11.10.15

REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS 
MAIS DE 30 ANOS

Parte II
Carlos Costa Almeida
  
Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. A cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes anos, progressos e outras alterações que talvez o não sejam,  e por isso merecem com certeza a reflexão de nós todos, cirurgiões gerais.
A maior alteração foi, sem dúvida, a introdução da via endoscópica, seja laparoscópica, toracoscópica, retroperitoneoscópica ou outra, e a sua relação de dependência com toda a tecnologia a ela ligada.  As intervenções cirúrgicas realizadas por essa via são exactamente as mesmas que as anteriormente executadas por via aberta, permitindo, no entanto, reduzir muito o grau do traumatismo cirúrgico, conseguindo-se uma alta muito mais precoce e um menor número de complicações, ao mesmo tempo que, nalguns casos, se tem uma visão significativamente mais precisa do campo operatório. Trabalhando num espaço fechado criado pela insuflação de gás, ou ajudados pela visão de perto fornecida pela câmara de videoscopia, vemos o que doutro modo não seria possível. E, utilizando instrumentos cirúrgicos cada vez mais elaborados, realizamos por uma abordagem mínima intervenções que, às vezes, através duma incisão extensa seriam muito mais difíceis e trabalhosas.
Há intervenções na cirurgia geral que são notavelmente mais fáceis pela via laparoscópica (como, por exemplo, a colecistectomia, a fundoplicatura gástrica, a apendicectomia), ou retroperitoneoscópica (como a ressecção suprarrenal), outras executadas com a mesma facilidade e outras ainda um pouco mais custosas mas lucrando o doente com o acesso mínimo. Nessas condições, é evidente que é a abordagem endoscópica que deve ser preferida, sempre que não houver contraindicações gerais ou locais que a devam afastar.
Pelo menor traumatismo e maior simplicidade de execução, depois de adquirido o know-how, a videoscopia veio mesmo permitir reabilitar algumas intervenções a caminho de serem pouco praticadas ou até abandonadas. É o caso da laqueação de perfurantes venosas insuficientes nas pernas, em doentes com insuficiência venosa crónica dos membros inferiores, tratamento com indicações indiscutíveis mas, pela dificuldade na localização exacta dessas veias, a ser substituído pela sua ablação transcutânea ecoguiada (por radiofrequência ou escleroterapia), também ela nada fácil, diga-se em abono da verdade, e que a abordagem cirúrgica endoscópica subapnevrótica torna muito fácil para o cirurgião, para além de estar naturalmente integrada na mesma intervenção que lhe vai permitir tratar as outras veias varicosas. E a simpaticectomia toracocervical, e a lombar. Esta continua a ser uma última hipótese em doentes com lesões ateroscleróticas isquémicas não revascularizáveis dos membros inferiores, com possibilidade de 60% de induzir melhoria clínica significativa sem ser, no entanto, possível prever o resultado em cada caso; por via endoscópica não é traumática, não é dolorosa, praticamente não tem complicações, permite a alta poucas horas depois, pode ser realizada em ambulatório e, feita no internamento do doente isquémico, não prolonga esse internamento. Passou, por isso, a valer a pena nos casos em que está indicada.
Curiosamente, a abordagem endoscópica levou por vezes a alterar os passos nas intervenções, por maior facilidade, e isso veio demonstrar que algumas regras classicamente mantidas para a sua realização afinal não deviam existir porque não se justificavam. Duas conclusões a extrair: é possível praticar a mesma boa cirurgião de modos diversos, que devem ser escolhidos de acordo com a regra da maior facilidade de execução em cada caso, e essa escolha é possível para os que detêm a experiência e os recursos técnicos cirúrgicos necessários.
É, portanto, uma via de acesso que devemos ter disponível e que deve ser utilizada quando indicada. Quando da sua divulgação entre nós, no início dos anos 90, apenas alguns centros tinham essa tecnologia, e só alguns cirurgiões a podiam, portanto, utilizar. Eram cirurgiões experientes, mas formados na abordagem aberta, pelo que tiveram de adquirir a postura técnica para vídeoscopia. Muitos conseguiram-no (pela prática e através de cursos de aprendizagem, primeiro mais básicos, depois mais elaborados, obtidos no estrangeiro ou dentro de portas, e que se foram disseminando pelo país), alguns não, tendo sido isso, até, causa declarada ou inconsciente de algumas reformas antecipadas. Hoje em dia é prática corrente, em muitas situações muito mais frequente que a via aberta, e o seu ensino já pode ser feito como anteriormente, pelo trabalho normal: ajudando, fazendo ajudado, fazendo, depois ensinando. O problema da aprendizagem põe-se hoje na cirurgia aberta, já que ela é muito menos vezes praticada e, portanto, as possibilidades de a aprender dessa forma se reduziram.
A evolução da tecnologia também veio permitir criar um conjunto de possibilidades de ensino da cirurgia, para além do seu exercício e da velha cirurgia experimental em animais. Há modelos para treino em cirurgia vídeoassistida e em suturas mecânicas, e há todo um conjunto de meios audiovisuais que nos podem fazem aprender a operar duma forma semelhante à dos pilotos de avião a pilotar antes de chegarem ao avião real. É claro que actualmente é muito mais fácil aprender cirurgia que há umas décadas atrás, com a variedade ampla de meios de aprendizagem de que dispomos. Sendo certo que a execução nos doentes tem de fazer parte integrante também dessa aprendizagem, esta não está tão dependente dela como estava antigamente. O conhecimento da anatomia, ter noção do conjunto da intervenção a praticar e de cada passo dela de per si, saber o que se pretende conseguir, as complicações a evitar, o que fazer para as corrigir, tudo isso se deve aprender antes de operar um doente. Mas sendo tudo isso muito importante, fundamental e inultrapassável é a clínica, são as indicações, a escolha e o momento da intervenção, o seguimento do seu resultado. Devemos continuar sempre a lembrar, e cada vez mais com a explosão da tecnologia que nos avassala, o aforismo que diz: “Bom cirurgião é o que sabe operar; melhor o que sabe quando operar; e melhor ainda o que sabe quando não operar”.
