28.12.10

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS HOSPITAIS DE COIMBRA

Surgiu uma alínea à última hora no orçamento de Estado para 2011 sobre a criação dum novo centro hospitalar em Coimbra (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra), fundindo um hospital e dois centros hospitalares já existentes. E mais não se disse, deixando espaço para algumas reflexões, sobre o que existe e irá deixar de existir.
Coimbra é sem dúvida, no momento, uma referência na Saúde do nosso país, e isso deve-se não só à sua Faculdade de Medicina e às outras Escolas de algum modo ligadas à Saúde, mas também à existência de dois hospitais centrais e dois hospitais especializados, dois deles organizados em centros hospitalares, o Centro Hospitalar de Coimbra EPE (CHC) e o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Coimbra (CHPC). É esta concentração de meios que torna a nossa cidade o destino para muitos doentes, como para muitos profissionais que querem cá vir aprender e praticar, para depois levarem os conhecimentos aqui adquiridos para as suas terras, juntamente com uma ligação perene a esta cidade.
Poder-se-á dizer que Coimbra não tem população nem dimensão enquanto cidade para tantos meios de saúde, mas é precisamente isso que a transforma num centro de referência nessa área. O mesmo se passa com muitos grandes hospitais de renome mundial, localizados em cidades pequenas e com uma dimensão que excede larguissimamente as necessidades puramente locais. Na verdade, essas cidades vivem basicamente desses hospitais: só são conhecidas por albergarem a sua existência e a das escolas, laboratórios, institutos, residências, que os rodeiam, e a elas afluem doentes e profissionais de saúde de todo o mundo, dinamizando drasticamente a sua economia.
Os dois hospitais centrais, polivalentes, de Coimbra drenam, como fim de linha, toda a zona centro, cada um com uma área específica, e qualquer um deles é, além disso, procurado por doentes oriundos de todo o país. Em Inglaterra entende-se que deve haver um hospital central por cada milhão de habitantes (isto num país onde os doentes são primariamente vistos pelo seu médico e só excepcionalmente são dirigidos ao hospital, ao contrário do que se passa entre nós). A zona centro de Portugal tem dois milhões e oitocentos mil habitantes, portanto deveria ter três hospitais centrais. Mas por que razão devem estar dois sediados em Coimbra? Em primeiro lugar porque já cá estão, há 37 anos, a trabalhar em pleno e reconhecidos por todos. Depois, porque é muito vantajoso estarem concentrados numa cidade em redor da sua Faculdade de Medicina e das outras Escolas e de Institutos de Investigação, com que podem e devem colaborar, isto numa zona geográfica que tem pouco mais de 200 quilómetros. Seria profundamente errado dispersar estas instituições por várias cidades, destruindo o centro de referência que agora existe, sobretudo quando alguém defende, pelo contrário, a concentração de todos os nossos hospitais num único. Mais uma vez no meio é que está a virtude, como diz o povo.
E o povo também diz “grande nau, grande tormenta”, e acrescenta que “muita gente junta não se salva”. Que é o que se vai obter com a fusão anunciada. Inscrita num orçamento profundamente restritivo, só se pode compreender que vise o não gastar dinheiro. Reduzindo três hospitais a um, será falacioso dizer-se que é para aumentar a acessibilidade dos doentes: ela irá necessariamente reduzir-se, com aumento do número de doentes à espera de tratamento, acumulando-se em listas de espera cada vez maiores. Desse modo se pode poupar na Saúde, realmente, mas não é aceitável poupar não tratando doentes. A não ser assim, há que ter em conta o futuro, pois depois de desmantelados e fundidos os três hospitais não será fácil nem rápido recuperarem-se, sem deixar muitos doentes, de Coimbra, da zona centro e do país, de fora e à espera durante muito tempo.
Além de que a diversidade entre eles, e alguma competitividade existente, é fonte de progresso e de maior oferta para os doentes, ao invés do que se obtém com o monolitismo resultante do monopólio de pessoas e serviços.
Um aspecto positivo nessa reunião de hospitais seria a possibilidade de maior colaboração no ensino e na investigação do que aquela que já há. Seria útil poderem estar unidos pelo Serviço Nacional de Saúde, a que todos pertencem, e pela Faculdade de Medicina, como um centro hospitalar e universitário, tal como foi baptizado antes de existir. Mas fica-se com todas as dúvidas sobre esse possível aspecto, ao saber-se que a Faculdade de Medicina teve conhecimento da decisão como toda a gente mais, pela comunicação social.
Resta, portanto, a poupança pura e simples. Com as consequências já apontadas, mas sem ser evidente que se consiga poupar, feitas as contas à despesa enorme para fundir as três instituições, com tantas particularidades individuais de difícil compatibilização, num gigantesco hospital de difícil gestão e rentabilização, como já não há no mundo. E com o custo imenso de destruir o que levou dezenas de anos a construir. O hospital onde trabalho (CHC, Hospital dos Covões), sei eu que precisa é de mais tempo operatório e de consulta para dar vazão aos doentes que a ele acorrem, e acredito que nos HUC seja igual; mas mesmo que não fosse, quem se lembraria, perante um restaurante cheio e com gente à espera, fechá-lo só porque ao lado há um maior às moscas?! E acho que nem é esse o caso, repito. Os hospitais não se fazem dum momento para o outro, levam muitos anos a constituir-se, e por isso não se devem desfazer de ânimo leve, só por razões de última hora dum orçamento geral. É muito grande a responsabilidade de quem o fizer, e por muitos anos.
A redução de três hospitais de Coimbra (HUC, CHC, CHPC) para um (CHUC) visa com certeza a redução da despesa com a Saúde. Com custos facilmente previsíveis para a Saúde e para a cidade, e sem ser certo que se obtenha redução de despesa, antes pelo contrário. Aliás, à semelhança do que tem acontecido nos últimos anos com as medidas tomadas pelo governo nesta área. Dois mil milhões de euros de prejuízo acumulado depois, há que encarar este facto de frente. E fazê-lo encarar, procurando mudar o caminho seguido. Invertê-lo mesmo, antes que seja tarde demais.
Carlos Costa Almeida, in Diário de Coimbra e Diário As Beiras, 28/12/2010

