Consentimento informado, livre e esclarecido.
O que significa? O que se pretende com ele, como se deve obter?
Pode-se dizer
que foi Hipócrates quem tornou a medicina numa profissão como hoje a
entendemos, e que a Escola Hipocrática de Medicina criou as regras da relação
médico--doente que perduraram durante 23 séculos, e que só muito recentemente
sofreram alguma modificação. Na sua sequência, a prática médica baseia-se nos
princípios da beneficência e da não-maleficência, e, nesse sentido, logo no
Juramento de Hipócrates se afirma que o médico deve tratar os doentes e se deve
abster de lhes fazer mal, afirmando o mesmo autor, noutra obra, que a função
principal do médico para com o doente “é fazer-lhe bem e não lhe fazer mal”.
Será curioso notar que a expressão em latim primum
non nocere (em primeiro lugar não causar dano), que traduz exactamente
isso, dando primazia ao não fazer mal, não foi usada por aquele médico grego
mas sim criada muito tempo depois, alegadamente por Thomas Sydenham, no século
XVII, quando o latim era a língua intelectual, acabando por ficar registada
como uma parte fulcral do que se pretende transmitir com aquele Juramento. Com
um significado muito amplo em medicina e em cirurgia, aquela frase constitui em
si mesma um axioma absolutamente central em farmacologia clínica, relembrando
todas as interacções e efeitos secundários dos medicamentos, embora cada vez
mais se possam encontrar situações clínicas em que a sua acuidade pode ser
discutível.
Na época de
Hipócrates, e durante séculos a seguir, a relação médico-doente assentava num
verdadeiro paternalismo médico, devendo este comportar-se para com o doente
como um pai para um filho. Tudo o que fizesse era para bem dele, mesmo que
eventualmente não parecesse. Nesta óptica, o médico tinha o dever de proteger
esse filho, fazendo-lhe o bem e poupando-o ao mal, prescrevendo o tratamento
adequado, e responsabilizando-se por isso. Quanto ao doente, restava-lhe o
papel de fazer o que lhe era dito por quem sabia e queria o seu bem – tal como
os filhos em relação aos pais. A preocupação e a responsabilidade pelo que
acontecesse ao doente eram apenas e totalmente do médico. Em textos atribuídos
a Hipócrates, recomendava-se mesmo que o médico escondesse tudo o que pudesse
do doente, para não o preocupar e para lhe dar descanso de espírito, desviando
a sua atenção daquilo que lhe estava a fazer e das complicações possíveis,
omitindo até o diagnóstico que lhe reservava.
Embora haja quem afirme que o
exercício da medicina não terá sido tão autoritário como algumas passagens
hipocráticas fazem crer (a não ser, porventura, na Idade Média, quando a
prática clínica esteve confiada aos monges, habituados a uma organização severa
e ao dogma nas próprias relações humanas), o facto é que ninguém contesta que
só muito recentemente se estabeleceu a necessidade de obter um consentimento
informado e prévio, como forma de respeito por um verdadeiro e próprio direito
do paciente a saber e consentir. Numa perspectiva actual, os valores pessoais
do doente, enquanto sujeito inserido numa determinada cultura que lhe é
própria, merecem a devida atenção, em respeito pelo seu direito à
autodeterminação. E esse respeito veio alterar a sua postura no seio da relação
clínica, passando de uma completa dependência para uma participação activa. O
respeito pela dignidade da pessoa humana significa, acima de tudo, a promoção
da sua capacidade para pensar, decidir e agir, o que implica e pressupõe um
conhecimento esclarecido do diagnóstico, dos riscos e passos do tratamento ou
intervenção (sem prejuízo do privilégio terapêutico, que adiante se refere),
assim como eventuais alternativas terapêuticas. Em última instância, a decisão
sempre é do paciente, que exprimirá a sua vontade, aceitando ou não a estratégia
terapêutica proposta, até ao momento da sua execução.
A doutrina do
consentimento informado, livre e esclarecido é relativamente nova na medicina.
Atribui-se-lhe o início nos Estados Unidos da América, em 1928, quando um
Tribunal deliberou: “...todos os seres humanos maiores de idade e com saúde
mental (competentes) têm o direito a determinar o que deverá ser feito com o
próprio corpo; e um cirurgião que realize uma operação sem o consentimento do
paciente comete uma violação, estando por isso sujeito à exigência de
responsabilidade”. No rescaldo de experimentações humanas degradantes e
criminosas realizadas durante a Segunda Guerra Mundial, surgem o Código de
Nuremberga, em 1947, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948,
onde se refere a necessidade de consentimento voluntário após informação
correcta que permita decidir. A Declaração de Helsínquia, sobre investigação
com humanos, redigida pela Associação Médica Mundial em 1964, fala de
consentimento informado, e, de acordo com a Declaração de Lisboa, pela mesma
Associação, em 1981, “o paciente tem o direito de consentir ou recusar
tratamento na base de esclarecimento adequado.” A importância de uma
participação activa do paciente na relação clínica, no âmbito da necessidade da
sua livre vontade para qualquer intervenção médica, foi registada na
Recomendação proposta pelo Grupo de Trabalho da Região Europeia da Organização
Mundial de Saúde (O.M.S.), em 1985. E também na Convenção de Bioética do
Conselho da Europa (1996) se afirmou claramente que “uma intervenção no campo
da saúde só deverá ser efectuada após a pessoa o permitir, dando para tal o seu
consentimento livre e informado.” Do ponto de vista judicial, o Código Penal
português prevê o crime de intervenções e
tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, ou seja, sem o consentimento
informado e esclarecido do paciente, fundando-se este no direito à integridade
física e moral do indivíduo.
