28.12.08

O SILÊNCIO DOS SURDOS

Diz o nosso povo que “o pior cego é o que não quer ver”. De igual modo “o pior surdo é o que não quer ouvir”, aquele que se força a um silêncio circundante que depois interpreta como entende, em geral de aceitação tácita por todos os que o rodeiam de tudo o que faz e diz, de modo a viver tranquilo, na convicção de que vai no caminho certo para ser depois recordado da melhor maneira.
Tive em Inglaterra um Professor com quem aprendi muito, eu e todos os que tiveram a felicidade de com ele trabalhar, vindos dos quatro cantos do mundo. Britânico típico, contido e de poucas falas (à excepção de dias de festa, em que se abria mais), impunha respeito naturalmente, pelo trabalho científico produzido mas sobretudo porque era uma referência para o Serviço em termos humanos e profissionais, a quem se recorria nos momentos de aflição, que ele tomava invariavelmente como seus deixando as eventuais repreensões internas para depois de passada a crise. Pois era clássico esse Professor dizer aos seus colaboradores: “Não me deixem fazer asneiras, avisem-me”. O que isto não significa de inteligência, de espírito de abertura, de vontade constante de aprender e evoluir, e também de ensinar! E que prova de autoconfiança nas suas capacidades e conhecimentos! A este respeito ocorre-me também, gratamente, um outro Professor que tive, quando aluno da minha Faculdade, que publicou um livro sobre “O erro de diagnóstico”, apresentando erros seus e discutindo-os.
A Saúde no nosso país sofreu uma reviravolta nos últimos anos, baseada fundamentalmente no facto de a gestão clínica ter cedido a primazia, por mecanismo legislativo, à gestão administrativa pura e dura. Muito se tem escrito sobre isso, mas muito já se começa claramente a perceber do que vai ser o resultado final de tal mudança. Os administradores hospitalares todo-poderosos tornaram-se a eles próprios o centro dos hospitais, desequilibrando por isso o barco da saúde - esperemos que ainda se vá a tempo de evitar o naufrágio que se anuncia.
Procurou-se criar uma forma de gestão empresarial aplicada aos nossos hospitais públicos, mas não o conseguiram fazer sem eles serem descaracterizados, modificados, mudados na forma e ao mesmo tempo deformados no seu conteúdo. Tudo para que coubessem no esquema de gestão inventado. É como comprar um sistema informático para uma empresa mas para ser capaz de o aplicar ter de mudar toda a empresa. Em vez de ter a capacidade de construir um programa (ou modificar um já existente) de modo a registar e coordenar com eficiência o trabalho normalmente produzido.
Cada vez mais vozes se vão erguendo contra o que está, mas sem resultado, sem qualquer inflexão no programa talhado pelo governo nesta matéria, para além de pequenas mudanças que a política do dia a dia recomenda, dentro daquele princípio político de que “é preciso mudar alguma coisa para ficar tudo na mesma”. E a verdade é que os problemas fundamentais criados pela nova forma de gestão hospitalar se mantêm inalterados, pesem embora as vozes discordantes.
Querer hospitais geridos como empresas, mas para alguns nomear “gestores” com um marcado e por todos reconhecido espírito de funcionário público, no significado mais monolítico, limitado e burocrático do termo, não poderia ter bom resultado. Retalhou-se o país em dezenas de empresas públicas de saúde geridas ao bel-prazer e livre arbítrio de quem foi posto a dirigi-las, com resultados no terreno muito diversos. E o Estado ficou refém dessas pessoas: a única intervenção que pode ter na gestão é a sua substituição por maus resultados, financeiros, clínicos ou ambos - sempre tardia, portanto.
A nova ordem hospitalar dizia-se pretender agilizar a gestão dos hospitais. E, no entanto, levou indirectamente à realidade de nalguns reinar a burocracia mais perra e desmotivante, enquanto governamentalmente se entrou pela obrigatoriedade de horários médicos rígidos, totalmente desadequados à maior parte da actividade clínica e em grande medida atrofiando-a.
Qualquer empresa procura contratar os melhores, oferecer-lhes condições de trabalho (às vezes bem mais importantes e sedutoras para os mais aptos e ambiciosos do ponto de vista intelectual, e bem mais baratas, do que qualquer engodo financeiro), e entusiasmá-los num projecto clínico de que façam parte e pelo qual se batam. Um projecto ganhador, lógico, bem estruturado, e não uma “coisa” puramente administrativa, sem base clínica séria e por isso sem futuro e condenada ao fracasso em pouco tempo, tratando-se duma empresa que é um hospital.
Encher os hospitais de administradores e querer fazer acreditar que é da função deles que dependem os bons resultados da instituição é um erro crasso. Pensar que os médicos que mais conversam com os administradores e lhes dizem que sim a tudo é que são os tais com capacidade para gerir os serviços, é outro. E maior ainda quando se pensa que um bom médico, com trabalho científico produzido, procurado pelos doentes e respeitado pelos colegas, não é por isso capaz duma função tão complexa e elevada como “gerir”.