1.12.10

A SAÚDE E O ALENTEJANO – ou uma história em dois capítulos

Capítulo I – A Saúde

Com o Serviço Nacional de Saúde e os Hospitais como eles eram há 6 ou 7 anos, e as Carreiras Médicas, Portugal estava colocado em 12º lugar no Mundo em termos de cuidados de saúde, 6º na Europa, país pobre ombreando com os ricos nesse aspecto. E gastando muito menos do que eles, 10% do PIB mas com a menor despesa per capita de todos os países da comunidade europeia.
Nesse contexto tínhamos uma medicina estruturada, com uma hierarquia técnica hospitalar bem estabelecida, base duma formação pós-graduada e contínua estimulada e continuamente avaliada, que levou a que médicos de reconhecida capacidade e ambição profissional se decidissem a deixar os grandes centros e os grandes hospitais para se dirigirem ao interior do país e nele produzirem todo o trabalho de que eram capazes. Bons hospitais, centrais e periféricos, com profissionais satisfeitos por lhes ser reconhecido o mérito profissional objectivado pelo trabalho produzido e as provas prestadas, escalonados pela competência demonstrada, assegurando nessas condições a gestão clínica dos seus Hospitais, Serviços e Unidades.
Nessa organização hospitalar assentava grandemente o próprio SNS, e ela permitia a prática, sustentada porque transmitida com naturalidade de geração médica em geração médica, duma medicina de qualidade, e que por isso mesmo ia saindo ao mais baixo custo.
“Esse” Serviço Nacional de Saúde foi sem dúvida a maior e melhor realização estatal e social do Portugal pós-25 de Abril, e colocou a Saúde fora da lista dos grandes problemas do País durante 3 décadas, com reconhecimento internacional desse facto, como aquelas classificações cabalmente demonstravam em 2002.
Mas de repente apareceu alguém clamando que não havia sustentabilidade financeira para esse modelo, que era preciso por isso modificar toda a estrutura hospitalar, vigiar o desperdício dos médicos, controlar a despesa que faziam. A gestão clínica feita era despesista, havia que a administrar do ponto de vista económico-financeiro, os médicos não tinham preparação para tal, daí os gastos, que nessa altura passaram a ser considerados insustentáveis.
A gestão administrativa tomou então conta dos hospitais, arredando do seu caminho a gestão clínica. Os médicos só não foram postos totalmente fora porque sempre faziam falta para o trabalho que justifica a existência dos hospitais. Mas a maneira encontrada de os afastar foi a sua desierarquização, foi o retirar dos lugares de responsabilidade e gestão os que a eles tinha chegado por capacidade demonstrada e provas dadas, e substitui-los por outros. Por muitos que nunca nos seus momentos de maior euforia haviam sonhado sequer em serem-lhes atribuídas funções de liderança e direcção. Que decisões, estratégias, opções se poderiam depois esperar? As melhores?! Muitos dos mais capazes e experientes ficaram saturados com isto, foram empurrados assim para a reforma antecipada ou para instituições privadas, ao mesmo tempo que apareciam nos hospitais-empresa contratos milionários – com as respectivas reformas mais tarde – sem qualquer razão aparente a não ser a arbitrariedade e o oportunismo.
As Carreiras Médicas foram feitas desaparecer, ficou um amontoado de médicos, donde são escolhidos os que chefiam e dirigem por critérios que não têm em muitos casos objectivamente nada a ver com a sua preparação, experiência ou conhecimentos, mas donde avulta a sua capacidade para concordar com o que lhes digam para concordar.