A tecnologia em vídeo aproveitada na vídeocirurgia teve múltiplas outras aplicações. Vivemos na época dos videojogos, cada vez mais realistas e sofisticados, e os nosso jovens cirurgiões pertencem à sua geração. Ao longo da sua juventude adquiriram com entusiasmo e persistência as habilidades e a visão ligadas à videoscopia, que, naturalmente, aplicam a esse tipo de abordagem cirúrgica. É mais um exemplo de aplicação translacional de habilidades e capacidades. O seu exercício pode ser excitante, e nalguns cirurgiões poderá levar à postura de querer fazer o maior número de pontos numa operação endoscópica... mesmo que o doente perca o jogo. Há que saber quando desistir, parar e converter para cirurgia aberta.
Outro aspecto crucial na evolução tecnológica foi a informatização de todo o processo clínico, e a possibilidade de ele acompanhar virtualmente o doente para onde ele vá. Muitas instituições em todo o país já foram capazes de a instalar de modo a, praticamente, fazer desaparecer o papel, facilitando o estudo, tratamento e seguimento dos doentes. Mas também aqui é preciso alertar para o perigo de nos focarmos exclusivamente nas virtudes da comunicação electrónica e nos esquecermos do doente real, da sua observação, de discutirmos, à sua cabeceira (na enfermaria, na sala de endoscopia ou de imagiologia), entre nós e com colegas doutras especialidades, multidisciplinarmente, sinais e sintomas, exames e estratégias, pensando colectivamente em soluções. Há que reverter a prática de certos hospitais em que os vários médicos envolvidos no tratamento dos doentes apenas comunicam por escrito, ainda nos velhos processos em papel ou já nos registos informatizados, aqui de modo ainda mais fácil por poder ser feita à distância (sem mesmo nunca verem o doente!). 
Em relação com a aprendizagem, hoje em dia alguns têm a ideia de que “só faz bem quem faz muito”, e que, portanto, para se fazer bem uma determinada intervenção há que fazê-la o maior número de vezes possível por unidade de tempo. Ora se é verdade que “a prática contribui para a perfeição”, alcançá-la não depende só do número de vezes que se repetem os mesmos gestos, como parece pensarem os que reduzem tudo a números. A rapidez com que se aprende cirurgia é individual, e está dependente, nomeadamente, para além das capacidades de cada um, da sua cultura médica e cirúrgica e da sua experiência prévia e também da concomitante. Naturalmente, um cirurgião que faça só uma intervenção cirúrgica, para manter a mão terá de a realizar muito mais vezes do que alguém para quem essa intervenção esteja incluída numa actividade cirúrgica intensa e variada. O que vai contra a orientação de se querer que os cirurgiões gerais desde o início da sua carreira se restrinjam a um determinado tipo de cirurgia, com abandono de todos os outros. Isso será amputá-los da possibilidade inestimável de adquirirem habilidades e recursos técnicos provenientes duma prática variada, e que os irão enriquecer indiscutivelmente como cirurgiões. Será condená-los a ser subespecialistas, e em cirurgia, também, “quem sabe só duma coisa nem disso sabe”. Para além de que o aspecto multifacetado dum profissional é sempre uma mais-valia e maior garantia de emprego. Outra coisa será, e desejável, o cirurgião experiente tornar-se superespecializado numa determinada matéria.
Se um motorista tirar a carta de pesados e for colocado de imediato em exclusividade numa carreira de autocarros com dez quilómetros de extensão, e passar dez anos a percorrê-la, ida e volta, vinte vezes ao dia, não haverá por certo quem conheça melhor esse percurso, e eu iria muito satisfeito com ele. Mas não o quereria a conduzir uma camioneta de excursão de Coimbra à Lousã ou, menos ainda, numa viagem a Paris.
Da cirurgia geral saíram várias especialidades cirúrgicas, mas isso aconteceu sempre por razões de maior especificidade na evolução da clínica médica relacionada com determinadas patologias, e em procedimentos diagnósticos ou terapêuticos específicos que foram surgindo em relação com essas patologias. Nunca nasceu nenhuma baseada apenas num determinado tipo de cirurgia, e com a justificação do número de intervenções realizadas por unidade de tempo. É natural que, num Serviço, determinadas intervenções menos frequentes sejam realizadas sobretudo por um ou dois cirurgiões, mas não de forma monopolista, excluindo todos os outros, e sempre enquadrados no conjunto do Serviço. Doutro modo a massa crítica para esse tipo de cirurgia reduzir-se-á a um ou dois... E, igualmente mau, o desinteresse forçado de todos os outros levará a que capacidades individuais possam ficar desaproveitadas, em proveito de alguns já estabelecidos mas eventualmente com menos capacidade. E o monopólio, com desaparecimento de competitividade ou emulação, é um factor de perda de qualidade.
Durante séculos a cirurgia foi de ressecção, excisando do corpo as partes doentes. Era uma atitude pouco elaborada, pode-se dizer, apesar de nalguns casos exigir grande maestria e conhecimentos anatómicos, e por isso os cirurgiões não recebiam da sociedade o mesmo respeito que os médicos. Era uma cirurgia mutiladora, anatómica, por oposição a uma mais recente, a que podemos chamar fisiológica: na qual se introduzem alterações na anatomia com o fim de recuperar uma função fisiológica desaparecida ou diminuída, ou de conseguir uma modificação no funcionamento do organismo. Tonou-se possível pelo conhecimento profundo dos mecanismos fisiológicos em causa, permitindo aos cirurgiões manipular as estruturas anatómicas de modo a reproduzi-los ou alterá-los. Exemplo disto é o tratamento cirúrgico do refluxo gastroesofágico e, mais recentemente, a cirurgia da obesidade. A avaliação pormenorizada e sistemática dos resultados das intervenções bariátricas permitiu perceber a sua influência directa no equilíbrio da diabetes mellitus (que não apenas pela redução ponderal), e vai, muito provavelmente, conduzir a mais conhecimentos na fisiopatologia daquela doença, bem como do nosso sistema endócrino e de outras perturbações do nosso metabolismo, para além da fisiologia do controlo do peso corporal. É de prever que num futuro próximo doenças como a diabetes e outras perturbações endócrinas afectando o metabolismo possam ser tratadas directamente pelo cirurgião, no que já se chama de cirurgia metabólica, numa evolução ao arrepio da habitual, que era de tratamento cirúrgico até haver tratamento médico.