O consentimento insere-se na
moderna relação médico-doente, em que o segundo deixa de seguir cegamente o
primeiro, antes passa a ter o direito de partilhar das suas decisões no que lhe
dizem respeito. Poder-se-ia considerar que isso vem aliviar a pressão sobre o
médico, ao não decidir só por si, mas a verdade é que a responsabilidade
técnica continua a ser sua: o doente apenas consente. Pode exercer uma
preferência, mas sobre o que lhe é sugerido pelo médico, este de acordo com o
que sabe, a sua experiência e o que a evidência médica do momento mostra que é
bom. Pretende-se que o paciente, para poder escolher, seja perfeitamente
esclarecido sobre o assunto em questão, mas não se espera com certeza que um
leigo na matéria possa decidir tecnicamente, ou contribuir para essa decisão,
por mais que se lhe explique! A escolha, ou aceitação, pelo paciente do que lhe
é proposto será sempre com base em parâmetros próprios, de carácter social, ou
psicológico, ou emocionais, mesmo que a informação que lhe foi prestada o tenha
deixado, na sua opinião, secundada pela do médico, esclarecido. É isso o
consentimento informado e esclarecido. A orientação técnica e as suas
consequências continuam a ser responsabilidade do médico.
Há um número significativo de
pacientes que renunciam à informação,
pelo menos muito detalhada, sobre a sua doença e respectivo tratamento, e consentem
nele entregando-se nas mãos profissionais do “seu” médico, dentro da lógica do
velho “paternalismo”. O médico deve respeitar essa preferência do doente, não o
atormentando com pormenores indesejados – razão por que era assim feito na
velha medicina hipocrática. Quanto aos outros, os que querem participar na
escolha, devem ser informados da melhor maneira possível de modo a poderem
ficar esclarecidos das suas dúvidas. E assim poderem consentir, sem se sentirem
coagidos ou direccionados: isto é, livremente. Destes, naqueles em que o
conhecimento da verdade nua e crua sobre a sua patologia e o seu futuro
enquanto doentes os possa afectar seriamente na sua evolução clínica, de modo
justificadamente expectável, aceita-se serem também poupados a um
esclarecimento cabal. É o chamado privilégio
terapêutico. Para além desta situação, outras razões podem permitir o não
esclarecimento: os casos de tratamentos
de rotina, em que não se vislumbra risco ou dificuldade que force a uma
informação detalhada ao doente para que este possa decidir, e os estádios terminais, na medida em que habitualmente
determinam o que alguns apelidam de perda
de autonomia, justificando formas mais suaves de esclarecimento, ou mesmo a
sua omissão.
Duma maneira geral é, pois, fundamental
que o doente consinta, ou escolha, depois de esclarecido. Mas a mesma
informação pode não ser eficaz em todos os doentes, quer dizer, alguns podem
não ficar esclarecidos apesar dela. Há, pois, que procurar a informação, e o
modo de a transmitir, mais adequados ao esclarecimento de cada um. Chama-se a
isso informação eficaz. Que tem
forçosamente de passar por um diálogo entre o médico e o doente, através do
qual se perceba no final que este ficou esclarecido. Por mais documentos
escritos que sejam entregues ao paciente, e que ele assine, poderá sempre mais
tarde argumentar que não lhe foram adequadamente explicados, ou que os percebeu
mal. É da comunicação, do colóquio singular, entre o médico e o doente que sai
mais eficazmente a informação necessária, que o médico pode adaptar ao doente
que tem na sua frente, em contacto consigo, usando inclusivamente, para isso, a
empatia profissional que deverá estabelecer com ele.
Que médico deve obter o
consentimento informado, esclarecido e livre do doente? O que lhe possa
explicar com detalhe o que lhe vai ser feito, e como, as alternativas, as
dificuldades a vencer, as complicações possíveis, o que fazer para as evitar e
resolver, que resultados esperar. Sem hesitações, com conhecimento de causa,
sem dúvidas, de modo a poder tirar todas as que o doente apresente.
E isso legalmente é quanto
basta. O facto de o consentimento ter sido obtido por escrito não significa
forçosamente que o doente tenha sido adequadamente informado e esclarecido, ou
que tenha consentido livremente e não tenha sido induzido a tal. Por isso a
nossa Lei não exige um consentimento escrito, e a Entidade Reguladora da Saúde
também não, apenas fala em “preferencialmente escrito”. Já a Direcção Geral de
Saúde, através da Norma respectiva, impõe um documento escrito. É uma regra
administrativa a cumprir nos hospitais, naturalmente, mas que não deve de
maneira nenhuma implicar um aligeirar no esforço para que o consentimento do paciente
seja colhido por quem o deva colher, isto é, tenha as condições necessárias
para o informar eficazmente, e por isso
tal consentimento seja dado de modo informado e esclarecido e se possa dizer
livre, tal como atrás ficou dito. Porque, se não tiver sido assim, a simples
existência dum papel assinado não terá qualquer peso legal e ético em termos de
responsabilidade médica. Antes demonstrará, em si mesma, uma falha do médico na
obtenção do consentimento por parte do doente para a intervenção ou tratamento
em causa.
Carlos Costa AlmeidaIn Newsletter do Serviço de Cirurgia C, Número 18, Março 2018, Hospital Geral (Covões), CHUC