Foi a desierarquização introduzida deste modo nos hospitais que os levou a uma situação que, a não se reverter rapidamente, se tornará insustentável. Por enquanto vai valendo um resto da organização que existia pelas carreiras médicas. Trocou-se algo com princípio, meio e fim, e que por isso durou, com êxito, durante dezenas de anos, por uma coisa que não tem estrutura que lhe permita sobreviver muito mais tempo.
Foi animador ver recentemente o político motor de tudo isto temer que o “serviço público dos hospitais EPE” possa estar em perigo. Tem razão, tardiamente. Teria sido bom vê-lo reconhecer também que tinha igualmente razão quando, antes de ser ministro, considerava as taxas moderadoras no internamento hospitalar, implementadas depois por ele, inconstitucionais e aberrantes.
O problema maior para os ideólogos da nova ordem na saúde é que antes as coisas funcionavam sem sobressaltos. E agora não. E cada vez mais encontramos doentes portugueses, a viver em Portugal, que tiveram de ir a Espanha, e a Cuba… E hospitais que limitam as patologias a tratar adentro das suas portas porque algumas saem caro, e preferem enviar os doentes para outros, perto ou longe - para outras empresas, elas que gastem o dinheiro. O tratar doentes é sopesado do ponto de vista económico-financeiro, variando entre quem tem vistas largas de supermercado ou visão de merceeiro de bairro. O aspecto clínico é apenas secundário, adaptado ou distorcido perante os contratos estabelecidos na esfera administrativa pura e simples. Insiste-se, por exemplo, em realizar centenas de pequenas intervenções, no projecto da cirurgia do ambulatório, mas ocupando para tanto as salas de operações onde cancros e outra grande patologia deveriam ser operados. E a verdade é que o ministério da saúde ficou refém da lei que elaborou: não pode intervir nestas situações, mesmo que oiça falar delas e saiba que elas existem.
Mas de tudo isto o aspecto mais preocupante, para já mas principalmente a médio e a longo prazo, é o da formação médica. Também aqui se está a viver dos que se formaram e ganharam experiência na ordem antiga, isto é, no SNS antes da reviravolta e do fim real das carreiras médicas. Estas estão longe de ser um problema apenas sindical de contratação colectiva de trabalho ou de patamares de progressão salarial. Muito para além disso elas foram durante anos o garante dum esforço constante de aperfeiçoamento e um estímulo eficaz para a produção de trabalho científico, de investigação clínica, de revisão de resultados, e ao mesmo tempo um sistema de avaliação com critérios definidos e concursos públicos sujeitos a discussão e escrutínio administrativo, científico e legal. Tudo acabou, a desierarquização científica e técnica obtida pela nova lei de gestão hospitalar vai paulatinamente conduzindo à anarquia e ao salve-se quem puder.
Ouve-se isto a cada passo. Não querer ouvir e imaginar um silêncio circundante atento e venerador não adianta. E não tem futuro.
Para além disso, criaram-se nos hospitais duas situações perfeitamente antagónicas mas ambas profundamente prejudiciais para a prática médica. Dum lado, tarefeiros médicos contratados à hora, sem possibilidade de integração com os colegas com quem trabalham episodicamente em variadas instituições. Do outro, médicos forçados a serem funcionários públicos de horário rígido como qualquer funcionário manga-de-alpaca, com redução da sua actividade clínica àquele número de horas. Mesmo que se diga agora que não é bem assim, é: senão para que serviria o controlo biométrico pelo dedo?! Uma originalidade portuguesa, em abono da verdade, que não existe noutro país, nem com dedo nem doutra forma qualquer - por que será?!
Por tudo isto já se esperava uma quebra na qualidade da medicina, com repercussões na saúde. Que vão aumentar exponencialmente, com a formação contínua pós-graduada posta em causa pelo desaparecimento das carreiras e o afastamento dos mais diferenciados. Foi sem surpresa que se viu a posição de Portugal na Europa no campo da saúde baixar do 6º lugar (quando éramos 12º a nível mundial) para 19º no ano passado e agora para 26º. A descida foi rápida, mas surpreendido só terá ficado quem não ouvia o que se dizia.
A qualidade da medicina foi sacrificada à vertigem administradora das novas administrações. Tudo tem que girar à volta dos administradores - centro do sistema hospitalar – e daí também não veio mais-valia económica, já se esperava e foi o que aconteceu, só quem não queria ouvir se espantou: o défice financeiro da saúde não diminuiu, antes aumentou, e muito. Pudera, a saúde mais barata é a que se consegue com a boa medicina, e a função dos administradores hospitalares deveria tão-somente ser ajudar a criar as condições necessárias para que ela possa surgir. Praticada e gerida pelos médicos, clinicamente.
C. Costa Almeida in Tempo Medicina