Como reflexão final, é natural que algumas instituições se dediquem mais a uma determinada patologia, e assim se transformem em centros de referência, pela sua elevada diferenciação, pelos meios de que dispõem, e a colaboração directa, multidisciplinar, entre várias especialidades, pelos resultados conseguidos, pela ajuda e treino fornecidos a outros centros menos diferenciados, pelos trabalhos publicados e o contributo para o progresso nessa área. Os centros de referência para uma determinada cirurgia devem, assim, ganhar o direito a essa designação, e não ser-lhes outorgada pela benévola simpatia de alguém ou apenas por se restringirem a praticar essa cirurgia. E também aqui não deve ter lugar o monopólio, afastando todos os outros centros da cirurgia em causa. Porque o monopólio é, repito, factor de perda de qualidade: pela falta de emulação e competitividade, pela falta de oportunidades dadas a mais cirurgiões, por uma reduzida massa crítica a nível nacional, com apenas um punhado de especialistas a falar sempre do mesmo assunto da mesma maneira. Outra coisa é ter uma massa crítica maior, com uma hierarquização de competências e meios, permitindo tratar casos simples em centros menos diferenciados e os mais complicados em centros de maior diferenciação. Aproveitando-se assim toda a capacidade cirúrgica instalada por todo o território nacional, estimulando os cirurgiões de todo o país a serem cada vez melhores, tirando o máximo rendimento das condições existentes.
Pub. Revista Portuguesa de Cirurgia, Numero 32, Mar 2015

