REFLEXÕES DE UM CIRURGIÃO PASSADOS
MAIS DE 30 ANOS
Parte II
Parte II
Carlos Costa Almeida
Sempre quis ser cirurgião, e realizei esse desejo. A
cirurgia geral que aprendi e tenho praticado tem sofrido, ao longo destes anos,
progressos e outras alterações que talvez o não sejam, e por isso merecem
com certeza a reflexão de nós todos, cirurgiões gerais.
A maior alteração foi, sem dúvida, a introdução da via
endoscópica, seja laparoscópica, toracoscópica, retroperitoneoscópica ou outra,
e a sua relação de dependência com toda a tecnologia a ela ligada. As
intervenções cirúrgicas realizadas por essa via são exactamente as mesmas que
as anteriormente executadas por via aberta, permitindo, no entanto, reduzir
muito o grau do traumatismo cirúrgico, conseguindo-se uma alta muito mais
precoce e um menor número de complicações, ao mesmo tempo que, nalguns casos,
se tem uma visão significativamente mais precisa do campo operatório.
Trabalhando num espaço fechado criado pela insuflação de gás, ou ajudados pela
visão de perto fornecida pela câmara de videoscopia, vemos o que doutro modo
não seria possível. E, utilizando instrumentos cirúrgicos cada vez mais
elaborados, realizamos por uma abordagem mínima intervenções que, às vezes,
através duma incisão extensa seriam muito mais difíceis e trabalhosas.
Há intervenções na cirurgia geral que são notavelmente mais
fáceis pela via laparoscópica (como, por exemplo, a colecistectomia, a
fundoplicatura gástrica, a apendicectomia), ou retroperitoneoscópica (como a
ressecção suprarrenal), outras executadas com a mesma facilidade e outras ainda
um pouco mais custosas mas lucrando o doente com o acesso mínimo. Nessas
condições, é evidente que é a abordagem endoscópica que deve ser preferida,
sempre que não houver contraindicações gerais ou locais que a devam afastar.
Pelo menor traumatismo e maior simplicidade de execução, depois
de adquirido o know-how, a
videoscopia veio mesmo permitir reabilitar algumas intervenções a caminho de
serem pouco praticadas ou até abandonadas. É o caso da laqueação de perfurantes
venosas insuficientes nas pernas, em doentes com insuficiência venosa crónica
dos membros inferiores, tratamento com indicações indiscutíveis mas, pela
dificuldade na localização exacta dessas veias, a ser substituído pela sua
ablação transcutânea ecoguiada (por radiofrequência ou escleroterapia), também
ela nada fácil, diga-se em abono da verdade, e que a abordagem cirúrgica
endoscópica subapnevrótica torna muito fácil para o cirurgião, para além de
estar naturalmente integrada na mesma intervenção que lhe vai permitir tratar
as outras veias varicosas. E a simpaticectomia toracocervical, e a lombar. Esta
continua a ser uma última hipótese em doentes com lesões ateroscleróticas
isquémicas não revascularizáveis dos membros inferiores, com possibilidade de
60% de induzir melhoria clínica significativa sem ser, no entanto, possível
prever o resultado em cada caso; por via endoscópica não é traumática, não é
dolorosa, praticamente não tem complicações, permite a alta poucas horas
depois, pode ser realizada em ambulatório e, feita no internamento do doente
isquémico, não prolonga esse internamento. Passou, por isso, a valer a pena nos
casos em que está indicada.
Curiosamente, a abordagem endoscópica levou por vezes a
alterar os passos nas intervenções, por maior facilidade, e isso veio
demonstrar que algumas regras classicamente mantidas para a sua realização
afinal não deviam existir porque não se justificavam. Duas conclusões a
extrair: é possível praticar a mesma boa cirurgião de modos diversos, que devem
ser escolhidos de acordo com a regra da maior facilidade de execução em cada
caso, e essa escolha é possível para os que detêm a experiência e os recursos
técnicos cirúrgicos necessários.
É, portanto, uma via de acesso que devemos ter disponível e
que deve ser utilizada quando indicada. Quando da sua divulgação entre nós, no
início dos anos 90, apenas alguns centros tinham essa tecnologia, e só alguns
cirurgiões a podiam, portanto, utilizar. Eram cirurgiões experientes, mas
formados na abordagem aberta, pelo que tiveram de adquirir a postura técnica
para vídeoscopia. Muitos conseguiram-no (pela prática e através de cursos de
aprendizagem, primeiro mais básicos, depois mais elaborados, obtidos no
estrangeiro ou dentro de portas, e que se foram disseminando pelo país), alguns
não, tendo sido isso, até, causa declarada ou inconsciente de algumas reformas
antecipadas. Hoje em dia é prática corrente, em muitas situações muito mais
frequente que a via aberta, e o seu ensino já pode ser feito como
anteriormente, pelo trabalho normal: ajudando, fazendo ajudado, fazendo, depois
ensinando. O problema da aprendizagem põe-se hoje na cirurgia aberta, já que
ela é muito menos vezes praticada e, portanto, as possibilidades de a aprender
dessa forma se reduziram.