17.11.08

Mas então, afinal...

O Verão que passou trouxe três factos novos à saúde do nosso país. O primeiro é a constatação de que há falta de médicos, e uma falta grande e com tendência para se agravar nos próximos anos, e os outros são duas maneiras que o governo engendrou para a corrigir, “adquirindo” de repente ou num tempo muito curto mais umas centenas de licenciados em Medicina.
Mas então afinal há falta de médicos em Portugal?! E esse panorama vai piorar dentro de alguns anos? Mas isso não se passava já há quatro ou cinco anos atrás? Nessa altura não veio o Governo afirmar que não havia nada falta de médicos, se calhar até havia demais, estavam era mal distribuídos? E a comissão governamental nomeada especificamente para avaliar a situação não transmitiu essa conclusão? Estaremos todos a ser vítimas de um acidente vascular cerebral colectivo que nos apaga memórias recentes e confunde o espírito?
Há erros grosseiros, com repercussões dramáticas, que simplesmente não se podem ter. Não quando implicam a governação de um país, ainda por cima numa área tão sensível e tão importante para os seus cidadãos como é a saúde. Não se pode errar tanto. E principalmente não se pode depois vir calmamente dizer tudo ao contrário, no fundo esperando que como de costume a culpa seja “da política”. É verdade que “a política” tem sido responsável por tanta coisa mal feita neste país, tanta que já nos habituámos. Mas quem lida com a saúde sabe que há hábitos fatais, quer isto dizer que têm de se perder porque senão podem conduzir rapidamente à morte.
A limitação da entrada de estudantes nas nossas Faculdades de Medicina assentou afinal em contas e cálculos mal feitos. Pois expliquem isso agora aos alunos com médias de 17 e 18 valores no 12º ano que não conseguiram seguir a sua vocação para médico. E ao jovem estudante com média de 18,43 que não pôde entrar em Medicina porque a nota mínima nesse ano foi de 18,45. E afinal faziam falta, deviam ter entrado, eles e muitos outros, já que a classificação mínima exigida tem apenas que ver com o número total de alunos a admitir. E esse deveria ter sido muito maior, dizem-nos agora: às centenas. Como é possível errar tanto?! Mas perguntamo-nos também, à cautela: as contas de agora estarão bem feitas? Serão precisos tantos?...
Os médicos são processados judicialmente pelos seus erros; os conselhos de administração dos hospitais EPE são responsabilizados pessoal e individualmente pela má gestão económico-financeira (e tarda que o sejam também pelo malbaratar ou desbaratar dos recursos humanos e da capacidade instalada nos hospitais que lhes foram confiados); já se percorreu algum caminho no sentido de responsabilizar os juízes quando cometem erros (no Egipto antigo o Faraó mandava cortar as orelhas aos juízes que julgavam mal). E os nossos políticos? Continuarão a esconder-se impunemente atrás da “política”?...
Na sequência daquele erro vem o segundo facto notável deste Verão: o anúncio da importação de centenas de médicos do estrangeiro (da inevitável Cuba, mas também doutros países, fora e dentro da CEE), responsabilizando-se o nosso Governo pelas despesas com o processo de equivalência dos oriundos de fora da Comunidade Europeia, cubanos incluídos. Quer dizer, tem de se pagar para virem para cá, e virão por certo não os melhores da terra deles, esses ficarão lá ou emigrarão para locais mais apetecíveis para médicos bem preparados, com apetência científica e desejo de progredir enquanto profissionais. Isto porque a nossa medicina pública, tradicionalmente mal paga mas que tinha ainda assim, numa medida razoável, atractivos nesse aspecto, deixou de os ter com a sua empresarialização e o fim das carreiras médicas. Atente-se, por exemplo, no predomínio exigido da quantidade sobre a qualidade nos hospitais-empresa; na substituição da grande cirurgia por pacotes enormes de cirurgia de ambulatório ocupando nalguns hospitais o espaço operatório daquela, perante a indiferença ministerial; no encerramento da prestação de serviços em algumas patologias, com afastamento dos doentes para outros hospitais, por ficarem caros à empresa-hospital; na dificuldade crescente de introdução de medicamentos novos e de aquisição e pagamento de instrumentos e material de consumo mais sofisticados e com aplicação menos frequente. Nos hospitais públicos a gestão clínica cedeu lugar à gestão puramente administrativa, atulhados que estão de administradores limitando, complicando e encarecendo a actividade clínica, razão de ser da sua existência. Estabeleceu-se uma enorme dificuldade em fazer investigação clínica, com equipas médicas desmotivadas e compostas e recompostas a bel-prazer de quem manda no hospital, sempre numa lógica economicista de contratação dos mais baratos e cordatos, que não dos melhores. E nem vale a pena falar duma quase absoluta falta de investigação experimental. Se juntarmos a tudo isto o facto da saída de muitos dos médicos mais experientes desses hospitais, uns para hospitais privados, outros por reforma, a grande maioria antecipada (porquê?...), ficamos com o panorama que no momento presente a medicina pública hospitalar em Portugal oferece.
Compreende-se assim que a maioria dos médicos que para cá venham o façam apenas numa lógica de emigrante mercenário, que vem ganhar “o seu”, empregar-se por exemplo como tarefeiro à hora numa dessas empresas de aluguer de médicos que por aí agora pululam, geridas por administradores hospitalares, por médicos ou mesmo por enfermeiros. E eu a esses colegas até os compreendo (afinal o nosso Ministério da Saúde não lhes oferece muito mais), enquanto que outros, os de cá, se desqualificam desempenhando um trabalho médico desgarrado, ocasional e indiferenciado a troco apenas de um pagamento principesco em comparação com o que auferem do seu trabalho hospitalar específico. E o político responsável por esta aberração ainda escreve livros a vangloriar-se dela!
Mas o Governo não aposta só nos estrangeiros, anunciou também que vai produzir médicos rápidos no Algarve, num curso de 4 anos – terceiro facto.
Fico espantado – e espanta-me ainda mais o silêncio generalizado – quando se anuncia um curso rápido de medicina, para formar “clínicos gerais”. Estarão a falar daquela especialidade para cujo internato se concorre depois de tirar o curso de Medicina e fazer um ano de internato comum? Ou de outra coisa, eventualmente com o mesmo nome mas até agora desconhecida? Ainda pensei que fosse alguma brincadeira (teria de ser de mau gosto), mas não, foi apresentado com pompa e circunstância pelas mais altas individualidades do Governo. E semelhante anúncio não pareceu preocupar a Associação dos Médicos de Clínica Geral, pelo menos publicamente, nem do mesmo modo a Ordem dos Médicos. Mas será que esses profissionais serão inscritos na Ordem dos Médicos? E depois poderão concorrer com os outros para uma especialidade diferente? É conhecido o programa de formação acelerada anunciado? Não poderá ele, quem sabe, ser aplicado às Escolas de Medicina, aligeirando a formação dos médicos portugueses e adaptando-a ao futuro que se começa a prever da nossa realidade em termos de saúde, com a Espanha aqui tão perto para os casos mais complicados (leia-se “mais caros”)?...
A verdade é que das Faculdades de Medicina também não se ouviu qualquer comentário, nem expressaram pelo menos curiosidade. Por um curso anunciado oficialmente para começar antes do fim do ano, dirigido expressamente àqueles que queriam ser médicos, que tinham essa vocação e não conseguiram entrar em Medicina, por uma limitação de entradas considerada agora desadequada. Se se quiser de algum modo compensá-los – admitindo o erro – permita-se a sua entrada numa Faculdade de Medicina com as equivalências a que tiverem direito. Apoucá-los para o resto da vida dando-lhes “uma espécie” de curso de medicina, apoucando ao mesmo tempo os clínicos gerais, é que não me parece minimamente razoável. O que parece pretender-se é usá-los para aumentar rapidamente a mão de obra médica em Portugal através de “médicos rápidos”, acompanhando afinal a época de “comida rápida” em que vivemos. Esquecendo primariamente que está demonstrado que a fast food não é boa para a saúde.
C.M.Costa Almeida in Tempo Medicina

