20.5.08

A AVALIAÇÃO

Dias depois da tomada de posse da nova ministra da saúde, um responsável do ministério anunciava que estavam a trabalhar na criação duma grelha para avaliação dos conselhos de administração dos hospitais EPE. Nada nos poderia dar mais satisfação: é mais que tempo, e mais que necessário, que pessoas a quem foram confiados milhões e milhões de euros dos cofres do Estado possam ser correctamente avaliados pelo destino que deram a todo esse dinheiro.
De imediato alguns presidentes de conselhos de administração vieram clamar, à laia de aviso, que não era fácil serem avaliados, até porque estavam dependentes dos profissionais que tinham a trabalhar nos “seus” hospitais. E isso é verdade, essa dependência é um facto, e é positivo que pelo menos alguns deles a reconheçam, embora não se saiba que influência tal facto tem na sua actuação administradora. Mas a verdade também é que um responsável tem que assumir as suas responsabilidades, e não esconder-se atrás dos seus subordinados, imputando-lhes a culpa de um eventual fracasso (ao mesmo tempo que, se calhar, fica sozinho com os louros quando as coisas correm bem). Napoleão Bonaparte ganhou muitas batalhas à custa dos seus soldados, os quais no entanto ficaram globalmente na história apenas por serem os seus soldados. E quando foi vencido em Waterloo, mais uma vez foi ele que perdeu, não os seus soldados, apesar de historicamente se saber que essa derrota se ficou a dever em grande parte à não execução cabal e atempada dum plano de batalha confiado ao comandante de um dos seus regimentos. Mas foi ele quem foi derrotado, e destronado, e preso, e que morreu no exílio. Não o seu exército, que apenas perdeu o chefe.
E isto faz todo o sentido, porque a responsabilidade da organização dum exército, da sua estratégia e da táctica no combate, pertencem por inteiro ao comandante em chefe e ao seu estado-maior. Como lhes pertence também a responsabilidade da nomeação das chefias intermédias, a sua coordenação, o assegurar-se que os soldados aceitam essas chefias e compreendem as suas ordens e indicações. E finalmente, por último mas com certeza não em último, a de saber motivar todo o exército, entusiasmá-lo, galvanizá-lo, como Napoleão fez ao conseguir que os seus soldados quisessem até morrer por ele.
É claro que para se chegar à avaliação dos hospitais EPE não é preciso ir tão longe, e tão alto. Bastará ficarmo-nos prosaicamente pela comparação com as equipas de futebol, em que se os jogadores não gostarem do treinador, ou este os não motivar adequadamente, ou a direcção do clube não lhes pagar o indicado, pura e simplesmente correm, correm no campo mas realmente não jogam e não ganham. E a solução não é substituir a equipa.
Quando os lugares de chefia intermédia num hospital estavam dependentes duma carreira, duma sucessão de exames e concursos, de provas dadas, os conselhos de administração podiam queixar-se de que todos aqueles júris eram constituídos por incapazes e que eles, que detinham a capacidade de saber “achar” quem eram os melhores, infelizmente não o podiam fazer e tinham de conviver sofredoramente e trabalhar com os que chegavam ao topo da carreira. Mas essa possibilidade de assacarem culpas aos concursos desapareceu-lhes, uma vez que as nomeações para os vários lugares de chefia e de responsabilidade intermédia estão-lhes agora totalmente nas mãos.
Mas é verdade que não é fácil avaliar o trabalho dum conselho de administração dum hospital. É que não se pode olhar simplesmente para a frieza de números expostos em quadros de contabilidade mais ou menos criativa, como não é bastante saber quantas “cirurgias” foram feitas ou quantos doentes foram ao hospital ver o médico. O equilíbrio ou desequilíbrio financeiro dum hospital estatal é tão somente uma parte dos problemas duma instituição que tem como objectivos a saúde duma população, o seguimento e acompanhamento de muitos dos que estiveram doentes, a formação pós-graduada de profissionais, o ensino de alunos, a investigação para se conseguirem melhores – mais eficazes, mais eficientes e mais baratos - métodos de diagnóstico e de tratamento. Tudo isto está relacionado, para além de condições materiais, com uma enorme equipa de profissionais cujo trabalho competente, coordenado e entusiástico é que pode fazer render o dinheiro aplicado.
Construir hospitais e equipá-los é fácil, basta ter dinheiro. O difícil e moroso é construir equipas, de médicos e outros profissionais, competentes e eficientes, que desempenhem a função que ao hospital cabe e justifiquem a sua existência e os seus custos, contribuindo ao mesmo tempo para a formação de outros e para uma melhoria nos cuidados de saúde prestados à população. Ora o que se tem vindo a passar nalguns hospitais-empresa é que, em vez de manterem os bons profissionais, os mais experientes e sabedores, estimulando-os a fazer mais e melhor trabalho, parece antes fazerem um esforço (voluntário ou por inépcia) para os afastar, para os empurrar para fora do hospital, para a actividade privada, seja por reforma antecipada ou licença sem vencimento, seja simplesmente por desmotivação e desinteresse em relação a uma administração hospitalar que se mostra incapaz. Quando médicos muito diferenciados, líderes de opinião, que durante várias dezenas de anos trabalharam com afinco na instituição e contribuíram para a sua qualidade clínica, se vão embora dela muito antes do tempo, algo está mal. E será de inquirir o conselho de administração sobre o que se passou, e saber o quanto é ele próprio responsável por essas saídas - eis um factor de avaliação da sua actividade.
Enquanto do ponto de vista económico-financeiro o ministério da saúde mantém algum controlo, no resto os conselhos de administração dos hospitais EPE são totalmente autónomos, não prestam contas a ninguém, e daí a sua absoluta responsabilidade.
Em termos de recursos humanos tem-se assistido nalguns a uma desierarquização catastrófica, com promoção de minhocas a jibóias, aparentemente esperando-se que essa simples promoção trouxesse as qualidades e a capacidade que os promovidos não têm, nem nunca tiveram e nunca hão-de ter. É claro que os contemplados nessa campanha promocional, guindados a cargos e funções que nem nos seus mais desvairados sonhos esperaram algum dia possuir, tudo farão para os conservar, sobretudo nunca contrariando quem os nomeou. E parece ter sido esse o objectivo. Com a perversão acrescentada de serem os menos qualificados a avaliar e classificar os mais qualificados. Se as coisas correm mal, se a qualidade do serviço desaparece, se a formação é posta em causa, se começa a haver problemas com os doentes, então a responsabilidade é do conselho de administração e é com certeza um factor de avaliação a ter em conta. Sobretudo se os próprios doentes e os médicos em formação se começarem a queixar oficialmente, e a idoneidade formativa for posta em causa.
Outro aspecto a avaliar é a organização imposta ao hospital, já que a reorganização ou desorganização estabelecidas são totalmente da responsabilidade do conselho de administração, como as Administrações Regionais de Saúde e o próprio Ministério da Saúde afirmam quando questionados sobre uma ou outra situação particular e mais gritante. A actual lei de gestão hospitalar permite-o, mas há que pedir responsabilidades a quem as tem. Estruturas hospitalares modificadas e pouco operacionais, resmas de administradores pululando nos corredores do hospital, procurando ganhar dinheiro com uma instituição que existe para tratar doentes - que é o que os médicos e os outros profissionais de saúde fazem - , tudo deve ser considerado. Qual o aumento em gastos administrativos, incluindo ordenados de administradores?
Quando se avalia a gestão dum hospital há que saber também o que conseguiu fazer com o que o hospital possuía, nomeadamente em capital humano e em tecnologia e “know-how”. Há hospitais do Estado geridos como empresas em que tudo isso tem sido malbaratado, eu diria mesmo desbaratado, sobretudo em médicos bem preparados e competentes. Ter capacidade de tratar doentes dalgumas patologias, até frequentes e cada vez mais frequentes, e simplesmente afastá-los, desperdiçando a capacidade instalada ao longo de dezenas de anos, apenas com o intuito pequenino de poupar dinheiro e transferir essa despesa para o vizinho, é com certeza também um factor de avaliação. Procurar resolver os problemas financeiros locais dum hospital estatal sem querer saber da saúde regional ou nacional não é por certo positivo, e deve contar num “score” de capacidade de gestão hospitalar.
Em suma e para concluir, é fundamental avaliar a actividade dos conselhos de administração dos hospitais EPE, e rapidamente. Essa avaliação não é fácil, porque é complexa e deve ser feita sob múltiplos aspectos, para além do económico-financeiro. Há hospitais com as contas eventualmente certas – outros nem isso - e destruídos por dentro, e o Ministério da Saúde, que empatou lá o dinheiro que é de todos nós, não sabe. É altura de querer saber. Há aspectos muito mais importantes que o económico-financeiro, porque as consequências dos erros aí cometidos levarão muito mais tempo a ser corrigidas e terão muito maior impacto negativo no país, para além de no próprio hospital. Mesmo no campo financeiro, porque ao fim e ao cabo gastou-se dinheiro para se cometerem os erros.
Mas entenda-se é que a dificuldade de avaliar a actividade dos responsáveis não reside nos profissionais que trabalham no hospital. Esses pelo contrário deveriam ser ouvidos: para saber o que pensam e que futuro antevêem para a instituição, e se estão contentes e a trabalhar a par com o seu conselho de administração, ou pelo contrário apenas esperando, senão desejando, e pedindo a Deus, que ele seja substituído. Este deveria ser outro factor na grelha de avaliação.
Carlos Costa Almeida, in Tempo Medicina 12/5/2008

