31.12.06

A saúde em Portugal em 2006

Na saúde o governo mostrou uma vontade obsessiva de poupar dinheiro, numa sucessão de medidas que sempre pareceram desgarradas, sem delas se antever uma nova ordem estruturada.
A actual forma de gerir as instituições de saúde públicas, empresarializadas, parece ter vindo dar uma machadada fatal nas carreiras médicas, suporte fundamental da formação médica neste país e espinha dorsal do seu serviço nacional de saúde. E o que é dramático é que dela não resultaram os benefícios financeiros esperados, ou simplesmente por má gestão dos nomeados para tal ou pelos gastos administrativos galopantes.
Como medidas boas indico aquelas que foram anunciadas pelo ministério e acabaram por não ser levadas a cabo – daí o seu carácter positivo. Medidas más houve muitas, mas a pior de todas foi o governo ter dado o dito por não dito no pagamento das horas extraordinárias dos médicos que não estão em exclusividade. Uma atitude que corresponde a falta de palavra – combina-se uma coisa que se entende justa, a seguir nega-se por razões apenas de dinheiro. Depois disto pode-se esperar tudo. Era uma questão de princípio, que acabou por ser negociada com os sindicatos. E numa sociedade quando se começam a negociar os princípios, é o princípio do fim.
ESPEREMOS QUE O NOVO ANO CORRIJA TUDO ISTO E TRAGA À SAÚDE PORTUGUESA O QUE ELA NECESSITA.

Taxas moderadoras e mais taxas de utilização

O argumento é sedutor, antigo, mas falacioso: por que razão, um milionário português paga o mesmo que o motorista da minha escola, para fazer uma operação às coronárias, ou seja, nada? Daqui até ao argumento do utilizador-pagador vai um pequeno passo. Quem usa auto-estradas deve pagá-las, supõe-se que tenha dinheiro, pelo menos para um carro. Quem entra na universidade deve pagar propinas, está a investir para subir na escala social. Parecem situações iguais, mas são diferentes.
Em primeiro lugar, o Estado tem interesse social e económico na saúde pública. Nuns casos por razões públicas: se todos tivessem de pagar as vacinas, alguns poderiam descuidar-se e a doença infecciosa poderia atingir cada um de nós. Em outros, por razões privadas agregadas: tenho satisfação individual em pagar dos meus impostos a saúde materno-infantil a todas as mães e crianças. Todos desejamos acesso igual aos serviços, no ponto de encontro do doente com o SNS, sem que o rendimento, a profissão, a classe social, a raça ou a cultura nos separem. Depois, porque existe enorme consenso social na justiça distributiva de um mínimo de partida para todos, ou até um pouco mais para os que estão pior. Finalmente porque, dado o custo crescente dos cuidados, seria catastrófico, mesmo para um remediado, pagar 20 por cento de um "bypass" das coronárias, o qual custa hoje, em Portugal, cerca de 50 mil euros.
Com base no argumento pretensamente igualitário, o primeiro-ministro, ligeiro como uma andorinha, vem propor co-pagamentos na saúde. Quando o informaram que as taxas moderadoras moderavam, não financiavam, retorquiu que não propunha aumentos nas taxas, mas sim verdadeiros co-pagamentos, proporcionais ao rendimento declarado para fins fiscais. Ou seja, defendeu várias coisas de uma só penada: (a) a mudança da Constituição, nesta matéria: em nome do princípio do utilizador-pagador, propõe mudar a natureza do SNS, de universal e tendencialmente gratuito, financiado por impostos, passando a ser também financiado pelo utilizador, quando este se encontra mais fragilizado, ou seja, praticar-se-ia a maldição da vítima, já que não se vai parar ao hospital como se vai em viagem, numa auto-estrada; (b) depois, o utilizador, mesmo da classe média ou alta, não podendo suportar o risco aleatório da doença, transferi-lo-ia para uma seguradora; teríamos em breve serviços de saúde com duas portas de diferente qualidade: uma para a classe média baixa e baixa, sem dinheiro para o seguro, outra para aqueles cujos co-pagamentos estariam cobertos por um seguro, seu ou do empregador; (c) dada a lógica irrefragável da dedução fiscal, surgiria nova injustiça, ou seja, para corrigirmos um aparente excesso da universalidade, criávamos em cascata uma desigualdade de acesso e uma nova injustiça fiscal; (d) injustiças fiscais corrigem-se no sistema fiscal, não pelo sistema de saúde, sempre mau aprendiz de feiticeiro nessas matérias.