20.5.08

A AVALIAÇÃO

Dias depois da tomada de posse da nova ministra da saúde, um responsável do ministério anunciava que estavam a trabalhar na criação duma grelha para avaliação dos conselhos de administração dos hospitais EPE. Nada nos poderia dar mais satisfação: é mais que tempo, e mais que necessário, que pessoas a quem foram confiados milhões e milhões de euros dos cofres do Estado possam ser correctamente avaliados pelo destino que deram a todo esse dinheiro.
De imediato alguns presidentes de conselhos de administração vieram clamar, à laia de aviso, que não era fácil serem avaliados, até porque estavam dependentes dos profissionais que tinham a trabalhar nos “seus” hospitais. E isso é verdade, essa dependência é um facto, e é positivo que pelo menos alguns deles a reconheçam, embora não se saiba que influência tal facto tem na sua actuação administradora. Mas a verdade também é que um responsável tem que assumir as suas responsabilidades, e não esconder-se atrás dos seus subordinados, imputando-lhes a culpa de um eventual fracasso (ao mesmo tempo que, se calhar, fica sozinho com os louros quando as coisas correm bem). Napoleão Bonaparte ganhou muitas batalhas à custa dos seus soldados, os quais no entanto ficaram globalmente na história apenas por serem os seus soldados. E quando foi vencido em Waterloo, mais uma vez foi ele que perdeu, não os seus soldados, apesar de historicamente se saber que essa derrota se ficou a dever em grande parte à não execução cabal e atempada dum plano de batalha confiado ao comandante de um dos seus regimentos. Mas foi ele quem foi derrotado, e destronado, e preso, e que morreu no exílio. Não o seu exército, que apenas perdeu o chefe.
E isto faz todo o sentido, porque a responsabilidade da organização dum exército, da sua estratégia e da táctica no combate, pertencem por inteiro ao comandante em chefe e ao seu estado-maior. Como lhes pertence também a responsabilidade da nomeação das chefias intermédias, a sua coordenação, o assegurar-se que os soldados aceitam essas chefias e compreendem as suas ordens e indicações. E finalmente, por último mas com certeza não em último, a de saber motivar todo o exército, entusiasmá-lo, galvanizá-lo, como Napoleão fez ao conseguir que os seus soldados quisessem até morrer por ele.
É claro que para se chegar à avaliação dos hospitais EPE não é preciso ir tão longe, e tão alto. Bastará ficarmo-nos prosaicamente pela comparação com as equipas de futebol, em que se os jogadores não gostarem do treinador, ou este os não motivar adequadamente, ou a direcção do clube não lhes pagar o indicado, pura e simplesmente correm, correm no campo mas realmente não jogam e não ganham. E a solução não é substituir a equipa.
Quando os lugares de chefia intermédia num hospital estavam dependentes duma carreira, duma sucessão de exames e concursos, de provas dadas, os conselhos de administração podiam queixar-se de que todos aqueles júris eram constituídos por incapazes e que eles, que detinham a capacidade de saber “achar” quem eram os melhores, infelizmente não o podiam fazer e tinham de conviver sofredoramente e trabalhar com os que chegavam ao topo da carreira. Mas essa possibilidade de assacarem culpas aos concursos desapareceu-lhes, uma vez que as nomeações para os vários lugares de chefia e de responsabilidade intermédia estão-lhes agora totalmente nas mãos.
Mas é verdade que não é fácil avaliar o trabalho dum conselho de administração dum hospital. É que não se pode olhar simplesmente para a frieza de números expostos em quadros de contabilidade mais ou menos criativa, como não é bastante saber quantas “cirurgias” foram feitas ou quantos doentes foram ao hospital ver o médico. O equilíbrio ou desequilíbrio financeiro dum hospital estatal é tão somente uma parte dos problemas duma instituição que tem como objectivos a saúde duma população, o seguimento e acompanhamento de muitos dos que estiveram doentes, a formação pós-graduada de profissionais, o ensino de alunos, a investigação para se conseguirem melhores – mais eficazes, mais eficientes e mais baratos - métodos de diagnóstico e de tratamento. Tudo isto está relacionado, para além de condições materiais, com uma enorme equipa de profissionais cujo trabalho competente, coordenado e entusiástico é que pode fazer render o dinheiro aplicado.
Construir hospitais e equipá-los é fácil, basta ter dinheiro. O difícil e moroso é construir equipas, de médicos e outros profissionais, competentes e eficientes, que desempenhem a função que ao hospital cabe e justifiquem a sua existência e os seus custos, contribuindo ao mesmo tempo para a formação de outros e para uma melhoria nos cuidados de saúde prestados à população. Ora o que se tem vindo a passar nalguns hospitais-empresa é que, em vez de manterem os bons profissionais, os mais experientes e sabedores, estimulando-os a fazer mais e melhor trabalho, parece antes fazerem um esforço (voluntário ou por inépcia) para os afastar, para os empurrar para fora do hospital, para a actividade privada, seja por reforma antecipada ou licença sem vencimento, seja simplesmente por desmotivação e desinteresse em relação a uma administração hospitalar que se mostra incapaz. Quando médicos muito diferenciados, líderes de opinião, que durante várias dezenas de anos trabalharam com afinco na instituição e contribuíram para a sua qualidade clínica, se vão embora dela muito antes do tempo, algo está mal. E será de inquirir o conselho de administração sobre o que se passou, e saber o quanto é ele próprio responsável por essas saídas - eis um factor de avaliação da sua actividade.
Enquanto do ponto de vista económico-financeiro o ministério da saúde mantém algum controlo, no resto os conselhos de administração dos hospitais EPE são totalmente autónomos, não prestam contas a ninguém, e daí a sua absoluta responsabilidade.
Em termos de recursos humanos tem-se assistido nalguns a uma desierarquização catastrófica, com promoção de minhocas a jibóias, aparentemente esperando-se que essa simples promoção trouxesse as qualidades e a capacidade que os promovidos não têm, nem nunca tiveram e nunca hão-de ter. É claro que os contemplados nessa campanha promocional, guindados a cargos e funções que nem nos seus mais desvairados sonhos esperaram algum dia possuir, tudo farão para os conservar, sobretudo nunca contrariando quem os nomeou. E parece ter sido esse o objectivo. Com a perversão acrescentada de serem os menos qualificados a avaliar e classificar os mais qualificados. Se as coisas correm mal, se a qualidade do serviço desaparece, se a formação é posta em causa, se começa a haver problemas com os doentes, então a responsabilidade é do conselho de administração e é com certeza um factor de avaliação a ter em conta. Sobretudo se os próprios doentes e os médicos em formação se começarem a queixar oficialmente, e a idoneidade formativa for posta em causa.
Outro aspecto a avaliar é a organização imposta ao hospital, já que a reorganização ou desorganização estabelecidas são totalmente da responsabilidade do conselho de administração, como as Administrações Regionais de Saúde e o próprio Ministério da Saúde afirmam quando questionados sobre uma ou outra situação particular e mais gritante. A actual lei de gestão hospitalar permite-o, mas há que pedir responsabilidades a quem as tem. Estruturas hospitalares modificadas e pouco operacionais, resmas de administradores pululando nos corredores do hospital, procurando ganhar dinheiro com uma instituição que existe para tratar doentes - que é o que os médicos e os outros profissionais de saúde fazem - , tudo deve ser considerado. Qual o aumento em gastos administrativos, incluindo ordenados de administradores?
Quando se avalia a gestão dum hospital há que saber também o que conseguiu fazer com o que o hospital possuía, nomeadamente em capital humano e em tecnologia e “know-how”. Há hospitais do Estado geridos como empresas em que tudo isso tem sido malbaratado, eu diria mesmo desbaratado, sobretudo em médicos bem preparados e competentes. Ter capacidade de tratar doentes dalgumas patologias, até frequentes e cada vez mais frequentes, e simplesmente afastá-los, desperdiçando a capacidade instalada ao longo de dezenas de anos, apenas com o intuito pequenino de poupar dinheiro e transferir essa despesa para o vizinho, é com certeza também um factor de avaliação. Procurar resolver os problemas financeiros locais dum hospital estatal sem querer saber da saúde regional ou nacional não é por certo positivo, e deve contar num “score” de capacidade de gestão hospitalar.
Em suma e para concluir, é fundamental avaliar a actividade dos conselhos de administração dos hospitais EPE, e rapidamente. Essa avaliação não é fácil, porque é complexa e deve ser feita sob múltiplos aspectos, para além do económico-financeiro. Há hospitais com as contas eventualmente certas – outros nem isso - e destruídos por dentro, e o Ministério da Saúde, que empatou lá o dinheiro que é de todos nós, não sabe. É altura de querer saber. Há aspectos muito mais importantes que o económico-financeiro, porque as consequências dos erros aí cometidos levarão muito mais tempo a ser corrigidas e terão muito maior impacto negativo no país, para além de no próprio hospital. Mesmo no campo financeiro, porque ao fim e ao cabo gastou-se dinheiro para se cometerem os erros.
Mas entenda-se é que a dificuldade de avaliar a actividade dos responsáveis não reside nos profissionais que trabalham no hospital. Esses pelo contrário deveriam ser ouvidos: para saber o que pensam e que futuro antevêem para a instituição, e se estão contentes e a trabalhar a par com o seu conselho de administração, ou pelo contrário apenas esperando, senão desejando, e pedindo a Deus, que ele seja substituído. Este deveria ser outro factor na grelha de avaliação.
Carlos Costa Almeida, in Tempo Medicina 12/5/2008

