GUIDELINES E CONSENSOS
Carlos
Costa Almeida
Guidelines, linhas de orientação, orientações, directrizes, são
sinónimos que significam indicações compiladas por alguém no sentido de tornar
a execução dum procedimento mais fácil, por mais automática e sem exigir tanto
esforço de decisão, e mais igual sejam quais forem os intervenientes, seguindo
todos essas mesmas indicações, admitindo-se também que assim se possa obter maior
qualidade. Em medicina, orientações clínicas são guidelines estabelecidas em geral para alguns aspectos de
diagnóstico, terapêutica ou follow-up
específicos nalgumas patologias, habitualmente por serem mais complexos, ou
saídos duma discussão recente ou estarem ainda sujeitos a alguma.
Desde sempre houve guidelines em medicina, a forma de se
chegar a elas é que mudou. Durante milhares de anos assentaram na tradição, ou
em argumentos da autoridade e da experiência de médicos de renome, que as
redigiam, e impunham (magíster dixit),
e eram entendidas a partir daí quase como uma bíblia pelos seus vindouros, até
que surgiam outras, doutras proveniências, sobre os mesmos temas, que as
alteravam ou até totalmente contrariavam. Mas hoje vivemos na época da medicina
baseada na evidência, e embora esta não seja a melhor tradução de “evidence-based
medicine” todos a entendemos correctamente. Já não bastam opiniões pessoais,
mesmo que vindas de profissionais muito experientes e sabedores, há que fazer
estudos e avaliar resultados do ponto de vista estatístico para lhes encontrar
o significado que permita tirar conclusões científicas.
O conhecimento médico procura ser
hoje o mais científico possível, embora sem descartar, naturalmente, a arte que
a prática médica também implica. Para além da investigação científica, de base
experimental e laboratorial, recorre-se actualmente a conhecimento científico
baseado em avaliações estatísticas de grandes grupos de doentes, ou a revisão
de múltiplos trabalhos científicos sobre o mesmo tema realizados de forma
considerada adequada, e é a partir desse
conhecimento científico que nalgumas situações são elaboradas guidelines.
Quem as elabora? Qualquer um o pode
fazer, recorrendo aos mesmos conhecimentos disponíveis para todos, mas em geral
são grupos de profissionais, de sociedades científicas, capítulos de sociedades
mais ligados ao tema em debate, associações de médicos. Admitindo que
actualmente as guidelines procuram
sempre uma base científica, o valor intrínseco de cada uma está, no entanto,
muito dependente da sua origem, de quem as elaborou, por um lado, e, por outro,
da forma como se chegou a ela, e a nenhuma se pode atribuir um valor absoluto e
indiscutível. Aliás, uma orientação é isso mesmo, serve para orientar, e não
implica uma obrigatoriedade estrita no seu cumprimento. É uma ajuda, todos
devemos ter conhecimento das que dizem respeito à nossa actividade, mas não são
um protocolo que se tenha de seguir sempre rigorosamente. Em primeiro lugar,
porque podem variar segundo a sua autoria, daí a importância de se saber a sua
origem e a preocupação cada vez maior de instituições médicas de relevo
quererem ter as suas, bem como de organizações governamentais nos vários
países, que as elaboram, através de reconhecidos peritos convidados para o
efeito, para terem presumivelmente uma maior garantia de qualidade. Exemplo
disso, e louvável, é a nossa Direcção Geral de Saúde e as várias orientações
clínicas que vai produzindo. Depois, para além de variarem segundo os
conhecimentos, a experiência e a capacidade de quem as faz, podem variar com o
tempo, são sempre datadas, é preciso serem substituídas de vez em quando. E um
problema, por exemplo, é saber quando já deviam ter sido substituídas e ainda o
não foram.
Há, frequentemente, a tendência
para pensar que o que é científico, ou foi obtido por métodos científicos, é
certo e está para além de qualquer dúvida ou discussão. E esta é uma ideia
errada e que pode ser perigosa. Porque o que caracteriza, na realidade, a
ciência é a sua incerteza! A ciência está em constante evolução, progride
continuamente pela investigação, na procura da verdade. Mas o que hoje parece
verdade amanhã pode não ser, e ser até errado. É nesta incerteza na procura que
reside o valor e o interesse da ciência, como algo que nunca está esgotado.
Algo que, por exemplo, não se pode resumir a uma simples orientação... Não que
elas não devam existir, devem com certeza, para simplificar, lembrar,
estandardizar, tornar mais eficiente o conhecimento que cada um tem do assunto
em questão, mas sem que se pretenda que substituam esse conhecimento! Não se
podem diagnosticar, tratar, seguir, doentes apenas por guidelines, sem estar dentro da respectiva patologia; mas é
importante conhecê-las e aplicá-las, percebendo eventualmente quando há que
fazer algo diferente, de acordo com o que se sabe do assunto e do doente em causa.
É frequente dizer-se com propriedade que
muita coisa boa se pode fazer conscientemente fora das guidelines – mas desde que se conheçam, acrescento eu...
Nalguns problemas médicos sem
consenso no que respeita à etiologia, etiopatogenia, diagnóstico, terapêutica ou
follow-up, com dúvidas e discussão em
curso, recorre-se por vezes a reuniões chamadas de consenso. Juntam-se peritos
da área em apreço que, em conjunto, baseados no conhecimento científico de que
se dispõe no momento, se manifestam sobre o assunto. Esses consensos correspondem,
pois, a opiniões assentes em dados científicos e procuram traduzir o estado da
arte na matéria em questão, podendo levar mais tarde à criação de guidelines. Como em qualquer consenso,
não é forçoso que os membros do grupo constituído estejam todos de acordo, e
não se atinge por votação em que os que são a favor sejam em maior número que
os que votam contra: é necessário é que haja uma maioria a favor e os outros
não sejam contra.
Tratando de problemas relacionados
com a investigação científica, e dada a incerteza que caracteriza a ciência,
ainda mais em questões que, por definição da necessidade de consenso, não estão
bem estabelecidas, também há necessidade da revisão periódica destes consensos,
embora talvez menos vezes que das orientações clínicas. E também o seu peso
científico está relacionado com o peso individual de quem integrou o grupo de
consenso, e a forma como foi atingido, podendo até haver conclusões diferentes
de grupos diferentes, na mesma altura e sobre a mesma matéria.
Consensos médicos são, pois,
afirmações científicas sobre determinados assuntos feitas por conjuntos de
peritos que se pretendem representativos da comunidade científica, e que se crê
traduzirem o que a evidence-based
medicine nos diz no momento em que elas são feitas, nomeadamente envolvendo
investigações específicas a decorrer. Correspondem a imagens da realidade
médica, necessariamente datadas mas que terão sempre, naquela data, de ser
tomadas em conta na prática médica.
Finalmente, de notar, porque não
infrequente, o facto de um consenso científico que se formou sobre um determinado
assunto poder ser extrapolado para fora da ciência e usado como argumento ou
força de pressão numa discussão doutro cariz, ou para basear uma qualquer teoria
doutro tipo, noutro contexto, por exemplo social, económico ou político, inclusivamente
esquecendo-se o seu carácter necessariamente incerto e sujeito a mudanças. E do
mesmo modo ao contrário, isto é, a falta ainda de consenso científico pretender
ser tomada como a sua ausência definitiva e irrevogável.
Guidelines e consensos constituem, assim, parte integrante da
medicina baseada na evidência, e têm de ser compreendidos, valorizados e utilizados
como aquilo que são.
In Número 12 da Newsletter do Serviço de Cirurgia C, Hospital Geral (Covões) - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
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