagar para um sindicato?
Todos estes problemas – de que se fala aqui muito superficialmente porque não se sabe na realidade o que está a ser discutido, e entre quem – só surgiram porque houve uma mudança administrativa que não os previu. Se tivessem sido atempadamente previstos, teriam levado por certo a uma reforma administrativa que não esta que foi feita, nem da forma como o foi. Antes dela não havia problemas significativos ou insolúveis na estruturação clínica dos hospitais, na progressão por conhecimentos, experiência e provas dadas, nas chefias qualificadas, na formação pós-graduada, na qualidade da medicina praticada, e eles surgiram. Há que combater a causa, não tentar atamancar as consequências, no que é apenas uma fuga para a frente. Para tentar manter, afinal, uma mudança que este ano deu mil e quinhentos milhões de euros de prejuízo, mais 30% ainda que no ano passado… E insiste-se!
Os próprios administradores estão, agora, preocupados. Pelo desastre financeiro, e porque eventualmente começaram a perceber que os médicos têm um papel capital também nos resultados económico-financeiros das instituições. É que é a boa medicina que fica mais barata, os bons resultados clínicos pagam. Pagam directamente, para além de deixarem os “clientes” satisfeitos e os profissionais mais realizados e com mais entusiasmo para trabalharem mais e melhor no seu hospital.
Por isso apostar-se – como temos ouvido dizer – na quantidade dos médicos existentes, sem se assegurar a qualidade da sua formação, pode ser mais um erro trágico, com maus resultados e de muito difícil correcção, mesmo a longo prazo. Aumentar o número para, pelas leis do mercado, diminuir o pagamento a cada um, é um cálculo primário, só possível para quem não quiser ouvir que um número excessivo de médicos, muitos deles formados à pressa (pode-se dizer doutra maneira, com os novos cursos de medicina que se anunciam?...), conduzirá forçosamente a muitos mal preparados, com as consequências negativas previsíveis para a saúde nacional e para o seu custo, este a aumentar com a qualidade daquela a baixar. Agravando mais ainda o que já acontece agora, aliás.
Carlos Costa Almeida, in TM