As Urgências e a queda de uma comissão

A substituição de um sistema com provas dadas durante trinta anos, e longe de se ter esgotado, por um outro que não se percebeu ainda qual é, só poderia dar origem a confusão, e a desorganização, o que leva inevitavelmente à descrença e à angústia. E estas não são boas conselheiras, especialmente numa área tão importante para todos e cada um como é a saúde.
A reorganização das urgências não fugiu a este quadro. A famosa “incompreensão” geral do que foi planeado nesse campo traduziu acima de tudo um desacordo, também pelo proposto mas sobretudo pelo modo como o ministério o executou. “Não se percebe” como se fecham urgências antes de se criarem as que as iriam substituir. Mas compreendeu-se que se queria era fechar. Com certeza para poupar dinheiro, isso entendeu-se, diminuindo os meios técnicos e humanos, concentrando-os, mas também dificultando o acesso dos doentes aos centros de urgência restantes. Pensou-se muito nas grandes e aparatosas emergências, deixaram-se esquecidas as “dores de barriga” – que podem ser tudo, só depois se vê.
Foi um trabalho longo, creio que com aplicação, mas com poucos resultados. Para lá de um evidente: ter contribuído objectivamente para a queda dum ministro que já ninguém desejava. O trabalho da Comissão esgotou-se, estava na hora de terminar.
Carlos Costa Almeida, in Semana Médica, 15-21 Maio 2008