11.1.15

REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS 
MAIS DE 30 ANOS

Parte I
Carlos Costa Almeida
  
Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. Tive a sorte de nascer para a cirurgia geral ao mesmo tempo que nasciam para todo o país o Serviço Nacional de Saúde, as Carreiras Médicas e os Internatos Médicos. Os quatro fomos companheiros ao longo destes anos e não me agrada a ideia de podermos vir todos a desaparecer um dia ao mesmo tempo (Parte I destas Reflexões). A cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes anos, progressos e outras alterações que talvez o não sejam, e por isso merece com certeza a reflexão de nós todos, cirurgiões gerais (Parte II).

Serviço Nacional de Saúde (SNS)

O SNS foi uma ideia nascida no Reino Unido e depois aplicada no nosso país com um êxito notável. De tal modo que foi sobrevivendo sob a governação dos vários partidos que, sozinhos ou em combinações várias, dela estiveram encarregados. A ideia era o Estado prestar cuidados de saúde a todos os cidadãos, como parte das suas funções e aplicação dos impostos recebidos. Por isso os meios para essa prestação foram a pouco e pouco espalhados por todo o território nacional, em zonas urbanas e rurais e independentemente da sua concentração populacional, na forma de centros de saúde para cuidados primários e hospitais para os secundários. Estes últimos foram hierarquizados em termos de diferenciação, partindo do princípio de que todos os doentes, vivessem onde vivessem, teriam um contacto rápido e fácil com um hospital, capaz de lhes resolver a maior parte dos problemas de saúde ou de os direcionar para outros se precisando de cuidados mais específicos ou diferenciados.
Estabeleceu-se por todo o país uma rede de hospitais estatais de boa qualidade, tratando os doentes que os hospitais das Misericórdias até aí não possuíam capacidade de tratar. E que tinham por isso de “ir para Lisboa” (ou para o Porto, ou para Coimbra, onde estavam os hospitais com os meios, ligados às Faculdades de Medicina e onde o ensino pré e pós-graduado era feito).
Houve, assim, que construir muitos e equipar adequadamente todos, também com recursos humanos, estes capazes de assegurar as funções que não eram mais as de canalizar doentes para os hospitais dos grande centros, antes fornecer uma medicina com a mesma qualidade em todo o território nacional.