A evolução da tecnologia também veio permitir criar um
conjunto de possibilidades de ensino da cirurgia, para além do seu exercício e
da velha cirurgia experimental em animais. Há modelos para treino em cirurgia
vídeoassistida e em suturas mecânicas, e há todo um conjunto de meios
audiovisuais que nos podem fazem aprender a operar duma forma semelhante à dos
pilotos de avião a pilotar antes de chegarem ao avião real. É claro que
actualmente é muito mais fácil aprender cirurgia que há umas décadas atrás, com
a variedade ampla de meios de aprendizagem de que dispomos. Sendo certo que a
execução nos doentes tem de fazer parte integrante também dessa aprendizagem,
esta não está tão dependente dela como estava antigamente. O conhecimento da
anatomia, ter noção do conjunto da intervenção a praticar e de cada passo dela
de per si, saber o que se pretende conseguir, as complicações a evitar, o que
fazer para as corrigir, tudo isso se deve aprender antes de operar um doente.
Mas sendo tudo isso muito importante, fundamental e inultrapassável é a
clínica, são as indicações, a escolha e o momento da intervenção, o seguimento
do seu resultado. Devemos continuar sempre a lembrar, e cada vez mais com a
explosão da tecnologia que nos avassala, o aforismo que diz: “Bom cirurgião é o
que sabe operar; melhor o que sabe quando operar; e melhor ainda o que sabe quando
não operar”.
A tecnologia em vídeo aproveitada na vídeocirurgia teve
múltiplas outras aplicações. Vivemos na época dos videojogos, cada vez mais
realistas e sofisticados, e os nosso jovens cirurgiões pertencem à sua geração.
Ao longo da sua juventude adquiriram com entusiasmo e persistência as
habilidades e a visão ligadas à videoscopia, que, naturalmente, aplicam a esse
tipo de abordagem cirúrgica. É mais um exemplo de aplicação translacional de
habilidades e capacidades. O seu exercício pode ser excitante, e nalguns
cirurgiões poderá levar à postura de querer fazer o maior número de pontos numa
operação endoscópica... mesmo que o doente perca o jogo. Há que saber quando
desistir, parar e converter para cirurgia aberta.
Outro aspecto crucial na evolução tecnológica foi a
informatização de todo o processo clínico, e a possibilidade de ele acompanhar
virtualmente o doente para onde ele vá. Muitas instituições em todo o país já
foram capazes de a instalar de modo a, praticamente, fazer desaparecer o papel,
facilitando o estudo, tratamento e seguimento dos doentes. Mas também aqui é
preciso alertar para o perigo de nos focarmos exclusivamente nas virtudes da
comunicação electrónica e nos esquecermos do doente real, da sua observação, de
discutirmos, à sua cabeceira (na enfermaria, na sala de endoscopia ou de
imagiologia), entre nós e com colegas doutras especialidades,
multidisciplinarmente, sinais e sintomas, exames e estratégias, pensando
colectivamente em soluções. Há que reverter a prática de certos hospitais em
que os vários médicos envolvidos no tratamento dos doentes apenas comunicam por
escrito, ainda nos velhos processos em papel ou já nos registos informatizados,
aqui de modo ainda mais fácil por poder ser feita à distância (sem mesmo nunca
verem o doente!).
Em relação com a aprendizagem, hoje em dia alguns têm a
ideia de que “só faz bem quem faz muito”, e que, portanto, para se fazer bem
uma determinada intervenção há que fazê-la o maior número de vezes possível por
unidade de tempo. Ora se é verdade que “a prática contribui para a perfeição”,
alcançá-la não depende só do número de vezes que se repetem os mesmos gestos,
como parece pensarem os que reduzem tudo a números. A rapidez com que se
aprende cirurgia é individual, e está dependente, nomeadamente, para além das
capacidades de cada um, da sua cultura médica e cirúrgica e da sua experiência
prévia e também da concomitante. Naturalmente, um cirurgião que faça só uma
intervenção cirúrgica, para manter a mão terá de a realizar muito mais vezes do
que alguém para quem essa intervenção esteja incluída numa actividade cirúrgica
intensa e variada. O que vai contra a orientação de se querer que os cirurgiões
gerais desde o início da sua carreira se restrinjam a um determinado tipo de
cirurgia, com abandono de todos os outros. Isso será amputá-los da
possibilidade inestimável de adquirirem habilidades e recursos técnicos
provenientes duma prática variada, e que os irão enriquecer indiscutivelmente
como cirurgiões. Será condená-los a ser subespecialistas, e em cirurgia,
também, “quem sabe só duma coisa nem disso sabe”. Para além de que o aspecto
multifacetado dum profissional é sempre uma mais-valia e maior garantia de
emprego. Outra coisa será, e desejável, o cirurgião experiente tornar-se
superespecializado numa determinada matéria.