A desierarquização hospitalar chega a atingir foros de ridícula, e a ser motivo de riso amargo, quando se nomeiam directores ou chefes de equipa aqueles a quem ninguém se lembrará de recorrer em caso de complicações ou dificuldades. Mas sobretudo deixou de haver qualquer estruturação credível, no presente ou que se perspective no futuro, que garanta a qualidade, a formação profissional e a progressão de cada médico desde esse ponto de vista dentro destes hospitais EPE (que continuam a ser estatais). O que não tarda afectará também, inexoravelmente, a qualidade e o futuro dos internatos médicos.
Contrataram-se mãos-cheias de administradores e administradores-like, que gastaram balúrdios em gadgets administrativos e informáticos, desviando recursos que poderiam naturalmente ser usados na actividade clínica. Fecharam-se urgências, centros de saúde, centros de atendimento permanente, maternidades, hospitais, serviços hospitalares. Puseram-se os doentes a andar de ambulância dum lado para o outro. Fundiram-se hospitais, que é uma outra forma, disfarçada, de fechar alguns, reduzindo-se com isso o número de médicos, de enfermeiros e de doentes, mas criando necessidade de mais administradores, para encher essas novas enormes instituições hospitalares.
Portugal classificado em 27º na Saúde da Europa comunitária, e a descer. Depois de trinta e cinco anos, manifestações nas ruas de cidadãos descontentes, preocupados e temerosos pela sua saúde e dos seus filhos.
E o aspecto financeiro? Depois disto tudo, como está o aspecto financeiro do Serviço Nacional de Saúde? Com um prejuízo enorme e que não pára de crescer. Um défice que começa a ser paralisante de todo o sistema, levando a medidas restritivas e de poupança cada vez mais marcadas, isto apesar de quase 50% dos cuidados de saúde no nosso país já se calcular que sejam prestados agora por instituições privadas, que se multiplicam como cogumelos num terreno húmido. A par da falência técnica de muitos dos hospitais EPE, grandes responsáveis pelo descalabro das finanças da Saúde. E onde se reduzem equipas médicas abaixo do que é considerado aceitável em termos de segurança profissional e dos doentes, e da formação médica; onde começa a faltar material clínico e meios de diagnóstico e tratamento; onde se fecharam consultas e se dificulta o acesso aos doentes, empurrando-os duns hospitais para os outros, em nome duma apregoada rentabilização que soa fortemente a restrição, com acumulação de serviços cada vez mais longe dos pacientes. A que se junta a descomparticipação total em muitos medicamentos e a tentativa de obrigatoriedade de prescrever apenas os mais baratos, retirando aos médicos e aos doentes a possibilidade de escolha por outro critério.
Enfim, tudo o que sugere a real falta de sustentabilidade financeira do SNS. Que não é consequência do défice financeiro nacional, antes veio contribuir largamente para ele.

Capítulo II – O alentejano

Um alentejano chegou a casa ao fim da tarde e não encontrou a mulher. A casa estava toda desarrumada e por limpar, os filhos choravam com fome. Procurou comida para lhes dar, e para ele próprio, não havia nada preparado e a despensa estava vazia. Quis mudar a fralda ao filho mais novo, não havia fraldas, procurou uma camisa lavada para si próprio, estavam todas para lavar.
Durante duas horas esperou, tentando acalmar os filhos e o estômago, sem o conseguir, ansioso e preocupado. Finalmente a mulher chegou.
- Mulher, onde é que estiveste? A casa desarranjada, nada para comer, os filhos a chorar, um suplício, onde é que foste?! – perguntou-lhe ele com ansiedade.
- Homem, fui ao cabeleireiro, precisava de ir ao cabeleireiro sem falta.
- Mas pra quê? Pra que é que foste ao cabeleireiro? – interrogou o marido sofredor.
- Ora, pra ficar bonita, pois então!
- Mas então por que é que não ficaste?!...

C M Costa Almeida