15.2.08

O EMPREGO

Sentado numa cadeira encostada à parede do grande hall, onde se encontra um “relógio do dedo”, aguardo já sem reacção que chegue a minha hora da lá pôr o meu dedo médio da mão direita. Foi esse dedo que dei para amostra, quando ainda reagia contra este culminar da funcionarização dos médicos nos hospitais do Estado.
Faltam ainda quinze minutos. Vem sentar-se na cadeira ao meu lado outro colega da velha guarda. Falamos de trivialidades, depois, inevitavelmente, do estado da medicina e da saúde no nosso país. Olhamos o aparelho na parede… “Isto está tudo feito num oito, caramba” - foi o desabafo dele. Quando finalmente chegou a nossa hora de saída cumprimos o ritual burocrático e fomos à nossa vida. No parque de estacionamento despedimo-nos com um conformado “até amanhã”. Amanhã voltamos ao emprego.
Pego às 8, com um atraso permitido de 15 minutos. Está bem, é o quarto de hora académico muito à portuguesa, sim senhor. A hora de saída é variável de dia para dia na semana, mas perfeitamente estabelecida em cada dia – só não sei se tem alguma tolerância, lembrei-me agora. Há dias, uma intervenção complicou-se, saí duas horas e meia depois, ultrapassando todas as tolerâncias possíveis. Um mau hábito ainda, não voltará a acontecer. Hoje já não aconteceu: não comecei o que não podia acabar dentro do horário. Dizem-me que quando sair mais tarde um dia, poderei sair mais cedo noutro, mas este horário controlado rigidamente levou a que estabelecesse o início da minha vida diária depois do hospital do mesmo modo, não há por isso lugar a sair mais tarde nem mais cedo – só àquela hora.
Ao esperar para “picar” o ponto lembrei-me: “Por que não? É um emprego como tantos outros, há tanta gente a fazer o mesmo…”. E desatei a pensar na minha vida profissional antes, a saída da Faculdade, a entrada no hospital, depois neste mesmo hospital, o entusiasmo, as tardes passadas a fazer histórias clínicas, a deambular pelo Banco, absorvendo a pouco e pouco a emoção de lidar com a vida e a morte, dando tudo para salvar uma pessoa que nunca se viu antes e se calhar nunca mais se verá. As longas horas nocturnas ajudando em intervenções cirúrgicas para que me tinha oferecido para ajudar, sem ganhar um tostão por isso. E no dia seguinte chegar antes da hora para preparar a visita médica, e ficar o tempo que fosse preciso. A assiduidade era marcada pelo trabalho feito, por estar presente quando necessário, quantas vezes tão depois da hora de saída. E a escala (sim, escala, e completamente fora de qualquer horário oficial e pago) para vir aos sábados, domingos e feriados ver os “nossos” doentes. Estavam no hospital mas eram “nossos”, estavam a nosso cargo, sentíamo-los como nossa responsabilidade directa. A nossa obrigação era tratá-los, cuidar deles, mandá-los embora bem, ou o melhor possível, marcando encontro mais tarde para verificar se continuavam bem. E quando algum internado piorava e o colega de serviço entendia que precisava de reoperação, telefonava sempre para o responsável pelo doente avisando-o, discutindo o caso com ele, e quantas vezes era este que completamente fora de horas ia operá-lo.
Há poucos dias um antigo director do Serviço passou por lá e, comentando-se “o dedo”, perguntou: “Mas quando vêm cá ao domingo como é que fazem para “picar” o ponto?” A resposta foi uma gargalhada a meia voz, meio encabulada: “Ninguém vem mais ao domingo, fora do seu horário”.
Do prazer, do entusiasmo, da disponibilidade mental permanente, da dedicação aos “nossos” doentes, das idas com interesse ao “nosso” hospital, a qualquer hora, ficou uma máquina de controlo biométrico de assiduidade. Um pormenor tão pequeno, uma exigência dispendiosa tão gratuita, por inútil, como ela levou a uma radicalização tão grande duma mudança que já vinha a processar-se de há uns anos para cá! Desde que a saúde passou a ser gerida administrativamente, e não clinicamente.
É claro que quem tem uma profissão administrativa, sentado a uma secretária, provavelmente nem compreenderá bem o que estou a dizer, mesmo que trabalhe num hospital. O que é curioso é que a nova lei de gestão hospitalar, que dizem que foi feita para agilizar a administração, o que conseguiu foi burocratizar mais a saúde. Criando-se condições para expandir a saúde privada, em grande parte à custa de médicos e doentes da pública, vão-se tirando condições para esta poder competir com aquela. A liberalização dos hospitais estatais foi basicamente entregue a quem tem o espírito de funcionário público, e desta incongruência não se podia esperar outra coisa.
Hospitais transformados em empresas e entregues a si próprios, ou melhor, a quem foi lá posto a dirigi-los. Que em muitos casos querem acima de tudo poupar dinheiro, e para isso dispensam pessoal médico e outro, restringem consultas e seleccionam patologias, afastando as mais dispendiosas. Como um restaurante que para poupar despede os chefes e fica só com os ajudantes de cozinha, já que não precisa de mais para servir carapaus fritos. Mas terá de mandar os clientes de pratos mais sofisticados e mais caros para outro restaurante. O problema é se todos fizerem assim… Como ficará a comida no país?... Teremos de ir comer “paella” a Espanha?... E onde os novos aprenderão a cozinhar?
“Isto está tudo feito num oito, caramba.” Ficou-nos o emprego, por enquanto. E a medicina privada, felizmente em expansão. “Não há-de ser sempre assim” – respondi eu. Será que é isto que temos para oferecer aos jovens que venceram tantas dificuldades para realizar o sonho de ser médico? Este emprego, ainda por cima tão mal pago?... Aos mais velhos vá que vai ficando a recordação do que durante trinta anos não foi assim.
O sistema de saúde mudou, a gestão hospitalar também, mas era sempre melhor o que passou. O presente é assim, tenhamos esperança no futuro.
Carlos Costa Almeida, Revista da Ordem dos Médicos