Carreiras Médicas

Ao mesmo tempo desenvolveram-se as Carreiras Médicas, cujo embrião residiu nas carreiras médicas dos Hospitais Civis de Lisboa: as Carreiras Médicas Hospitalares desde logo estenderam os seus princípios gerais aos Cuidados de Saúde Primários, embora se tivessem sentido desde sempre diferenças, sobretudo pelo facto de o trabalho médico hospitalar ser necessariamente muito mais de equipa e interactivo.
Os quadros dos hospitais públicos foram preenchidos por especialistas com vários graus de diferenciação, estabelecidos por apreciação da sua actividade profissional, clínica e científica, e exames com provas públicas entre pares. O exame de entrada houve tempos em que era o mais difícil e exigente, e os graus conseguidos na sua carreira profissional hospitalar permitiam e obrigavam os médicos a um envolvimento e uma responsabilidade cada vez maiores na gestão dos Serviços e dos Hospitais.
Desse modo se espalharam por todos os hospitais do país cirurgiões competentes e motivados para trabalhar, aplicando as suas capacidades e conhecimentos,  em vez de ficarem a gravitar em torno dos hospitais centrais já preenchidos, ou de irem para o interior trabalhar nos hospitais das Misericórdias locais, realizando toda a vida apenas a cirurgia que as condições limitadas desse hospitais lhes permitiam fazer.  Aproximar cirurgiões e doentes em instalações de qualidade, com bons resultados, foi um avanço notável em termos de saúde.
Com o estabelecimento dessa actividade cirúrgica em todo o território nacional, incluindo os hospitais mais periféricos, foi possível, e natural, estender a todo o país a formação pós-graduada, com qualidade homogénea, aumentando de forma decisiva a capacidade para essa formação. O que, por sua vez, contribuiu também, e decisivamente, para a fixação de médicos nesses hospitais.

Internatos Médicos

Os Internatos Médicos, para formação pós-graduada até à especialização, foram organizados no nosso país de um modo que teve muito de original, e que incluiu aspectos mais tarde recomendados pelo Advisory Committe on Medical Training, da Comissão Europeia: remunerados, acompanhados por um orientador, com um currículo mínimo estabelecido e um programa de formação, avaliação contínua, com direitos e deveres legalmente estabelecidos, com o objectivo de criar as condições necessárias para uma boa formação, quer teórica quer prática.
Esta organização para ensino, a que os jovens médicos têm acesso por meio de um exame público nacional, veio substituir a especialização por convite dos directores dos Serviços (em geral acompanhando nos hospitais ligados às Faculdades de Medicina o convite para assistente), ou a formação chamada “voluntária”, feita a título de favor, sem programa específico e sem direito a qualquer remuneração pelo trabalho prestado nessa actividade, com tónica no exame final pela Ordem dos Médicos, no que antigamente se chamava “tirar a especialidade à Ordem”.
Na sequência directa dessa situação anterior, já depois de estabelecidos os internatos e com o seu acesso regulamentado mantiveram-se dois exames finais, pelo Ministério da Saúde e pela Ordem dos Médicos (na base de “o meu exame é melhor que o teu”...), até a titulação ser unificada, tal como se mantem hoje.
O trabalho dos internos é pago, mas as responsabilidades de que são encarregados devem estar de acordo com o seu ano de formação e os conhecimentos que entretanto adquiriram, reconhecidos pela sua avaliação contínua. Há uma relação óbvia com as carreiras na sua estruturação, ambos com formação progressiva avaliada continuadamente e com responsabilidades crescentes dela decorrentes. Das quais faz parte integrante e obrigatória a ajuda à formação e ao trabalho dos mais novos.

