29.2.16

KANT, O MEU AMIGO E A SUBESPECIALIZAÇÃO

Carlos M. Costa Almeida*

No final do curso dos liceus, no exame do sétimo ano, um dos meus colegas de turma teve a sorte de, em vez de reprovar, ir à oral a Filosofia. Perante o adiamento de um desastre provável, resolveu ir falar com o professor que lhe iria fazer o exame oral. Porque calhou, por mero acaso, ter sido destacado para isso o nosso próprio professor, homem muitíssimo sabedor e competente mas também exigente, o que, naturalmente, não ajudava o preocupado estudante. Não se pense, por isso, que lhe tivesse passado pela cabeça pedir menos rigor na sua avaliação: tal seria inútil, senão mesmo contraproducente, tratando-se de quem se tratava. Não, o meu amigo, pouco aplicado na disciplina mas nada estúpido, foi-lhe pedir algo, sim, mas de outro género.  
O nosso professor era, como disse, muito bem preparado em filosofia, a qual ensinava muito bem, e um profundo conhecedor dum filósofo em particular, Emmanuel Kant, o que ele a cada passo afirmava, citando-o amiúde nas suas aulas e nas conversas informais connosco. Filósofo alemão do final do século XVIII, o pensamento de Kant, complexo, abrangendo profundamente vários aspectos da mente e do comportamento humanos, teve influência decisiva em muitos filósofos alemães que se lhe seguiram, pode-se dizer que marcou profundamente o pensamento filosófico do século XX e continua a estar presente em muitas das actuais correntes. Pois a proposta foi: “Eu sei que o sôtor  é um entusiasta do Kant, eu também sou, sabe? Quero propor-lhe que o meu exame seja só, exclusivamente, sobre o Kant. Uma conversa de nós os dois sobre ele!”. Apanhado de surpresa, o professor respondeu: “Rapaz, o Kant é realmente muito interessante, mas olha que assim ficas sem defesa, se não souberes o suficiente e eu não te perguntar sobre mais nada tenho de te reprovar, entendes isso?!”.  “Com certeza, eu corro o risco, sobre o Kant, só.”
Quando nos comunicou esse trato para o exame (que demoraria ainda umas semanas a acontecer), tentámos demovê-lo, temendo o resultado pelo nosso amigo: “Eh pá, olha que o Kant é difícil, o capítulo é grande, e assim vais ter de o estudar de trás prá frente e da frente pra trás!”. Retorquiu tranquilamente: “Pois, mas sempre é mais fácil do que estudar o livro todo!...”
Fez exame e passou, com uma nota razoável.
Sabia filosofia? Não. Sabia alguma coisa sobre Kant? Sabia. Conseguia perceber a influência de Kant nos outros filósofos? Provavelmente não. Conseguia perceber o que os outros filósofos tinham ido buscar a Kant? Não. Entendia como os filósofos da sua época podiam evoluir sob a influência de Kant? Seguramente não.
O nosso professor era um perito em Kant? Era. Sabia filosofia? Sabia. Podia ensinar o pensamento de Kant? Sim. Podia ser professor de filosofia? Podia. Se só soubesse Kant podia ser professor de filosofia? Não.
Este é um episódio, absolutamente verídico, que me tem vindo à cabeça com alguma frequência, mais vezes agora. Quando vejo colegas que se prepararam muito numa determinada área, limitada, da sua especialidade e quase nada, ou muito pouco, no resto, renegando-o mesmo. São subespecialistas. Quer dizer, nem chegam a ser especialistas, ficaram-se por um dos capítulos do livro. De modo que têm uma utilização limitada, muito específica. E um conhecimento por um funil. O que é o contrário de um especialista, bem preparado na sua especialidade, que se interessa depois mais por uma determinada área, onde até mostrou mais capacidade, e a desenvolve, perfeitamente enquadrado no conjunto, sendo uma mais-valia global para o Serviço consoante este necessitar. Chamo a isto “superespecialização”, é o contrário de “subespecialização” e é, obviamente, o desejável que aconteça.
Para que não haja especialistas de uma dada especialidade presentes no hospital e doentes urgentes dessa especialidade não sejam tratados por falta de um subespecialista; ou por haver subespecialistas doutras áreas que não da necessária. Quantos subespecialistas de cada naipe são precisos num Serviço duma especialidade?  Quantos pode cada hospital pagar?
E, a este propósito, vem-me também à ideia que se um dia necessitar de ser operado gostaria de sê-lo pelo melhor cirurgião do mundo. Mas, como é pouco provável que ele possa operar todos os doentes do mundo, se calhar terei de ser operado por outro. E note-se que não digo “por outro que seja bom”: porque todos os cirurgiões têm de ser pelo menos bons. Podem ser mais do que isso, menos é que não.



* Director de Serviço de Cirurgia do CHUC-Hospital Geral (Covões), Professor da Faculdade de Medicina de Coimbra, Presidente da Associação Portuguesa de Médicos da Carreira Hospitalar

In Revista da Ordem dos Médicos (ROM), Fevereiro 2016