As Urgências e a queda de uma comissão

A substituição de um sistema com provas dadas durante trinta anos, e longe de se ter esgotado, por um outro que não se percebeu ainda qual é, só poderia dar origem a confusão, e a desorganização, o que leva inevitavelmente à descrença e à angústia. E estas não são boas conselheiras, especialmente numa área tão importante para todos e cada um como é a saúde.
A reorganização das urgências não fugiu a este quadro. A famosa “incompreensão” geral do que foi planeado nesse campo traduziu acima de tudo um desacordo, também pelo proposto mas sobretudo pelo modo como o ministério o executou. “Não se percebe” como se fecham urgências antes de se criarem as que as iriam substituir. Mas compreendeu-se que se queria era fechar. Com certeza para poupar dinheiro, isso entendeu-se, diminuindo os meios técnicos e humanos, concentrando-os, mas também dificultando o acesso dos doentes aos centros de urgência restantes. Pensou-se muito nas grandes e aparatosas emergências, deixaram-se esquecidas as “dores de barriga” – que podem ser tudo, só depois se vê.
Foi um trabalho longo, creio que com aplicação, mas com poucos resultados. Para lá de um evidente: ter contribuído objectivamente para a queda dum ministro que já ninguém desejava. O trabalho da Comissão esgotou-se, estava na hora de terminar.
Carlos Costa Almeida, in Semana Médica, 15-21 Maio 2008