Entretanto

Entretanto, foram criados os hospitais empresa (EPE), ideia que até poderia ser boa no sentido de tornar mais ágil e responsável a gestão dessas instituições, concedendo a cada uma a possibilidade de se destacar das outras pelos resultados e pelo melhor aproveitamento das condições existentes. No entanto, a primeira consequência dessa empresarialização é que passou a dominar a gestão puramente administrativa dos hospitais, eclipsando a gestão clínica, e os médicos passaram a ser apenas técnicos a fazer serviço numa empresa dentro do plano definido pela hierarquia administrativa. Contratados para funções especificas e às vezes transitórias, por objectivos individuais ou ao molhe, a ideia de equipa a fazer escola aperfeiçoando-se dia a dia foi sendo substituída pela de uma máquina produtiva que interessa sobretudo manter o mais oleada possível. A empresarialização, reclamada como mecanismo de agilização e maior eficiência, redundou numa mais completa funcionarização dos médicos, agora até com horários ao minuto e relógios de ponto. Que discutem e reivindicam acima de tudo contratos, horários e remunerações.
Como cúmulo do triunfo da gestão administrativa, alguns colegas, em vez de lutarem pela primazia da gestão clínica a cargo dos médicos, com a ajuda administrativa julgada necessária, renderam-se a esta e também quiseram ter um curso rápido de administrador. E alguns até se desligaram da medicina por isso... É o caminho inverso do que faz falta.
É claro que os médicos tiveram de continuar a desempenhar funções de direcção técnica, mas por nomeação aleatória, já que a hierarquização pela competência traduzida na avaliação periódica entre pares esbateu-se por completo. Dito por outras palavras, as carreiras, se bem que nominalmente mantidas, deixaram de ter sentido. Os concursos dentro delas passaram a ser apenas uma espécie de subida de escalão remuneratório, apesar do esforço meritório de alguns Colégios para reservar pelo menos a direcção dos Serviços para os mais graduados dentro de cada Serviço. O que nem sempre se verifica, prevalecendo às vezes o critério discricionário “amigo” e todo poderoso da direcção do hospital.
Desvalorizadas as carreiras médicas, o esforço para nelas singrar necessariamente feneceu, isto é, o esforço pela maior diferenciação, no sentido de mais experiência, conhecimentos, trabalho produzido (e não de sub ou super-especialização, que serão alvo de reflexões futuras). Sendo certo, e valha-nos isso, que o brio e vontade de fazer melhor de muitos de entre nós compensarão essa falta de estímulo externo, continuará a faltar a avaliação independente  e comparativa dos resultados conseguidos, e com ela a possibilidade de se acreditar verdadeiramente na ascensão por mérito.
Quando da minha permanência profissional no Reino Unido, explicava eu a dada altura com algum orgulho que os concursos das carreiras no meu país, nomeadamente o de entrada no quadro do hospital, tinham um júri de maioria de fora do hospital, com o intuito de garantir isenção na avaliação. O comentário feito pelos ingleses presentes, “Então são os outros hospitais que escolhem a equipa do teu?”, abalou seriamente a minha visão nessa matéria.  
Os hospitais EPE vieram permitir a contratação directa de cirurgiões, de acordo com as necessidades de cada hospital. O desejo de contratar os melhores deve estar sempre presente em qualquer empresa, e deve poder ser posto em prática. Surgem de vez em quando concursos para admissão nos hospitais, mas que, na ausência de exames com provas públicas, funcionam como entrevistas de emprego, com a subjectividade que as mesmas necessariamente têm. Mesmo quando se lhes quer imprimir alguma objectividade, como nos concursos fechados para recém-especializados, cujo “background” profissional não extravasa o internato de formação específica terminado e avaliado imediatamente antes, vemos resultados extraordinários como o de em seis candidatos o pior classificado no internato ficar em primeiro lugar, ou em quatro o melhor ficar em último. Pensando bem, no Reino Unido é uma coisa, por cá é outra...
Uma alteração positiva foi a possibilidade de os especialistas poderem mudar de local de trabalho com facilidade, por interesse próprio ou das instituições, sem se ter de passar por concursos morosos e que tornavam essas mudanças muito difíceis. Com o aspecto negativo de a gestão administrativa, por vezes demasiado enfeudada a políticas locais ou partidárias, aí ter passado a poder interferir, inclusivamente usando essas mudanças como arma de pressão política eleitoral. E fala-se de os hospitais passarem de novo para as Misericórdias, ou para as Câmaras Municipais, tornando-os ainda mais locais e dependentes da política local e das suas tricas.
O Estado continua a providenciar cuidados de saúde à população, mas sob a tónica do corte nas despesas com a saúde e com os funcionários públicos. E essa tónica tem sobretudo justificado duas acções: por um lado, encerramento de algumas instituições, fusão de hospitais e concentração de Serviços; por outro, pagamento a instituições privadas da função de tratar doentes públicos. Isto levou ao aparecimento nos grandes centros urbanos de muitos hospitais privados, e clínicas, com boas condições técnicas, muitos deles já com um quadro de especialistas próprio mas que dão também trabalho a muitos outros a trabalhar nos hospitais públicos.
A redução de capacidade instalada no público, a par duma provável emigração forçada de especialistas que entretanto se vão formando arrastará consigo uma redução significativa da capacidade formativa. E esta virá agravar o resultado do desaparecimento das carreiras hospitalares, que eram um estímulo fundamental para a formação. Com a agravante ainda de os especialistas das instituições privadas, no momento, provirem todos dos hospitais públicos.  Há sempre a possibilidade de se vir um dia a assistir a uma mudança de paradigma na formação médica pós-graduada em Portugal, com envolvimento significativo da medicina privada, mas por agora, tendo sido os internatos médicos construídos lado a lado com as carreiras, a derrocada destas é de temer que acabe por levar aqueles a ruir também.  