Se um motorista tirar a carta de pesados e for colocado de
imediato em exclusividade numa carreira de autocarros com dez quilómetros de
extensão, e passar dez anos a percorrê-la, ida e volta, vinte vezes ao dia, não
haverá por certo quem conheça melhor esse percurso, e eu iria muito satisfeito
com ele. Mas não o quereria a conduzir uma camioneta de excursão de Coimbra à
Lousã ou, menos ainda, numa viagem a Paris.
Da cirurgia geral saíram várias especialidades cirúrgicas,
mas isso aconteceu sempre por razões de maior especificidade na evolução da
clínica médica relacionada com determinadas patologias, e em procedimentos
diagnósticos ou terapêuticos específicos que foram surgindo em relação com
essas patologias. Nunca nasceu nenhuma baseada apenas num determinado tipo de
cirurgia, e com a justificação do número de intervenções realizadas por unidade
de tempo. É natural que, num Serviço, determinadas intervenções menos
frequentes sejam realizadas sobretudo por um ou dois cirurgiões, mas não de
forma monopolista, excluindo todos os outros, e sempre enquadrados no conjunto
do Serviço. Doutro modo a massa crítica para esse tipo de cirurgia reduzir-se-á
a um ou dois... E, igualmente mau, o desinteresse forçado de todos os outros
levará a que capacidades individuais possam ficar desaproveitadas, em proveito
de alguns já estabelecidos mas eventualmente com menos capacidade. E o
monopólio, com desaparecimento de competitividade ou emulação, é um factor de
perda de qualidade.
Durante séculos a cirurgia foi de ressecção, excisando do
corpo as partes doentes. Era uma atitude pouco elaborada, pode-se dizer, apesar
de nalguns casos exigir grande maestria e conhecimentos anatómicos, e por isso
os cirurgiões não recebiam da sociedade o mesmo respeito que os médicos. Era
uma cirurgia mutiladora, anatómica, por oposição a uma mais recente, a que
podemos chamar fisiológica: na qual se introduzem alterações na anatomia com o
fim de recuperar uma função fisiológica desaparecida ou diminuída, ou de
conseguir uma modificação no funcionamento do organismo. Tonou-se possível pelo
conhecimento profundo dos mecanismos fisiológicos em causa, permitindo aos
cirurgiões manipular as estruturas anatómicas de modo a reproduzi-los ou
alterá-los. Exemplo disto é o tratamento cirúrgico do refluxo gastroesofágico
e, mais recentemente, a cirurgia da obesidade. A avaliação pormenorizada e
sistemática dos resultados das intervenções bariátricas permitiu perceber a sua
influência directa no equilíbrio da diabetes mellitus (que não apenas pela
redução ponderal), e vai, muito provavelmente, conduzir a mais conhecimentos na
fisiopatologia daquela doença, bem como do nosso sistema endócrino e de outras
perturbações do nosso metabolismo, para além da fisiologia do controlo do peso
corporal. É de prever que num futuro próximo doenças como a diabetes e outras
perturbações endócrinas afectando o metabolismo possam ser tratadas
directamente pelo cirurgião, no que já se chama de cirurgia metabólica, numa
evolução ao arrepio da habitual, que era de tratamento cirúrgico até haver
tratamento médico.
Como reflexão final, é natural que algumas instituições se
dediquem mais a uma determinada patologia, e assim se transformem em centros de
referência, pela sua elevada diferenciação, pelos meios de que dispõem, e a
colaboração directa, multidisciplinar, entre várias especialidades, pelos
resultados conseguidos, pela ajuda e treino fornecidos a outros centros menos
diferenciados, pelos trabalhos publicados e o contributo para o progresso nessa
área. Os centros de referência para uma determinada cirurgia devem, assim,
ganhar o direito a essa designação, e não ser-lhes outorgada pela benévola
simpatia de alguém ou apenas por se restringirem a praticar essa cirurgia. E
também aqui não deve ter lugar o monopólio, afastando todos os outros centros
da cirurgia em causa. Porque o monopólio é, repito, factor de perda de
qualidade: pela falta de emulação e competitividade, pela falta de
oportunidades dadas a mais cirurgiões, por uma reduzida massa crítica a nível
nacional, com apenas um punhado de especialistas a falar sempre do mesmo
assunto da mesma maneira. Outra coisa é ter uma massa crítica maior, com uma
hierarquização de competências e meios, permitindo tratar casos simples em
centros menos diferenciados e os mais complicados em centros de maior
diferenciação. Aproveitando-se assim toda a capacidade cirúrgica instalada por
todo o território nacional, estimulando os cirurgiões de todo o país a serem
cada vez melhores, tirando o máximo rendimento das condições existentes.
Pub. Revista Portuguesa de Cirurgia, Numero 32, Mar 2015
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