Estas são palavras escritas e publicadas pelo Dr. Correia de Campos, em 2004, quando na oposição mas já depois de ter sido uma vez ministro da Saúde. Palavras com as quais facilmente concordamos, eivadas de bom senso e de preocupação social. Temos pena que ele tenha entretanto encontrado razões para mudar diametralmente de opinião.
A saúde é um bem público, isto é, dum povo, e no nosso país a Constituição declara o acesso a esse bem como tendencialmente gratuito, financiado portanto pelos impostos, que uns pagam mais do que outros, consoante o seu rendimento. Fazer de maneira diferente, isto é, tornar esse acesso tendencialmente pago, é o oposto do que a lei fundamental do nosso país por enquanto continua a estabelecer.
As decisões políticas são para os políticos tomarem, a sua avaliação antes de mais é para ser feita pelos eleitores. Mas há decisões políticas que têm repercussões técnicas de tal maneira importantes e graves que os técnicos não poderão, nem deverão, ficar calados, sob pena de serem julgados negligentes pela população em geral. Por isso é de esperar que os médicos, individualmente, nas suas associações ou através da sua Ordem, se pronunciem do ponto de vista das implicações técnicas da medida em causa, inscrita no orçamento de Estado para 2007.
Obrigar os doentes dos hospitais públicos a pagarem pela sua doença será, como dizia o Dr. Correia de Campos, “amaldiçoar a vítima”. E não importa o montante pago – agora menos, logo mais, ou muito mais, e sempre em período de doença - o que interessa realmente é que se vai estabelecer para esta área o princípio do utilizador-pagador, e isso é profundamente injusto na medida em que esse utilizador é o doente forçado a utilizar as instituições de saúde.
Para muitos doentes o ter de pagar pela sua saúde, em aditamento ao já pago nos impostos e face ao estabelecido na nossa Constituição, será uma razão para tentar fugir a um tratamento necessário, comprometendo assim um bem público, como o Dr. Correia de Campos também dizia, e bem. Não se poderá aceitar, num Estado social como o nosso, uma pressão económica deste género sobre os doentes, tornando-a uma preocupação extra que se lhes inflige quando deviam ser deixados tranquilos, na sua doença e no seu sofrimento, concentrados na recuperação da saúde. Neste aspecto pode até ser um factor contraproducente, como todos muito bem sabemos. E muito menos se poderá aceitar que seja transformada em argumento de pressão sobre os médicos, na sua missão de tratar os doentes, apresentando o senhor ministro a medida não como co-pagamento, mas fundamentalmente para levar os médicos a dar alta mais depressa aos doentes (sic), aliviando-os assim do pagamento de tal taxa. Taxa que seria desse modo um factor a ter em conta nos internamentos, nas cirurgias a praticar, na duração da permanência do doente no hospital, no relacionamento médico-doente, de acordo com as posses de cada um e a possibilidade maior ou menor de a pagarem.
Do ponto de vista médico é uma situação desagradável, com possíveis repercussões negativas na saúde pública, pelas razões apontadas. Porque, em nossa opinião, a medida é contra o estabelecido na nossa Constituição; por isso foi solicitada pela Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar a fiscalização da sua constitucionalidade.
Pub. Tempo Medicina 31/12/2006