3.2.08

INCOMPREENSÃO

O ministro da saúde agora substituído clamava que o país não compreende o alcance das mudanças introduzidas no nosso sistema de saúde. É claro que se pode dar uma interpretação governamentalmente conveniente a essa incompreensão, a de que são precisas mais explicações sobre o que se pretende com as medidas tomadas. Mas ela também pode interpretar-se, em bom português, de outra maneira: como um generalizado desacordo com o que tem vindo a ser feito.
E no entanto há quem diga compreender, e que considere até estúpidos todos os outros, os que não percebem. O problema é que os “estúpidos” são, para além dos doentes, os profissionais que com eles lidam no dia a dia dos hospitais e dos centros de saúde, e que os tratam ou procuram tratar.
É realmente preocupante que seja quem está no terreno, os produtivos, os profissionais que são o núcleo do sistema e cuja actuação justifica tudo o resto que à sua volta gravita, quem começa por não compreender. E mais preocupante ainda é que quando o Dr. António Arnaut, há umas dezenas de anos, introduziu as mudanças profundas que constituíram o Serviço Nacional de Saúde, todos perceberam. Desde os doentes aos profissionais de saúde, todos as entenderam, não houve “estúpidos”, muito menos geraram manifestações populares e vigílias de repúdio, ou explicações ministeriais sistemáticas sobre a morte de doentes alegadamente por falta de assistência. E o bom resultado dessas medidas viu-se durante 30 anos, tendo dado origem à porventura maior realização social após o 25 de Abril.
A verdade é que há muita gente a falar do que não sabe. Se cada um falasse do que sabe – o que implicaria para alguns não falar da saúde só por ouvir dizer - chegar-se-ia com certeza mais facilmente a bons resultados. Urgências, emergências, casos agudos, falsas urgências, urgências básicas ou polivalentes, etc., são tudo assuntos clínicos, que aos médicos dizem respeito e a ser discutidos e resolvidos entre médicos. Não se compreende que esquemas e planos elaborados por esses técnicos nessas áreas possam depois ser distorcidos por razões declaradamente políticas, ou melhor, partidárias.
Não se compreende que uma nova lei de gestão hospitalar tenha pura e simplesmente inviabilizado as carreiras médicas, eliminando a estrutura que foi um dos pilares do SNS e contribuiu decisivamente para a boa formação pós-graduada contínua dos nossos médicos, com as repercussões negativas que se antevêem a curto prazo.
A nova lei produziu hospitais desestruturados, com muitos serviços tecnicamente desierarquizados, com chefias escolhidas “ad hoc”, de acordo com parâmetros também eles incompreensíveis. E evidenciando uma preocupação com a produtividade médica centrada no controlo biométrico de assiduidade, revelando um pungente desconhecimento da natureza da actividade médica e das suas particularidades e idiossincrasias, como actividade nuclear do hospital, com ignorância de que o melhor caminho para atingir aquele fim seria confiá-lo à gestão clínica de cada serviço. Mas compreende-se que para isso a nomeação dos directores clínicos e de serviço teria de ser feita doutra maneira e a gestão dos hospitais intrinsecamente diferente.
Também não se compreende que vantagens trouxe retalhar o tecido hospitalar nacional em dezenas de empresas, geridas por pessoas que esmagadoramente apenas querem que o “seu” hospital tenha menos prejuízo que os outros, administrando-o para isso como uma mercearia de bairro, sem terem minimamente em conta a função de cada instituição hospitalar no quadro sanitário do país e na zona onde está inserida.
Vá lá que é claramente perceptível o objectivo fulcral da política de saúde do nosso actual governo: poupar dinheiro na saúde. Ou melhor, gastar menos dinheiro, porque poupar seria manter a mesma qualidade gastando menos dinheiro, e infelizmente a nossa descida no ranking internacional das qualidades de saúde nacionais é acelerada. Quem dirige a saúde dessa maneira percebeu que tem dois grandes óbices: por um lado os doentes que querem ser tratados, por outro os médicos que os querem tratar. Por isso houve que dificultar o acesso dos doentes aos locais onde os cuidados médicos são prestados, e ao mesmo tempo criar toda a espécie de incómodos e dificuldades aos médicos hospitalares, levando-os mesmo a sair para a medicina privada.
Mas nessa preocupação economicista já não se percebe o porquê de atulhar os hospitais com administradores hospitalares, ainda por cima isentos de horário, como se fossem eles a eventualmente demorarem mais tempo a operar um doente ou a sentirem a necessidade de ir ver algum fora de horas. Num delírio administrativo que levou também a gastos sumptuários com sistemas informáticos dispensáveis, sobretudo quando se quer poupar dinheiro.
Compreende-se que a saúde dum país deve assentar primariamente nos cuidados de saúde primários, por isso não se compreende que os médicos de família vão sendo colocados fora do circuito dos “seus” doentes. As emergências pré-hospitalares dizem respeito ao INEM, mas procurou-se eufemísticamente acentuar uma diferença entre urgência e caso agudo, para justificar que os doentes não precisam de procurar o seu médico, nem devem fazê-lo, até pode ser perigoso, eles não sabem nem têm condições. Ora alguém que durante a noite, ou num sábado, domingo ou feriado, tem uma dor de barriga e vómitos, ou uma forte dor de cabeça ou de ouvidos, ou dispneia moderada com tosse, ou um pico hipertensivo, ou uma descompensação da sua crónica insuficiência cardíaca, etc., precisa com urgência de um médico, não dum bombeiro, dum enfermeiro, ou dum emergencista. E não precisaria provavelmente de ser deslocado para uma urgência hospitalar a cinquenta ou sessenta quilómetros de distância, onde chega sem ter sido visto antes pelo “seu” médico, ou outro.
Compreende-se, pois, que as urgências hospitalares estejam cada vez mais sobrecarregadas com doentes, e que o atendimento possa por isso ter falhas, mas já não se compreende que nelas se diminuam as equipas e reduzam as especialidades, tornando-as frequentemente locais de trabalho quase impraticáveis e perigosos. Ao mesmo tempo que do chamado plano de reestruturação das urgências tenham resultado apenas encerramentos, quando se encerram também centros de saúde e de atendimento permanente, em vez de se criarem nesses centros as condições necessárias para não ser “perigoso” os doentes lá irem de urgência.
Como se vê, da reforma da saúde em curso há muita coisa que não se compreende, na asserção semântica de não se estar nada de acordo com ela. Mas uma coisa não se compreende mesmo, é por que razão o governo vai gastar milhões numa auditoria estrangeira a esta política de saúde, só para que alguém possa eventualmente dizer bem duma coisa de que quase todos os que a sentem na pele dizem mal. É mais um gasto inútil, no meio de tanta poupança, mesmo que não se pague mais para o resultado ser menos negativo.
Carlos Costa Almeida, Pub Tempo Medicina.