Como última destas reflexões, uma preocupação, em termos de saúde pública nacional, com a concentração obrigatória que se anuncia de tudo o que seja patologias mais complexas e meios técnicos e humanos mais diferenciados nos grandes centros urbanos, quer no público quer no privado. Essa concentração poderá levar a uma nova desertificação de todo o interior em termos de cirurgiões diferenciados, capazes, ambiciosos do ponto de vista profissional, que mais uma vez irão gravitar nesses grandes centros, embora agora com a possibilidade de trabalhar nas instituições de saúde privadas entretanto instaladas, pelo menos nas que quiserem investir em cirurgia diferenciada com a qualidade necessDesse modo os doentes do interior vestir em grande cirurgia mais diferenciadis uma vez ir levs condiç meu paabalo,ária. Desse modo os doentes do interior de novo terão de “ir para Lisboa”... E a capacidade formativa pós-graduada voltará progressivamente a circunscrever-se aos grandes hospitais (tornados entretanto ainda maiores). É, de certo modo, o caminho inverso do que se percorreu nestes últimos trinta anos. Apesar de isso, ao fim e ao cabo, acompanhar tudo o que tem levado a concentrar a população e os meios nos nossos grandes centros populacionais, com desertificação da periferia (o que é, aliás, característico de qualquer país pobre e com dificuldades sociais), não creio que seja um modelo a desejar para o futuro. Esta é uma questão de bom senso e de não ignorar o que previamente deu bom resultado.

Pub. Revista Portuguesa de Cirurgia, Numero 31, Dez 2014