21.1.08

AS LISTAS DAS CIRURGIAS

É bom que os doentes que necessitam de ser tratados o sejam, depois de se saber o que têm e qual o tratamento mais apropriado, seja cirúrgico ou seja médico. Como também é muito importante que os doentes tratados sejam seguidos e avaliados, para se ajuizar da eficácia do tratamento realizado e evitar atempadamente as recidivas ou os agravamentos da doença.
A grande bandeira do ministério da saúde tem sido tão só a das “cirurgias” realizadas, contabilizando-as a aumentar e as respectivas listas de espera a diminuir. A parte cirúrgica dos hospitais é a mais rentável em termos económicos, e é também a que mais se presta a notícias mais ou menos bombásticas nos jornais. É evidente que todos percebem que a saúde dum país é muito mais que isso, basta lembrar os doentes com acidentes vasculares cerebrais, insuficiência cardíaca, ou renal, ou respiratória, terminal, artrite reumatóide, Alzheimer, cancro inoperável, SIDA, doenças do neurónio motor, pés diabéticos, isquémias crónicas dos membros inferiores, etc., etc., tantas situações muito menos apetecíveis para os hospitais. Mas enfim, prestemos por um momento atenção aos números apresentados pelo ministério sobre as “cirurgias”, e tomemo-los até por correctos.
Têm aumentado, mas sobretudo à custa de intervenções realizadas fora do hospital onde os doentes foram observados e a indicação cirúrgica posta. O que significa antes de mais uma falência desses hospitais. E muitos doentes têm sido enviados para fora do país (por exemplo para Espanha e para Cuba), o que significa uma falência do nosso sistema de saúde, aproveitando-se do bom funcionamento do dos outros. Diferente seria se houvesse intercâmbio de doentes, mas isso não acontece. E não é por falta de preparação ou conhecimentos dos nossos especialistas, por enquanto.
Os doentes deveriam ser observados, estudados, operados e seguidos pelo mesmo médico, ou pela mesma equipa, sendo eles próprios a fazer essa escolha, até como teste de qualidade. Não é isso que se passa, podendo sim escolher entre hospitais perfeitamente desconhecidos, a centenas de quilómetros de casa, do “seu” hospital e dos “seus” médicos, para onde têm de se deslocar por conta própria, várias vezes. Para ocasionalmente lhes ser dito que não têm indicação cirúrgica… Ou terão ou não, quem vai saber isso ao certo?... Que voltem ao hospital de origem para tirar isso a limpo! E a quem vão recorrer se lhes for feita uma operação errada, houver complicações, maus resultados? A verdade é que 65% dos vales-cirurgia emitidos não foram utilizados, por estas ou outras razões. Poder-se-á falar de êxito deste programa?!
Quando a intervenção tem lugar no próprio hospital, é em geral fora de horas e a pagamento extra. As estatísticas propaladas não falam de custos, o que é de estranhar em quem se apressa constantemente a pôr um preço na saúde de cada um de nós. A verdade é que, nalguns hospitais, muitas dessas operações para esvaziar listas de espera, sobretudo em cirurgia do ambulatório sem instalações dedicadas, estão a ocupar salas de operações para cirurgia major. Por um lado tratam-se pequenos casos, por outro acumulam-se doentes graves.
Finalmente, uma outra maneira utilizada para impedir o aumento ou a manutenção das listas de espera para cirurgia é não aceitar doentes novos na consulta. Ou fechar consultas, em especial de patologias “mais caras”, tornando assim mais difícil o acesso desses doentes a quem lhes ponha uma indicação cirúrgica e os coloque numa lista de espera para cirurgia. Este aspecto prende-se com a gestão hospitalar liberalizada e entregue a quem descarta a função de cada hospital em termos da saúde nacional e faz todo o tipo de “engenharias” para que o “seu” hospital dê menos prejuízo que o do vizinho. E a saúde nacional não precisa de engenheiros, precisa é de médicos que tratem os doentes. Todos os doentes do nosso país. E os de Espanha ou de Cuba, já agora, se cá vierem para ser tratados.
Carlos Costa Almeida, pub. Tempo Medicina on-line.

10.1.08

AS ELEIÇÕES NA ORDEM DOS MÉDICOS

Num momento tão conturbado como o que vivemos nos últimos dois anos, para a medicina e para a saúde do nosso país, as eleições para os corpos directivos da Ordem dos Médicos assumem um papel quase que diríamos fulcral. Porque eles representam oficialmente a classe, e porque esta deve ser um centro motor imprescindível da saúde nacional - pese embora o esforço que está a ser desenvolvido pelos responsáveis pelo ministério para nos comprimir numa funcionarização asfixiante.
As funções da Ordem dos Médicos são antes de mais discutir e apresentar aos cidadãos e aos nossos governantes as opiniões técnicas abalizadas dos profissionais que são o pilar da saúde do país, e ao mesmo tempo fazer valer os nossos direitos e as necessidades para o desempenho da nossa profissão, zelando para que ele seja o mais correcto. A APMCH, oficialmente equidistante de todas as candidaturas e tendo no seu seio apoiantes dos dois candidatos a Bastonário, espera que os que forem eleitos possam desempenhar as suas funções da melhor maneira possível, isto é, a que mais sirva a saúde e os médicos.
Por isso temos visto com preocupação crescente evidências de desejo de ganhar a todo o custo e um empenhamento tão grande que quase toca, nalgumas ocasiões, o desvario. Sejam quem forem os vencedores, são colegas a quem iremos confiar o cumprimento das funções da nossa Ordem, e que acreditamos passada a emoção da disputa saberão geri-la, colaborando uns com os outros, e com todos nós, para esse efeito. Porque o que é fundamental para a nossa classe, e para o país e os nossos doentes, é que os médicos, em conjunto, estejam conscientes do papel que devem ter na saúde nacional e escolham assumi-lo e impô-lo, sem reservas, medos ou falsas esperanças, lutando, se necessário, contra os desvarios, isso sim, das políticas de saúde governamentais.

5.1.08

O ANO DE 2007

Não distinguimos nada de importante em 2007, continuou-se foi a assistir a um economicismo imediatista como monoideia e com sacrifício de tudo o resto. A acção deste governo na saúde equipara-se à de uma ventania que destelhou casas, arrancou árvores, derrubou muros, deixou caminhos intransitáveis. E o vento sempre a soprar, impedindo qualquer tentativa de reconstrução.
Encerramento de maternidades, centros de saúde, serviços hospitalares, de urgência, de atendimento permanente. Acesso dos doentes aos cuidados de saúde dificultado. Não aproveitamento de capacidades hospitalares já instaladas, apenas por razões miserabilistas de deve e haver local do tipo “mercearia de bairro”. Desestruturação dos hospitais, com consequente desmantelamento das carreiras médicas, comprometendo-se fatalmente a formação pós-graduada.
Poupa-se dinheiro no atendimento aos doentes e reduzem-se médicos e enfermeiros, mas atulham-se os hospitais de administradores, com as despesas administrativas a dispararem. A nova lei de gestão hospitalar, feita para “agilizar”, diziam, levou pelo contrário a um recrudescimento brutal da burocracia e à catastrófica funcionarização total dos médicos.
Portugal desceu no ranking internacional para 19º lugar na Europa, quando há pouco ocupava o 6º.
E para cúmulo, depois de tudo isto, nem na parte financeira as coisas correram bem: segundo o Tribunal de Contas, o ministério da saúde endividou-se pesadamente face à banca, com pagamento dos juros respectivos. É mesmo para esquecer. Se quisessem destruir o Serviço Nacional de Saúde dificilmente teriam feito melhor…